O grito e o gesto: os desafios complexos para as esquerdas brasileiras
“Ah, chega de lamentos e versos ditos ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça…” Drummond.
“Meu nome é tumulto e escreve-se na pedra…” Drummond.
Gritamos nas ruas: não vai ter golpe! Mas o golpe se consumou. Gritamos nas ruas: uma quadrilha de corruptos não combaterá a corrupção. E eles seguem impassíveis saqueando os recursos do país protegidos pela própria estrutura do Estado. Continuamos gritando: o objetivo do golpe não foi afastar a presidenta eleita porque tivesse cometido crime de responsabilidade, mas porque ela não cedeu à chantagem dos conspiradores.
O golpe se deu, fruto de uma conspiração, para pôr abaixo o governo legítimo e abrir as portas para a imposição do programa neoliberal derrotado pelos cidadãos em quatro eleições sucessivas.
O objetivo se concretiza sob os olhos da sociedade brasileira: quebraram as empresas de infraestrutura; estão destruindo a Petrobras para entregar o pré-sal; bloquearam os projetos estratégicos (o submarino nuclear); pretendem entregar a Base de Alcântara; desejam rebaixar o papel das Forças Armadas de proteger a soberania nacional, definido pela Constituição, para converte-las em polícia de combate ao tráfico de drogas (como ocorreu ao longo do ano no Rio de Janeiro); abrem as portas da legislação para entregar as terras brasileiras ao mercado de compradores estrangeiros; a pressão social os fez recuar no propósito de franquear a Reserva Nacional do Cobre (Renca).
Gritamos: eles vão abolir a Previdência Social Pública, revogar as Leis Trabalhistas, reinstituir a exploração do Trabalho Escravo, suprimir o capítulo dos Direitos Sociais da Constituição de 1988, retirar os pobres do orçamento público, destruir as Universidades Públicas e Centros de Pesquisa, sufocar a criação e a produção artística. E hoje essas instituições, empresas, universidades e direitos conquistados se converteram num monte de escombros. Em menos de dois anos de saque os golpistas destruíram as bases de sustentação de qualquer Projeto Nacional digno desse nome, para reduzir o país a um gigantesco arquipélago de neocolônias.
O que os trabalhadores esperam da esquerda brasileira? A população já está convencida de que houve um golpe que atropelou a soberania popular e se empenha em entregar aceleradamente os recursos naturais do Brasil e junto com eles a soberania nacional. Todas as pesquisas de opinião publicadas nos últimos meses demonstram que o golpe é reconhecido como um fato e rechaçado pela esmagadora maioria da população. O que significa que a realidade vivida pelos cidadãos e cidadãs e a denúncia cotidiana com que as esquerdas furam aqui e ali o cerco do monopólio conservador da mídia, alcançam seu objetivo.
Algumas perguntas precisam se respondidas com urgência: o que as esquerdas propõem para enfrentar a realidade desse pesadelo desencadeado pelo golpe que hoje oprime e saqueia a população brasileira? Ou seja, com que programa vamos disputar? E quais as estratégias de luta contra uma realidade pulverizada que nos escapa, por sua complexidade, estão sendo desenhadas pelos partidos e movimentos sociais dos trabalhadores para fazer frente a uma conjunção de forças reacionárias, nacionais e internacionais que se apoderou do aparelho de Estado e opera uma política de terra arrasada em todas as frentes contra tudo o que se identifique com o projeto democrático-popular?
Vamos esperar a salvação do projeto com a realização das eleições de 2018? Com que mobilização social os setores populares pretendem assegurar o processo eleitoral de 2018? Ou imaginamos que o Gilmar Mendes ou Luiz Fux serão a garantia de eleições democráticas? Suponhamos o inimaginável: que a composição social que desferiu o golpe permita a realização do pleito. Lula vence, volta e – com ele – volta a democracia e então tudo se resolve?
Se os setores conservadores que pilotam uma ofensiva como nunca vimos foram capazes de realizar em um ano e meio esse conjunto de políticas destrutivas de qualquer perspectiva para o Brasil como nação minimamente civilizada, o que os impedirá de lançar mão de todos os expedientes ao seu alcance para bloquear a expressão da soberania popular?
Ao lado do debate programático capaz de definir com clareza diante da sociedade para quê as forças de esquerda desejam voltar a governar o país, é indispensável a formulação das estratégias de ação para o imediato: assegurar a realização de eleições democráticas em 2018; para o médio prazo: em caso de vitória de Lula, com quais segmentos sociais governaremos; e para o longo prazo: com quais forças sociais organizadas contaremos para reconstruir uma institucionalidade democrática no Brasil, capaz de assegurar a retomada do desenvolvimento com distribuição de renda e riqueza?
As esquerdas brasileiras estão diante de um desafio bem mais complexo do que o de incluir-se dentro da ordem como ocorreu nos últimos trinta anos. A ordem excludente, espelho da plutocracia e do apartheid social que nos governa expeliu programaticamente as pretensões das esquerdas de incluir a base da sociedade no orçamento público com o golpe de 2016. A ordem neoliberal despediu-se das heranças da vetusta democracia liberal que a precedeu. Reduziu-as a um simulacro ao atropelar a soberania popular. A um mero ritual, vazio de conteúdo e de eficácia. Trata-se, agora, para as esquerdas, de formular os mecanismos institucionais da nova ordem democrática, inseparável da participação popular: antídoto contra a disseminação do fascismo social que permeia a sociedade brasileira.
Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.