Cativos da Amazônia

Entrevista feita pelo jornalista Laécio Ricardo, publicada em 24/06/2007 no Caderno 3 do jornal Diário do Nordeste

´Soldados da Borracha´, livro de María Verónica Secreto, recapitula a saga dos nordestinos que migraram para o Norte e encontraram a escravidão nos seringais.

A política ambígua de Vargas na II Guerra Mundial teve como conseqüência o ingresso tardio do Brasil no conflito. À sua maneira, o presidente se beneficiava da competição entre as potências ocidentais pelo fornecimento de matérias-primas e a formação de alianças.

Até o início da Guerra, os alemães pareciam levar vantagem na disputa pelo apoio brasileiro. Tal esfera de influência, contudo, foi gradualmente ocupada pela chancelaria dos EUA: Vargas liberou o uso de bases pelos aliados e, posteriormente, acenou com o envio de tropas para o conflito – a chamada “Força Expedicionária Brasileira” (FEB).

Porém, um dos episódio mais polêmicos relacionados à participação nacional na Guerra ocorreu longe do front e teve como locus os seringais da Amazônia. Para assegurar o êxito do esforço aliado, Vargas estimulou o recrutamento de mão-de-obra nordestina – cearense principalmente – para a extração do látex, insumo em escassez no mercado.

Tal “convocação” era amparada por promessas de prosperidade. Contudo, no solo inóspito da Amazônia, os nordestinos enfrentaram o trabalho escravo e péssimas condições de moradia. Esta saga é revisitada pela historiadora argentina María Verónica Secreto, no livro “Soldados da Borracha” (Perseu Abramo).

A obra analisa o recrutamento dos trabalhadores, destacando a política oficial de povoamento da Amazônia e a propaganda responsável pela mobilização dos migrantes. Sem fuzil ou munição, milhares de nordestinos travaram no Norte uma guerra silenciosa. Grande parte pereceu na selva, vitimados pelas enfermidades da Região e os rigores do clima; no outro extremo, a exploração sem freios dos “aviadores”, comerciantes que mantinham os trabalhadores em situação de escravidão por dívidas, foi responsável pela expiação definitiva dos seringueiros.

MARÍA VERÓNICA SECRETO – professora universitária

Borracha e escravidão nos seringais da Amazônia

Um dos episódios mais contraditórios protagonizado pelos brasileiros na “II Guerra Mundial” não se deu no front, mas nos seringais da Amazônia. Trata-se do recrutamento massivo de mão-de-obra nordestina – cearense principalmente – para o trabalho de extração do látex, matéria-prima fundamental para o esforço aliado na Europa. A “convocação” dos “soldados da borracha” contou com os auspícios do governo Vargas – era alavancada por promessas de prosperidade no ermo Norte . No entanto, em vez do eldorado, os nordestinos encontraram o inferno: enfrentaram o trabalho escravo, duras jornadas e péssimas condições de moradia. O episódio em questão, que atiça a verve da academia, é analisado pela historiadora argentina María Verónica Secreto no livro “Soldados da Borracha” (Editora Perseu Abramo), lançado recentemente. Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Verónica Secreto se interessou pelo tema quando lecionou no Departamento de História da UFC, na condição de docente visitante. Abaixo, confira entrevista com a pesquisadora.


A senhora é uma historiadora argentina. O que a levou a se interessar por um episódio polêmico da história e das relações de trabalho brasileiras?

Como sempre, o que nos leva a determinadas escolhas são um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, talvez venha minha escolha pela História do Brasil, área na qual pesquiso desde o doutorado, iniciado há 10 anos. Depois, vem meu interesse pela história sobre as fronteiras internas, a ocupação de terra e as relações de trabalho em linhas gerais. Minha passagem pelo Ceará, como professora do Departamento de História, aproximou-me com este episódio da história das migrações cearenses, da ocupação da Amazônia e das políticas “colonizadoras” do governo Vargas. O governo Vargas sempre é visto de uma perspectiva urbana. No primeiro plano, aparecem os operários, que de fato foram os amparados pelas leis trabalhistas. Como reconhecia um intelectual do governo, os trabalhadores rurais estavam privados do “progresso dos operários das cidades do litoral”. A legislação social, continuava ele, só poderia ter começado nos centros urbanos para avançar nas esferas rurais em um momento posterior. Claro que o governo Vargas não avançou nessa área e os trabalhadores rurais continuaram postergados, salvo algumas exceções isoladas, como esta dos “soldados da borracha”, que foram encaminhados para Amazônia de “papel passado”. Mas só isso.

No livro, a senhora afirma que os ´soldados da borracha´ não devem ser tachados de vítimas, sob risco de entendermos mal este episódio. Como este passado deve ser analisado? Quais os principais erros interpretativos cometidos no que se refere à ´saga da borracha´?

Isto que eu digo para os “soldados da borracha” é válido para muitos outros sujeitos sociais considerados por muito tempo como “vitimas passivas”. Em geral, a passividade é a característica que mais tem sido atribuída aos camponeses. No entanto, ao estudarmos, o que nós encontramos são pessoas que fizeram escolhas. Escolhas dentro de um número limitado de opções, mas escolhas. Ir para o Amazonas, para muitos deles, significou seguir uma saga familiar, buscar oportunidades melhores, realizar um ato patriótico. Acredito que o principal erro de todo o processo de recrutamento e encaminhamento dos imigrantes esteve na apropriação que os seringalistas fizeram de uma política de Estado. O fracasso, como em muitos outros casos de políticas públicas, se deve à distância enorme entre as planificações (incluindo em muitos casos os marcos legais criados especificamente) e a realidade na qual pensa-se em “mexer”. Os trabalhadores enquadrados como ´soldados da borracha´ assinaram um contrato que previa o amparo a suas famílias e a campanha de recrutamento dos mesmos contou com um planejamento que implicava a criação de uma série de organismos estatais, como a Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico, o Banco de Crédito da Borracha, o próprio Serviço de Mobilização de Trabalhadores para Amazonas (Semta)… Mas não se implementaram mecanismos de fiscalização, nem se evitou que os grandes proprietários se “apropriassem” destas políticas em beneficio próprio. As coisas fracassam não só por falta de vontade política, embora este seja um elemento muito importante, mas pelas resistências da classe proprietária – motivo pelo qual até hoje continua a existir “trabalho escravo”.

Pouco antes da migração nordestina, o governo Vargas manifestara interesse em promover a ocupação do Norte. Qual era seu projeto para a Região e que interesses estavam articulados a esta iniciativa?

O governo Vargas incluía o Norte no seu programa de colonização, de ocupação dos “espaços vazios” e da criação da pequena propriedade. Todo o programa “Marcha para o Oeste” tinha por finalidade expandir as fronteiras internas e, portanto, criar mercado e deter as migrações entre os sertões e os grandes centros urbanos do litoral – movimento que os intelectuais do governo consideravam contrário “à natureza” histórica do Brasil. Com respeito ao Norte, Vargas dizia que seus habitantes seriam “incorporados ao corpo da nação”, sendo necessário adensar o povoamento, incrementar o rendimento agrícola, aparelhar os transportes. Até o momento, segundo Vargas, o caluniado clima amazônico tinha impedido que partissem contingentes humanos de outras regiões com excesso demográfico. Somente o nordestino, com o seu “instinto de pioneiro”, poderia se embrenhar pela floresta, abrindo trilhas de penetração e talhando a seringueira silvestre.

No que se refere à ´saga da borracha´, quais as estatísticas mais próximas da realidade? Quantos sertanejos partiram? Quais localidades forneceram os maiores contingentes? Como era feita a viagem? Quantos sertanejos morreram e quais as condições de sepultamento?

São muitas perguntas, algumas têm respostas e outras não. Ou pelo menos as respostas não são tão precisas como gostaríamos. O escândalo dos “soldados da borracha” explodiu quando deixou de ser paga a assistência às famílias, coincidindo com a cobertura dada pela imprensa internacional. Alguns jornais franceses relatam que 25 mil homens tinham sumido na floresta. Levada a debate na Assembléia Constituinte a gravidade da situação criada pela batalha da borracha, foi formada uma CPI que trabalhou entre os meses de julho e setembro de 1946, reunindo documentos e tomando depoimentos dos funcionários vinculados ao DNI, Semta, Caeta, Banco do Brasil, Banco de Crédito da Borracha, do Instituto Agronômico do Norte… Os depoimentos dados à “Comissão de Inquérito da Campanha da Borracha” deixaram transparecer problemas políticos e até pessoais entre os depoentes. Mas, mais importante que isto, trouxeram à luz o verdadeiro desastre que foi a campanha. As denúncias eram muitas: os trabalhadores que voltavam dos seringais diziam que eram maltratados, ameaçados pelos capangas, que a carne podre era vendida cara, que remédios lhes eram negados… Outros documentos informam que o transporte dos trabalhadores era realizado em condições deploráveis, que se produziu pouca borracha e se adulteraram as estatísticas. O relatório da CPI impunha com urgência o amparo imediato aos “soldados da borracha” e às famílias que haviam ficado no Nordeste. Sobre as estatísticas, a antropóloga Lúcia Arraias Morales fala da “batalha dos números”. Depois de reconhecido o desastre, os funcionários do governo tenderam a diminuir as cifras enquanto os denunciadores a aumentar. As diferenças são grandes. Os primeiros afirmam ter sido encaminhado 34,4 mil e os outros 54,4 mil entre trabalhadores e dependentes. A própria CPI não conseguiu chegar a uma conclusão a este respeito. Porém, um dos grandes problemas, tanto para a pesquisa realizada pela CPI como para as próprias famílias dos trabalhadores, foi saber qual tinha sido o destino final de cada um dos trabalhadores, razão pela qual também é muito difícil responder quantos morreram, as circunstâncias de sua morte e posterior sepultamento. No entanto, é importante ressaltar que o povoamento da região amazônica por nordestinos é anterior ao governo Vargas

Em que sentido, a propaganda estatal foi responsável pela mobilização dos trabalhadores nordestinos? Que valores e ideologias eram enaltecidos nesta publicidade?

O apelo era muito evidente. E isto foi enfatizado pelas mulheres dos “soldados”, quando reclamavam pela manutenção da assistência às famílias ou por ter notícias de seus maridos. Para este livro, trabalhei com cartas que estas mulheres escreveram a seus maridos ou que enviaram a Getúlio Vargas. O grupo que escreveu ao Presidente diz a este que seus maridos “viajaram para Amazônia, com esperanças de serem bem sucedidos e de prestarem relevante serviço à pátria no combate ao inimigo comum, produzindo borracha para a vitoria das nações unidas”. Exatamente as frases utilizadas na propaganda de recrutamento. Mas eu acho que nada é mais eloqüente do que a própria cartilha entregue aos “candidatos” a “soldados da borracha”: “O APELO DA PÁTRIA. Tão grande se apresenta a necessidade de respondermos ao chamado da pátria, que todos nós, todos sem exceção de um só, temos de oferecer a nossa quota de sacrifício, que é glória, para a vitória final. SOLDADO DA BORRACHA, HERÓI DA AMAZÔNIA. Mas não só pelas armas podemos e devemos concorrer para o triunfo completo da liberdade humana. Ao Nordestino, ao nosso trabalhador do campo, cabe uma tarefa tão importante como a do manejo das metralhadoras nas frentes sangrentas de batalha: impõe-se-lhe o dever de lutar pacificamente na retaguarda, dentro do seu próprio país, nas terras abençoadas da Amazônia, extraindo borracha – produto indispensável para a vitória, como a bala e o fuzil”.

Como era o cotidiano do trabalhador nos seringais, em termos de jornadas e salários? Quais as condições médicas e de moradia?

O cotidiano do trabalhador no seringal não tinha mudado com respeito ao período anterior. Refiro-me ao período do “boom” da borracha, quando escritores como o português Ferreira da Silva, autor de “A Selva” (1930), ou o colombiano José Eustasio Riveira, autor de “A vorágine” (1924), escreveram denunciando a situação dos trabalhadores na exploração da borracha. As condições de moradia eram muito precárias, cada trabalhador “arrumava-se” numa palhoça, na qual muitas vezes também fazia o processo de defumação da borracha. O dia começava muito cedo e o trabalhador percorria sua estrada. Uma estrada é o conjunto de 100 a 150 seringueiras a ser entalhada por dia. Lembremos que a seringa, como se encontra na Amazônia naturalmente, se dá entre outras espécies. Assim uma estrada é a linha imaginária que une esse conjunto de seringueiras. Na ida, o trabalhador a percorre fazendo o corte e colocando o recipiente em que cairá o látex. O sistema de pagamento do trabalhador era feito por produto entregue no abarracamento. Em síntese, o trabalhador estava sempre endividado com o patrão. Este lhe tomava a borracha a um preço baixo e vendia os mantimentos, instrumentos de trabalhos, e demais insumos a preços altos, estabelecendo a obrigatoriedade deste comércio desleal. O trabalhador não podia abandonar o seringal até pagar sua dívida, que nunca conseguia saldar porque o patrão se encarregava de que assim o fosse. Este sistema de trabalho que é recorrente em toda a zona seringueira chama-se trabalho por dívida, é uma das formas do trabalho forçado, ainda existente e penalizada por lei. Desejo finalizar a entrevista com um agradecimento. Como disse, fui professora da UFC e gostaria de destacar àqueles que colaboraram de alguma forma com esta pesquisa. Uma boa parte da documentação é parte do acervo do Museu de Arte da UFC. Por isto, agradeço a seu diretor Pedro Eymar. Também gostaria de agradecer a meus colegas de Departamento, que escutaram com paciência cada avanço na pesquisa; e, por último, a meus alunos do curso de História, cujo entusiasmo contagiante foi um grande incentivo.

LAÉCIO RICARDO
Repórter

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O Brasil como objeto de estudo


Nascida na Argentina, em Necochea, interior da província de Buenos Aires, María Verónica Secreto é graduada em História pela Universidade Mar del Plata, estabelecimento onde também iniciou sua experiência como docente. O interesse pela trajetória e formação social do Brasil lhe levou a migrar para o país vizinho. Doutora em História Econômica pela Universidade de Campinas (Unicamp), María Verónica Secreto atualmente é professora do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Entre 2002 e 2004, foi docente da UFC. A passagem pelo Ceará lhe chamou a atenção para a triste saga dos nordestinos nos seringais do Norte, episódio polêmico da história das migrações cearenses, vinculado aos esforços para a ocupação da Amazônia, em especial as políticas promovidas pelo governo Vargas. A pesquisa resultou no livro ´Soldados da Borracha´, publicado pela Fundação Perseu Abramo.

Matéria publicada pelo jornal Diário do Nordeste em 24/06/2007