Por Thais Iervolino, de São Paulo

Em função da semana que comemora o Dia Internacional da Mulher, a ex-ministra do Meio Ambiente e atual senadora, Marina Silva, concedeu ao website Amazonia.org.br uma entrevista exclusiva.

Durante a entrevista, Marina, que é um dos expoentes brasileiros no mundo quando se trata da questão ambiental e uma das principais vozes femininas na Amazônia, aborda não só os principais desafios das mulheres que vivem na região, mas também fala sobre os problemas atuais e projetos de Lei que tramitam no congresso neste ano.

“Se para fazer a regularização de 64 milhões de hectares de área na Amazônia basta um processo auto-declaratório, então nem precisaria de regularização porque as inspeções não seriam nem na Amazônia, nem no mundo, seria no céu, porque milhares e milhões [de proprietários] são grileiros mesmo”, diz a senadora, referindo se à Medida Provisória 438, sobre regularização fundiária.

Veja a entrevista completa:

Amazonia.org.br – As mulheres em todo o mundo têm que passar por muitos obstáculos – entre eles o preconceito. Marina, para você, o que é ser uma mulher na região Amazônica? Quais os desafios e vantagens?
Marina Silva – Primeiro que ser uma mulher na Amazônia, ainda que com suas peculiaridades, guarda também as semelhanças de ser uma mulher no Brasil. As dificuldades, os preconceitos que muitas vezes elas têm que enfrentar, não é porque é na Amazônia que vai ser diferente do que a gente vai encontrar nas diversas regiões do país.

Acho que uma característica importante é que na Amazônia elas foram assumindo um protagonismo muito forte em todos os sentidos. Se você pega a luta dos seringueiros, você vai ver figuras femininas. A primeira presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, na época do Chico Mendes, era uma mulher [Dona Raimunda], que agora novamente está no sindicato. A formação do Conselho Nacional dos Seringueiros tem uma forte participação das mulheres, inclusive da Dona Raimunda.

Você também pode observar isso na política, na academia. A presidente do museu Goeldi também é uma mulher. Você tem uma forte participação da mulher. Então ser uma mulher na Amazônia comporta a dor e as delícias de ser uma mulher no Brasil, com as dificuldades típicas de cada região.

E quais seriam essas dificuldades típicas da região amazônica?
Acho que o atendimento das demandas de Saúde e Educação, aquelas demandas que são básicas e essenciais e que para uma grande parte das mulheres na Amazônia é algo muito distante. Você tem uma ausência do Estado muito grande na prestação de serviços elementares: do atendimento da saúde da mulher, planejamento familiar, atendimento da infância e é algo que sobrecarrega muito as mulheres.

Sem falar que as oportunidades também são muito escassas. Então você tem municípios inteiros que estão devastados pela ação predatória de madeira e boa parte dos homens vai embora, deixando rastros de destruição ambiental e social. Quem fica, na maioria dos casos, são as mulheres com a prole.

Isso acontece também em relação aos grandes empreendimentos. Há os grandes investimentos que são feitos no setor elétrico e na construção de estradas e essa história se repete igualmente.

Há dificuldades que são particulares dessa realidade, no entanto, também existem oportunidades que são muito interessantes e significantes. Existem mulheres que têm uma inserção muito forte em todos os níveis da sociedade. Mulheres que são, paradoxalmente, âncora e alavanca de processos sociais e políticos muito interessantes. É só você pegar o movimento da transamazônica você vai ver a participação muito forte das mulheres.

O que falta para que essas mulheres sejam ainda mais valorizadas e garantam o seu direito?
Eu acho que a gente não pode minimizar as conquistas das mulheres. Se a gente considerar que durante milhares de anos as mulheres foram consideradas irrelevantes, incapazes para o processo civilizatório, consideradas como incapazes, tuteladas literalmente pelos homens, pela Cultura, em todos os aspectos e, em menos de 60, 70 anos, as mulheres ocupam o espaço que ocupam, se a gente minimizar isso é não ter o alcance do que aconteceu em termos de quebra de paradigmas.

Porque você passa milhares de anos sem acesso ao conhecimento, sem acesso à participação nos processos políticos, culturais, sociais e espirituais e, num espaço de cerca de cem anos, você tem uma inserção altamente qualificada em todos os seguimentos da sociedade. Isso é algo que é fantástico. Isso é uma aprendizagem, uma inserção muito rápida do feminino em relação ao modus operantis, se é que a gente pode dizer assim, do masculino.

É claro que esse déficit social, cultural e civilizatório milenar não se realiza da noite para o dia, ele não se supera da noite para o dia.

Se nós formos traduzir isso para o cotidiano, nós vamos encontrar inúmeras dificuldades para as demandas do feminino, que provavelmente são maiores do que para o seguimento masculino.

A grande questão que se coloca hoje é como se ter uma atuação política que seja da valorização da integração das duas dimensões da condição humana, da condição masculina e da condição feminina, respeitando cada uma a sua especificidade.

Aí você vai ter a luta no campo político, da visão, do comportamento, dos valores, e das demandas específicas, que vai desde o atendimento à saúde, para umas, o combate à violência para outras, o atendimento à infância, que às vezes é uma sobrecarga às mulheres.

A questão do gênero é um dos desafios. Os desafios que a região enfrenta hoje continuam sendo os mesmos de cerca de 20 anos atrás, quando você começou a sua trajetória política?
Do ponto de vista do modelo de desenvolvimento, continuam sendo os mesmos de cem, 200 anos atrás. Do ponto de vista das demandas que estão postas como desafio, é claro que mudaram.

Nós já tivemos momentos em que ficávamos lutando pela criação da primeira reserva extrativista. Hoje nós já temos 5 milhões de hectares de reservas extrativistas. Então algo mudou em relação a essa questão. Antes lutávamos pela demarcação das primeiras terras indígenas, hoje a gente já tem uma séria de terras indígenas demarcadas.

Antigamente se iniciava a luta pelo reconhecimento da legislação ambiental e hoje, ainda que ela continue sendo questionada, tem-se toda uma cultura de licenciamento ambiental que as pessoas tentam retroceder, mas que no meu entendimento é avançar daqui para frente.

Há uma natureza diferente. Todavia, o que aparece como base de tudo isso é a mudança de modelo. O grande desafio que teremos para os próximos 50, 60 anos é a mudança de desenvolvimento, atingindo as diferentes dimensões do que é o desenvolvimento sustentável, na questão econômica, social, cultural, em todos os aspectos.

Como senadora, qual seria a sua participação nisso, em 2009, para tentar mudar esse cenário?
Dar continuidade ao trabalho que a gente vem apostando. Na ideia de mudar o modelo de desenvolvimento, traduzindo isso num marco legal que seja adequado, sobretudo.
Já temos uma Lei que assegura os aspectos do comando e controle, da fiscalização, de salvaguardar a proteção dos recursos. O grande desafio é de ter um marco legal para o mundo sustentável dos recursos ao tempo que se implementa a legislação já feita para a proteção, dentro da perspectiva que não é opondo o meio ambiente ao desenvolvimento, mas integrando.

O desafio é como proteger desenvolvendo e como desenvolver protegendo. Muitas vezes o debate é feito como algo sempre em oposição. As duas coisas precisam estar integradas.

O trabalho do mandato, desde o princípio, está sendo feito neste sentido, com a lei de acessos e recursos genéticos. Há também o feito no Ministério do Meio Ambiente com relação às florestas públicas, o mapa das áreas prioritárias para a criação de unidades de conservação, o mapa dos biomas.

Todo o trabalho que foi feito, o plano de combate ao desmatamento, o Plano Amazônia Sustentável (PAS), tudo vai à direção desse novo desafio, que é o desafio do mundo sustentável dos recursos.

Agora mesmo eu estava numa reunião de organização da agenda legislativa deste semestre. Com certeza o debate sobre a regularização fundiária, que no meu entendimento é um problema, por estar dissociada a um ordenamento territorial e fundiário, com um grave risco de retrocesso e de regularização de áreas griladas, com prejuízos do interesse público, com certeza todas essas questões serão prioridades do mandato para os próximos dois anos.

Qual a sua opinião sobre a MP 438?
A medida provisória é necessária dentro de uma estratégia de regularização fundiária, de ordenamento territorial. Mas solta e sem a base necessária para que as cláusulas que têm cuidado com a questão ambiental e socioambiental possam se viabilizar, ela é muito preocupante.

Se por um lado a MP diz que há que se preservar a reserva legal para que se tenha a regularização fundiária, há que ter uma certeza de que aquela posse é mansa e pacífica, há que se ter uma série de exigência para a ocupação até 2004, por outro não se faz a vistoria e se vai acreditar que o que está sendo declarado, visto o que vale é o processo auto-declaratório, é a declaração do próprio indivíduo.

Ora, se para fazer a regularização de 64 milhões de hectares de área na Amazônia, de terras que uma parte era floresta e outra parte pode ser que ainda tenha floretas, basta um processo auto-declaratório, então nem precisaria de regularização porque as inspeções não seriam nem na Amazônia, nem no mundo, seria no céu, porque milhares e milhões [de proprietários] são grileiros mesmo.

E o que vai assegurar que seria um processo legítimo, atendendo os princípios da condição social da terra e do interesse social de alta relevância que está colocado da Constituição Federal, seria assegurar que de fato a sociedade brasileira está alienando esse bem porque é em função de um princípio constitucional, de cumprir a função social da terra e do interesse público de alta relevância. Fora isso você estará fazendo regularização de áreas que foram efetivamente griladas e você não vai ter ferramentas para saber quem é joio e quem é trigo nesta história.

Além da MP, há alguma lei que será votada neste ano no Congresso e que mereça a atenção da sociedade por causar algum tipo de impacto à região?

A questão do Código Florestal. Há um movimento muito forte para mudar o Código Florestal, para diminuir a reserva legal e essa mudança que está sendo proposta por uma grande parte de parlamentares é no sentido de retrocesso e não para aperfeiçoar os ganhos que já temos e ampliá-los em alguns aspectos.

Por outro lado, há a necessidade que se tenha uma Lei de acessos aos recursos genéticos, aos recursos da biodiversidade. Infelizmente, o projeto que já temos, que inclusive é de minha autoria, não consegue caminhar porque há uma clara má vontade da maior parte dos parlamentares em fazer tramitar projetos com essa relevância. O projeto que está no Executivo não é encaminhado ao Congresso e teremos que fazer o debate agora sobre a redução da perda de biodiversidade, já que o prazo é até 2014, que boa parte dos países não faz o dever de casa e no caso do Brasil, essa questão de lei de acesso é fundamental.

Há a lei de mudanças climáticas, dentro das políticas de mudanças climáticas, que foi mandado para o Congresso, tem o projeto de Lei de resíduos sólidos, que também está tramitando.

Tem mais um projeto de Lei que é de minha iniciativa, o FPE verde [Fundo de Participação dos Estados], que está há três anos na mesa do presidente da Câmara dos Deputados. Espero que agora que o novo presidente Michel Temer tenha um pouco mais de flexibilidade para a questão de fundamental importância para a Amazônia e coloque em votação, já que no período do Arlindo Chináglia nós não conseguimos flexibilizá-lo para a relevância da matéria.

*Marina Silva é senadora pelo PT/AC e ex-ministra do Meio Ambiente. É integrante do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

Publicado originalmente no Portal Amazonia.org, em 10/03/2009