O maior partido de esquerda do Brasil, o PT (Partido dos Trabalhadores), vive com intensidade a mecânica de renovação das direções em nível municipal, estadual e nacional. O debate interno que envolve milhares de filiados, em última instância, diz respeito à melhor estratégia na conjuntura atual para alcançar uma sociedade mais justa, pluralista e igualitária, com políticas públicas para dirimir as graves iniquidades socioeconômicas e culturais que afligem a população há priscas eras.

O processo aciona a “mística” do PT com a solidariedade social como protagonista na constituição de um espírito coletivo nas diversas frentes de mobilização. Confere um significado à existência e objetivos para transcender a realidade em busca de um mundo sem opressão nem exploração. Em 10 de janeiro de 1980, em São Paulo, o fenômeno fez-se presente na fundação do partido e núcleos para a capilaridade aos ideais socialistas de Norte a Sul, no campo e nas cidades, entre estudantes e trabalhadores. Vê-se ainda na estrela que ilumina a saída dos labirintos. A religiosidade não é um requisito para a epifania. A manifestação do divino no cotidiano também é sentida por agnósticos e ateus que se comovem ao desbravar os caminhos da emancipação, envoltos em disputas e utopias.

A mística pode estar no poema Cantares de Antonio Machado e na canção de amor Volver a los diecisiete de Violeta Parra. Na saudação Camarada! do conto de Máksim Górki e nas fotografias de Sebastião Salgado na exposição Êxodos. Em um seminário com Marilena Chaui na Fundação Perseu Abramo e na memória do ambientalista Chico Mendes, da antirracista Lélia González, da feminista Nalu Faria e da Parada do Orgulho LGBT. Nas vezes em que Luiz Inácio Lula da Silva acessou a rampa do Palácio do Planalto e em que Dilma Rousseff vestiu a faixa da Presidência da República. Sintetiza as pungentes emoções de humanismo, dignidade, perseverança. No momento, oportuniza a retomada política da aura revolucionária original. Sem medo de ser feliz, na manhã.

A participação popular

O surgimento do PT coincide com uma virada anticivilizacional: a hegemonia político-ideológica hiperindividualista alicerçada no totalitarismo da mercadoria. A sensação de libertação ao navegar em geografias distantes, on-line,simula a ilusória decolonização e empresta a conotação positiva à globalização neoliberal especulativa. Os deslumbres castellsianos endossam a promessa enganosa da democracia digital na webesfera, encobrindo com um verniz a troca no padrão de acumulação.

Na contramão, experiências da esquerda em Porto Alegre/RS e Santo André/SP reatualizavam um autêntico “sentimento de comunidade”. O modo petista de governar (1992), sob a coordenação de Jorge Bittar, já destacava “o tema da participação popular, pela importância que tem para o projeto político do PT”. As elites do retrocesso temem a vocação democrática da legenda e desmontam as estruturas e a agenda de sociabilidade do OP (Orçamento Participativo). O Papa João Paulo II e o cardeal Joseph Ratzinger fizeram o mesmo com a Teologia da Libertação e as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), de atuação nas periferias. O preconceito é o pecado que corrompe o Vaticano.

Um estreito laço prende a consciência de classe e a consciência de comunidade, na configuração das identidades políticas. Os historiadores das heroicas greves operárias no ABC paulista (1978-1981) convergem sobre a logística do “movimento contra a carestia” em bairros e favelas, com a coragem indômita das mulheres, para o suporte às atividades dos paredistas que afrontavam a ditadura civil-militar. Com uma “intuição programática”, lideranças alquimistas ergueram um partido de massas e uma central sindical, aplicando as fórmulas históricas de resiliência e autossuperação para avançar.

A comunidade e a classe

No capítulo “Comunidade e classe”, em Paris, Capital of Modernity (2003), o geógrafo britânico David Harvey anota: “Os marxistas que se recusam a reconhecer a relevância da comunidade para a formação da solidariedade estão equivocados, assim como cegos estão aqueles que afirmam que a solidariedade da comunidade nada tem a ver com classe social. Os signos de classe e consciência de classe são tão importantes no espaço de vivência quanto no trabalho. O posicionamento de classe pode ser expresso tanto pelos modos de consumo, quanto pelas relações com a produção”. A lide dos promotores de mudanças tem dinâmica integradora, abrange do local de moradia aos locais de estudo e labor. Pesquisas eleitorais mostram a conexão; os votos costumam preservar a coerência.

Prefeitos reacionários interrompem o fluxo de empatia entre a comunidade e a classe, de uma forma burocrática. Providências para eximir o poder público das obrigações no cuidado das praças nunca visam uma cogestão do espaço com as associações periféricas. Empresas e lojas comerciais são as priorizadas. O comunitarismo é esvaziado em favor do “clube dos ricos” que, no léxico do bravo Pepe Mujica, remete aos rastaqueras que preenchem o vazio da alma com a ostentação de bens de luxo. Os fetiches servem para ofuscar personalidades medíocres, de contribuição restrita à Forbes.

Contratações de artistas da sofrência com exorbitantes cachês, cotejados às receitas dos municípios, explicam-se. Afora possibilitarem “rachadinhas”, sinalizam um símbolo de empreendedorismo dos vencedores na guerra de todos contra todos. O poder do dinheiro é consagrado no espetáculo, com o elogio subliminar de uma dominação. Os cidadãos ativos de direitos se convertem em consumidores passivos, ensimesmados. O lema é “Sofro, logo existo”. A moral é “Sou dependente de drogas”; a saber, dos aplicativos de transporte e alimento, terceirizações e baixos salários. A música sertaneja comercial traduz a privatização das desditas sociais na subjetividade de perdedores que sangram para viver. Como se o Estado não contasse; só contassem os indivíduos e suas errâncias afetivas.

Desenvolver a vanguarda

A necropolítica resume a saga da extrema direita. A liberdade que vale é a da circulação do capital improdutivo. O valor da igualdade é tratado como um estorvo socialmente. Para as finanças e as Big Techs (a plutocracia), as desigualdades, as fake news e a pós-verdade são bem-vindas. A competição é a conduta prescrita para o povo. Acima impera a monopolização da riqueza e das informações; do mando e das regalias; do bem-estar e do conhecimento. A fraternidade institucional é abjurada por governanças conservadoras que exaltam os ajustes fiscais da austeridade. O capitalismo realmente existente precisa da ação dos modernos “capitães do mato” para a gentrificação e a financeirização.

Sequer a gentileza sobrevive nas urbes. A impaciência com carros velhos e pedintes na via pública sintomatiza a aporofobia contra pobres. Assaltantes do Erário continuam soltos. A mídia corporativa esconde-os da sociedade porque apoia o monetarismo do Consenso de Washington, a autonomia do Banco Central, as agências financeiras, o agronegócio, o extrativismo e o mega varejo. Conquanto a força do leão tenha se debilitado, a raposa com astúcia lança o lawfare à resistência dos comuns. A aliança da imprensa protofascista com o neoliberalismo mantêm a velha ordem. Mas estamos aqui.

O presidente Lula empenha-se em desbloquear a multipolaridade e dar um rumo contra-hegemônico aos embates no patamar internacional. O país deve ser uma alavanca no combate à crise climática. A COP-30 (Conference of the Parties, 30th edition) é uma linha de contenção à insensatez predatória, exceto para o Executivo estadunidense, o Congresso brasileiro e os arquibilionários que dobram a aposta na destruição para proteger seus apocalípticos privilégios. A proliferação dos Data Centers vorazes no consumo de energia (água potável, eletricidade) traz riscos ecológicos imensos à vida.

Toca aos progressistas a responsabilidade para deter a hecatombe social e ambiental no século 21. A novidade é que o novo sujeito da história não se reduz a uma classe; agora é composto por 99% da humanidade. O FSM (Fórum Social Mundial) reorganizado é capaz de desenvolver a vanguarda. “A rosa já se faz flama / no gume do coração”, alerta o poeta do Amazonas na Cantiga de Claridão.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.