Por Tarso Genro

O sentido estratégico do “estado de segurança” na democracia está centrado na capacidade de o Estado afastar qualquer perigo à vida comum para assegurar o funcionamento regular das instituições e dos poderes da República: é a defesa da vida, dos diretos da cidadania, da sanidade ambiental e da integridade territorial. No seu arcabouço jurídico e político imediato está contida a possibilidade de decidir sobre a “exceção”. Regra e exceção podem se alternar e se converter, uma na outra, em qualquer estado de direito, e a possibilidade dessa alternância, no “estado de bem-estar”, não foge à regra.

A segurança militar de uma região do globo, quando pactuada entre os diversos países democráticos que compõem aquele espaço geográfico, é uma condição estrutural para a segurança pública interna e elemento necessário ao sucesso do estado de bem-estar, ora configurado como estado social. A segurança militar de um continente, quando delegada para fora do estado nação, é uma sinalização de minoridade política que perverte a república e anula as instituições de soberania.

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Tarso Genro é advogado, ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

Em um estado social constitucional a “segurança da nação” deve vincular-se a uma política de segurança nacional, definida em um processo constituinte legítimo gerador de um consenso nacional, pois, quanto maior for a necessidade de apelar à exceção para controlar o território, menor será a possibilidade de o regime democrático defender a vida e a liberdade dos seus cidadãos em todas as suas variáveis individuais e coletivas.

Na transição das lutas políticas do século passado para o atual século 21, as questões políticas relacionadas com as disputas econômicas entre as classes sociais estão, hoje, submetidas — principalmente nos países — mais ricos a uma  nova forma de disputa para assegurar seus interesses geopolíticos. Nestes, o nacionalismo identitário dos governos da direita “não está mais interessado em combater o fundamentalismo”, mas apenas os seus efeitos na migração que é perturbadora da sua ordem interna (…), pois essa perturbação dos “estranhos” é a própria razão de seu crescimento político (…)”[1], já que é através dele — fundamentalismo que vem “de fora” — que a sua força política interna se alimenta.

O brutal atentado terrorista das “torres gêmeas” no fatídico dia 11 de setembro 2001 marca a “fragilidade militar do ocidente como polícia do mundo e também a debilidade da sua posição como ocupante do mundo(…): proliferaram, a partir dali, os duros defensores das guinadas autoritárias nas questões de segurança, que passam a classificar os seus inimigos de acordo com a sua visão de Estado a partir das suas receitas bélicas na disputa pela hegemonia no concerto global. A segurança nacional, em sentido estrito, é balizada por essa disputa – mas quem é o inimigo na disputa pela hegemonia? Ora, “atualmente o inimigo (…) desses nacionalismos passa a ser o migrante, embora ele seja o oposto (que) se opõe (fugiu) do fundamentalismo; (…) é o migrante, o errante”(…)[2],  que foge da desgraça e da sua opressão originária.

É na segurança para viver em público que estão os vínculos da vida comum, como também estão — nestes mesmos vínculos — as lacunas de uma relação complexa entre a moral e o direito, política e Estado, que transita para o cotidiano.

É pela “exceção”, decidida pelo estado soberano, que aquelas “lacunas” podem ser preenchidas, tanto no sentido de preservar a democracia constitucional como para destruí-la. É através das ações do Estado polícia e do Estado controle social que a exceção pode se tornar dispensável. A segurança pública, como política de Estado, materializa internamente a segurança do Estado, pois nesta é que as pessoas revelam e apreendem, tanto a grandeza do direito posto na Constituição, como vivem o lado perverso da força sem lei quando forjada na exceção. Reduzir o lado perverso da força sem lei no Estado de Bem-Estar é compreender o direito público à segurança como um bem fundamental, sem o qual os demais direitos se fragilizam.

Historicamente, a questão da segurança, como conjunto abstrato de situações globais, exige neste contexto um novo olhar sobre os diversos níveis da intervenção jurídica e política do Estado polícia, cujos objetivos estão destinados a “afastar qualquer perigo”. No estado social de direito, o perigo mais grave é a obstrução permanente ao exercício e fruição dos direitos fundamentais.

Neste período histórico, a segurança pública não está mais separada da segurança do Estado. Uma situação permanente como a do Rio de Janeiro, por exemplo, na qual os grupos de policiais organizados no crime comerciam ou caucionam o dinheiro, as drogas e as armas — através de relações com as milícias que dominam territórios inteiros — é um exemplo flagrante da nova situação: a segurança do Estado fenece no cotidiano perverso da vida comum, dominada pela insegurança publicada privatizada pelo crime organizado.

A estratégia da segurança pública, assim, não pode mais ser vista como subalterna e isolada como problema só de dentro do território, pois a sua crise não é mais gerada predominantemente por questões paroquiais. Ela declina, na verdade, determinada por uma outra totalidade complexa, formada por dentro da nova ordem global: nos fluxos financeiros, informacionais, culturais, trânsito e contrabando de armas de todos os tipos; na exploração ilegal da biodiversidade e na apropriação ilegal das biodiversidades internas; nos processos orgânicos ilegais do tráfico de drogas, de pessoas e bens, que se originam — tanto dentro como fora da economia formal — dentro e fora do território: do mundo para qualquer bairro e de qualquer bairro para todo o mundo.

A democracia liberal do estado de bem-estar só sobreviverá como afirmação de um novo momento “glorioso” do liberalismo republicano, não como negação, mas como afirmação da ideia iluminista de uma sociedade baseada nos conteúdos da razão e da igualdade, pautadas nas novas formas do estado social constitucional. Nestas novas formas, a democracia deve ser assentada em um sistema de segurança pública que substitua a ilusão da segurança imediata e arbitraria provada nas velhas ordens totalitárias por um Estado seguro pelo funcionamento republicano das suas instituições de poder, que só se afirmarão se o estado de bem-estar social transitar para o estado de bem-estar social e da segurança cidadã.

Na esteira das lideranças da extrema direita messiânica e violenta, com seu caráter fascistizante, surgem as práticas de domínio através do poder miliciano (na América já temos um Bolsonaro e um Milei e outros tantos na Europa), do qual emergem os novos movimentos de massas violentos, iniciados por pequenos grupos que crescem e refundam a estética da política moderna.

Lembremos os estudos de Adorno sobre o radicalismo de direita, onde ele analisa os períodos mais narcísicos da dissolução das utopias que se transformam em “eras de expectativas decrescentes”. Surge aí — diz Adorno — uma “franja de lunáticos” que, em condições sociais dadas, tende a se ampliar. Em estudos posteriores, em uma palestra de 1967, o filósofo constata que esses grupos não são somente compostos por “lunáticos”, mas igualmente por “antecipadores” de um “estado de alma generalizado”, que toma forma como um “desejo coletivo do apocalipse”. [3]

A democracia constitucional brasileira sobreviveu a uma sobreposição de ameaças e ataques deste novo período de barbárie, de uma maneira peculiar: “o presidencialismo de coalizão, com todas as suas idiossincrasias, inibiu transformações constitucionais ou mesmo legais que desestruturassem o cerne do Estado Democrático de Direito, afastando-nos de um processo de erosão democrática semelhante ao ocorrido em países como a Venezuela e a Hungria. Não testemunhamos aqui um processo de “constitucionalismo abusivo” ou “legalismo autoritário” (LANDAU, 2013; SCHEPPELE, 2018), mas uma forma mais sorrateira de erosão que denominamos “infralegalismo autoritário”, acompanhada de uma insidiosa incitação à intervenção militar”. [4]

A classe política europeia, de ideologia social democrata — outro exemplo crítico da erosão da democracia — está atualmente em um estado de negação (…), “embora haja uma clara diferença entre partidos que defendem direitos e partidos que atacam os direitos (no caso da extrema direita) (…) o que já “não é suficiente” para distinguir a esquerda da direita. E certamente não o será se não enfrentar os dois grandes desafios, tanto a relação entre a humanidade e a natureza (a iminente catástrofe ecológica) como a coexistência humana com a inteligência artificial”,[5] (exclusão tecno-informativa) dois fenômenos que socialmente mal compreendidos instabilizam gravemente a vida comum.

Neste contexto, uma nova geração quer abrir caminho “a novos projetos alternativos, nos quais os valores fundadores da esquerda sejam revividos. Como sabia Salvador Allende, para avançar para a social-democracia, devemos defender e aprofundar a democracia política. Ele, certamente, acreditava, como Jean Jaurès, que a democracia é o mínimo do socialismo e o socialismo, o máximo da democracia”. [6]

Estes novos caminhos, todavia, não poderão ser desbravados sem uma fusão superior entre as ideias das gerações mais velhas e as ansiedades guerreiras das gerações mais novas que — com seus impulsos generosos fragmentários — são fundamentais para a construção de uma sociedade conscientemente orientada pela razão e pela esperança.

É a pretensão de uma sociedade de igualdade social absoluta para uma sociedade cujos níveis de desigualdade máxima sejam escolhidos, livre e conscientemente, no espaço público livre e seguro da república democrática, não nas frestas permissivas do domínio do crime, da violência miliciana e do fascismo em ascensão.

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[1]Instituto Humanitas Unisinos – IHU. CAMINITI, Lanfranco. O 11 de setembro e o fim da esquerda. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/633285-11-de-setembro-e-o-fim-da-esquerda. Acesso em: 23 de out. de 2023. (aproveitamento do texto a partir do que o autor deste artigo pensa sobre a crise que ele se refere).

[2] IDEM.

[3]GENRO, Tarso. Segurança Estado Segurança Nacional. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2023-jul-26/tarso-genro-seguranca-estado-seguranca-nacional.  Acesso em 19- de out de 2023.

[4] VIEIRA, Oscar Vilhena, O STF e a defesa da democracia no Brasil. Jornal of democracy em português, volume 12, número 1, junho de 2023.

Disponivel em: https://www.plataformademocratica.org/publicacoes#ESTADOdemocracia. Acesso em : 19 de out. de 2023.

[5]SANTOS, Boaventura de Souza. Europa em Estado de Negación. Disponível em:https://www.other-news.info/noticias/europa-en-estado-de-negacion/. Acesso em: 19 de out. de 2023.

[6] AROCENA, Rodrigo. Nuevos encuentos entre a Democraica y transformsción. Nuevs socieda 297. La Socialdemocracia há muerto, viva la socialdemocracia. Tallares Gráficos Nuevo Offset Buenos Aires, Argentina, p.141.

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