Por Maria Marighella, em lembrança dos 110 anos de seu avô, Carlos Marighella

Quis a História – e seus contadores oficiais – que Carlos Marighella ficasse mundialmente conhecido por sua reação ao Golpe Civil Militar de 1964 que o levou a morte numa emboscada covarde no ano de 1969. Mas os caminhos que revelam a singularidade desta existência que insiste em aparecer nos exige mais. Neste Brasil 2020, interregno luz e sombra, onde aparecem os fantasmas, como nos lembra Gramsci, evoco aqueles capazes de espantar o escuro da violenta noite em que mergulhamos.

No dia 23 de agosto de 1929, Carlos Marighella, que aquela altura era um estudante de 5º ano do Ginásio da Bahia, enfrentou uma prova de física em verso. Segundo conta Mário Magalhães, em sua monumental biografia Marighella, não ficou registro da avaliação da prova, mas sim é sabido que o professor respondeu com um soneto (rs) e que, naquele ano, o aluno rebelde receberia a média de 8,2 em física.

Aquele gesto dissensual foi profusamente difundido e, hoje, constitui uma referência inescusável (quase pop) do imaginário e a estética marighellistas. Tenho para mim que o próprio gesto tenha se tornado uma imagem política viva. Transmitida boca a boca, sim, mas não muito distante do Marighella Vive! pichado de maneira autônoma e descentralizada em muros de todo o Brasil.

Desde criança convivo com a eterna ausência do meu avô e esta ausência se tornou presença viva e ancestral onde deposito esperanças, me refaço e curo feridas. É desta ancestralidade que alinho minha subjetividade ao meu ethos coletivo. Desta maneira, desde não sei quando venho participando em atos de homenagem ao meu avô. Em todos esses encontros, além de eu fabular com alguma forma de convivência com ele –mais uma das inúmeras relações interditadas pela Ditadura– nunca faltaram pessoas que decidiram lembrar Marighella evocando a prova de física em verso. Palpite de que alguma coisa singular vibrava lá.

Ginásio da Bahia aos 23

De 29 deste oitavo mês.

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Doutor, a sério falo, me permita,

Em versos rabiscar a prova escrita.

Espelho é a superfície que produz,

Quando polida, a reflexão da luz.

Há nos espelhos a considerar

Dois casos, quando a imagem se formar.

Caso primeiro: um ponto é que se tem;

Ao segundo objeto é que convém.

Seja figura abaixo que se vê,

O espelho seja a linha beta cê.

O ponto P um ponto dado seja,

Como raio incidente R(2) se veja.

O raio refletido vem depois

E o raio luminoso ao ponto 2.

Foi traçada em seguida uma normal,

O ângulo I de incidência a R igual.

Olhando em direção de R segundo,

A imagem vê-se nítida no fundo,

No prolongado, luminoso raio,

Que o refletido encontra de soslaio.

Dois triângulos então no espelho faz,

Retângulos os dois, ambos iguais.

Iguais porque um cateto têm em comum,

Dois ângulos iguais formando um.

Iguais também, porque seus complementos

Iguais serão, conforme os argumentos.

Quanto a graus, A + I possui noventa,

B + J outros tantos apresenta.

Por vértices opostos R e J

São iguais assim como R e I.

Mostrado e demonstrado o que é mister,

I é igual a J como se quer.

Os triângulos iguais viram-se acima,

L2, P2, iguais isso se exprima.

IMAGEM DE UM PONTO

Atrás do espelho plano então se forma

A imagem, que é simétrica por norma.

IMAGEM DE UM OBJETO

Simétrica, direita e virtual,

E da mesma grandeza por final.

Melhor explicação ou mais segura

Encontra-se debaixo na figura.

Acho que a última vez que vi isto acontecer, foi no dia 4 novembro de 2019, durante a comemoração dos 50 anos de memória de Carlos Marighella na Alameda Casa Branca de São Paulo. Foi em aquele lugar onde o meu avô sofreu a emboscada dos agentes da Ditadura que lhe tirariam a vida. 50 anos depois, entre camaradas e familiares –todas e todos parentes–, a jornalista Rose Nogueira começou a sua fala apresentando Marighella como um poeta singular, e citou a prova em verso como testemunho. Gostei.

Tenho a intuição de que a transgressão da prova em verso vai além de uma ocorrência genial, digna de aclamação. Neste sentido, faz tempo que venho me perguntando o que poderia significar que um jovem preto, morador da região da Baixa dos Sapateiros de Salvador, procurasse o encontro de duas linguagens heterogêneas como a física e a poesia. Ou, em outras palavras, como é que o meu avô decidiu hackear a prova de física com um poema, desarranjando os termos autorizados do espaço de uma prova académica. Que tipo de mundo, ele pretendia trazer para a cena com aquele ato?

Acho que nesse gesto se encontram alguns dos principais atributos políticos de Marighella. De algum jeito, esses atributos nunca pararam de se atualizar. Contudo, muitas vezes podem ser difíceis de perceber.

Em primeiro lugar, quero destacar uma prática política dissensual, o entendimento de que a vida e a política sempre vão de mãos dadas. Ou seja, que a política não tem a ver, principalmente, com a gestão do estado de coisas, nem com a simples defesa de uma identidade dada, mas com uma arte que persegue liberar as potências da vida –como ele iria demostrar quando rompeu com o Partido–. Em segundo lugar, uma capacidade constante de reinvenção política, que não hesitou em criar espaços e práticas próprias-comuns, frente as tentativas de interdição e os inúmeros becos sem saída que se lhe apresentaram. Acho que esse saber enfrentar cada cena de interdição com o poder do pensamento original e a ação encarnada, constitui um dos maiores legados de Marighella.

À raiz de algumas leituras recentes, tenho pensado o gesto da prova em verso à luz da política do desentendimento de Jacques Rancière. Para o filósofo francês, o consenso, mais do que uma narrativa dominante é um regime do sensível:

“O regime em que as partes já estão pressupostamente dadas, sua comunidade constituída e o cálculo de sua palavra idêntica à sua performance linguística. O que o consenso pressupõe, portanto é o desaparecimento de toda distância entre a parte de um litígio e a parte da sociedade. É o desaparecimento do dispositivo da aparência, do erro de cálculo, e do litígio abertos pelo nome do povo e pelo vazio de sua liberdade. É, em suma, o desaparecimento da política” (Rancière, 1996: 105).

O consenso, portanto, seria um certo mapa hierárquico que determina o que é possível ­ver –pensar ou fazer. Uma ordem do mundo alicerçada no princípio de que cada posição social tem umas maneiras de ser, ver e dizer determinadas –sem trocas nem deslocamentos possíveis. Uma forma de visibilidade que suprime os sujeitos sobrantes da política. Assim, a política do consenso –que Rancière chama de polícia– busca a completude, evitando qualquer fissura que possa ameaçar a ordem consensual.

Frente a essa definição, o dissenso não é a crítica ou a oposição a um certo estado de coisas, mas a transgressão de esse regime consensual por meio de práticas disruptivas –materiais e simbólicas– e cenas de enunciação que desarranjam o mapa do possível –reconfigurando o visível, o dizível e o pensável. Com certeza, podemos pensar que foi assim que, historicamente, sujeitos e comunidades desprovidos de direitos políticos –os escravos, as mulheres, os operários, as comunidades LGBTQI+, etc.– afirmaram muitas vezes os direitos negados, levando a política para lugares onde o consenso não imaginava ela acontecer. Eis a prova de física como campo de batalha.

Retomo uma pergunta formulada acima, o que fazia um garoto de dezassete anos respondendo uma prova de física em verso?

Acho que o meu avô, o Preto, o velho Mariga, soube desde muito jovem que perto da experimentação sensível estava sempre a emancipação. E, se vivo estivesse, numa batalha de rima atacaria, em versos, o primeiro gesto de irrupção.

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