Publicado originalmente pelo Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Nas narrativas sobre as origens do Partido dos Trabalhadores, o ato de fundação do partido é lembrado com orgulho e emoção. O encontro marcava um novo momento da esquerda brasileira, reunindo lideranças populares de todo o país, jovens sindicalistas como Olívio Dutra, Jacob Bittar e Lula; históricos militantes como Manoel da Conceição e Apolônio de Carvalho e intelectuais e artistas do porte de Lélia Abramo, Paul Singer, Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido e Mario Pedrosa. O local de fundação, no entanto, merece pouca atenção. O Colégio Nossa Senhora de Sion, localizado em Higienópolis, bairro de elite da cidade de São Paulo, é sempre mencionado en passant, como um detalhe a mais, tal como o horário ou o dia do ato.

As cerca de 2 mil pessoas presentes no Colégio Sion representavam uma miríade de tradições políticas, organizações, movimentos sindicais e sociais, intelectuais, movimentos religiosos vinculados à teologia da libertação, que lutavam pela redemocratização do país e tinham como projeto estratégico a constituição de uma ação política autônoma e permanente das classes populares. Mais importante, representavam a energia da explosão social verificada no Brasil desde 1978, com as greves do ABC paulista lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva, e que logo se espalhou para todo o país.

“O PT surge da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país para transformá-la”. Esta primeira frase do Manifesto de Fundação sintetizava o momento histórico e as tarefas vindouras: era preciso legalizar o partido, o que só foi feito dois anos depois, e viabilizá-lo politicamente, o que só ocorreria, de fato, nas eleições presidenciais de 1989, quando Lula quase chegou lá.

De toda forma, havia um (aparente) paradoxo no fato de um partido de trabalhadores ser fundado em um colégio tradicional da elite paulistana. O Colégio Sion foi criado em 1901 pela Congregação das Religiosas de Nossa Senhora de Sion, influente ordem religiosa internacional. Inicialmente voltado para o ensino feminino, logo se tornou conhecido como a “escola das meninas ricas da cidade”.

Apesar de suas origens, o Colégio Sion, desde os anos 1960, seria fortemente influenciado pela teologia da libertação e pela marcante presença do catolicismo progressista na cidade de São Paulo, sob a liderança do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. O colégio foi, por exemplo, a sede paulista do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), importante organização de assessoria aos movimento sociais. Do ponto de vista pedagógico, a escola foi pioneira na adoção do Método Montessori, considerado uma forma de ensino humanista.

Apolônio de Carvalho, histórico militante comunista que lutou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa contra o Nazismo e que foi dirigente petista até 1987 comentou a atmosfera que envolvia o colégio no final dos anos 1970:

A escolha do Colégio Sion para sediar a fundação do PT indicava os profundos vínculos entre o catolicismo progressista e o movimento político que deu origem ao partido. Também havia razões práticas. A localização central da escola facilitava o acesso e fornecia o conforto necessário para muitos dos convidados, vários deles políticos e intelectuais idosos. Mas havia igualmente estratégia política. A reunião no Colégio Sion dava respeitabilidade e prestígio a um partido de massas, que se pretendia aberto a todos os setores progressistas que reconhecessem o protagonismo dos trabalhadores.

O Colégio Sion representa simbolicamente um momento de abertura de parte das elites à ideia de que o Brasil precisava de um partido popular, que representasse os “de baixo”. No final dos anos 1970, a oposição policlassista à ditadura possibilitou um raro momento de convergência em torno da ideia de que só teríamos democracia com um sério enfrentamento das desigualdades sociais e com a ação autônoma das classes trabalhadoras. Não é por acaso que ao PT aderem personalidades importantes das classes altas. Um exemplo foi a ex-aluna do Colégio Sion, Marta Suplicy, que anos depois seria prefeita de São Paulo, deputada e senadora, além de ministra de Lula e Dilma. No mesmo sentido, podemos dizer que o rompimento de Marta com o PT durante o golpe de 2016 simboliza o atual fechamento das elites econômicas e políticas brasileiras à possibilidade de uma democracia que aceite o protagonismo popular.

Distante da efervescência política do final da ditadura, o Colégio Sion permanece como uma das mais importantes instituições de ensino da cidade. Seu prédio, projetado por Ramos de Azevedo, foi tombado como Patrimônio Estadual em 2016. Mas foi aquele histórico e entusiasmado encontro de militantes no dia 10 de fevereiro de 1980 que marcou para sempre o Colégio Sion como um fundamental lugar de memória dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.


Para saber mais

FERREIRA, Marieta; FORTES, Alexandre (Org.). Muitos caminhos, uma estrela: memórias de militantes do PT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008. v.1.
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Projeto Memória e História. Partido dos Trabalhadores: Trajetórias – das origens a vitória de Lula. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
PARTIDO DOS TRABALHADORES. Resoluções de Encontros e Congressos (1979-1998). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
SECCO, Lincoln. História do PT. 5 ed. São Paulo: Ateliê, 2016.
VANNUCCHI, Camilo. Marisa Letícia Lula da Silva. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

 

Josué Medeiros é professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ

 

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