ONG em Israel registra o cotidiano de opressão e de violações aos palestinos e tenta convencer a sociedade israelense a pôr fim à ocupação

ONG de veteranos das Forças de Defesa de Israel registra o cotidiano de opressão e de violações aos palestinos e tenta convencer a sociedade israelense a pôr fim à ocupação

Por Douglas Portari, do Blogue da FPA

Os tanques de Israel voltam para casa e o mundo se recosta aliviado em frente à tevê. Enquanto isso, uma vez mais a Faixa de Gaza conta seus mortos – cerca de 2 mil, quase 400 crianças – e dos escombros tenta reerguer sua sempre esquálida infraestrutura. Apesar da reação negativa mundial sem precedentes à operação Margem Protetora, quando até mesmo os Estados Unidos qualificaram de “vergonhoso” o bombardeio (três ao todo) de uma escola das Nações Unidas e o Brasil criticou o “uso desmesurado da força”, além de convocar seu embaixador em Tel Aviv, a vida, como sempre, retorna à normalidade.

Mas “normalidade” nos Territórios Ocupados da Palestina tem outro significado. À parte a discussão sobre as responsabilidades do Hamas, na Faixa de Gaza, e mesmo do Fatah, na Cisjordânia, o normal ali é opressão e violência. Mas para dar alguma feição humana a essa geografia, alguns dados da ONU: os territórios possuem 4,5 milhões de palestinos, 2,7 milhões na Cisjordânia, 1,8 milhão na Faixa de Gaza; em 2011, 33% sofriam de insegurança alimentar; a taxa de desemprego girava em torno de 28% em Gaza, e 20%, na Cisjordânia; e o acesso à água, per capita, era de 73 a 90 litros por dia (o mínimo ideal são 100 litros).

Soldado israelense monta guarda numa casa palestina, em Hebron, 2003 (crédito: Breaking the Silence)

Vivendo num limbo jurídico e sem autonomia, os palestinos são um povo vilipendiado. “O que vemos hoje é um tapa na cara daqueles que pensam que esse status quo é sustentável, que um povo concordaria em viver pra sempre debaixo de punhos sem fazer nada; que a ocupação é algo que não tem um preço”. Talvez para espanto de muitos, esta frase não é a justificação ou a ameaça de algum radical palestino, mas o desabafo de um ex-soldado israelense, Yehuda Shaul, que, com a ONG Breaking the Silence (Quebrando o Silêncio), com base em Tel Aviv e do qual é diretor, passou a denunciar os abusos sistemáticos das ações das Forças de Defesa de Israel nos territórios.

Dias sombrios
“É triste, mas eu não acredito que meu governo esteja disposto a por um fim no controle sobre o povo palestino”. Desde 2004, por meio de depoimentos gravados de combatentes e ex-combatentes, sua entidade vem promovendo exibições e palestras para, segundo Yehuda, acabar com a ocupação, “fazer os israelenses ver, forçá-los a enxergar o que é feito em seu nome”. Para ele, as forças militares deveriam ser um instrumento de defesa e não de opressão e ocupação. “Nós acreditamos que um povo deveria governar a si próprio e não ser dominado por um exército estrangeiro. Mas, aqui, tristemente, isso soa como uma ideia bastante radical.”

Nesta entrevista, feita por Skype, Yehuda, hoje com 31 anos, explica como nasceu a iniciativa, sua própria experiência de três anos nos territórios ocupados, e o momento político e social em Israel hoje, entre outros temas. “Definitivamente vivemos dias sombrios. O nível de intolerância a questionamentos, a vozes e opiniões dissonantes, é altíssimo. Manifestantes têm sido espancados por justiceiros nas ruas de Tel Aviv sem que os policiais façam qualquer coisa”. Mas ele pontua: “Dentro das fileiras do Quebrando o Silêncio há muito otimismo. Somos minoria, mas uma minoria significativa.” Leia a entrevista:

Esquerda e direita
“Eu tenho 31 anos, nasci em Jerusalém, e cresci no meio do que se pode chamar de direita, em Israel. Direita e esquerda aqui não têm nada a ver com políticas sociais e econômicas, é principalmente sobre os assentamentos – a favor ou contra [Segundo a ONU, em 2011, existiam 150 assentamentos israelenses, com cerca de 500 mil colonos, na Cisjordânia]. Eu fiz o colégio em um assentamento em Ramallah. Minhas irmãs são colonos hoje na Cisjordânia. Meus primos foram colonos em Gaza, até a retirada, em 2005 [fim da presença permanente de tropas israelenses na Faixa de Gaza, durante o governo de Ariel Sharon]. Eu me formei e entrei nas Forças de Defesa de Israel (IDF). Aqui, nós somos convocados, homens servem três anos e mulheres, dois, obrigatoriamente. Eu servi de 2001 a 2004, como soldado de infantaria, terminando meu serviço como sargento de companhia – um grupo com cerca de 120 soldados. Servi dois anos na Cisjordânia, sendo um ano na cidade de Hebron, a maior cidade palestina de lá. Durante meu serviço militar, eu tinha muitas dúvidas e questões sobre coisas que fazíamos e víamos, nenhuma delas parecia correta, mas quando se é um soldado, você sempre acha uma forma de seguir em frente.”

Yehuda Shaul: “onde estão nossas barreiras morais?” (crédito: Quique Kierszenbaum)

Como nasceu a ONG
“Foi só quando eu parei de pensar como um combatente profissional e comecei a pensar na vida como um civil, no fim do meu serviço militar, é que eu percebi que não podia mais justificar 90% das ações que eu havia tomado parte. A lógica militar não fazia mais sentido. Esse forte sentimento de que algo estava errado é que me trouxe onde estou hoje. Eu não tinha ideia do que fazer, só sentia que eu precisava fazer algo. Então, procurei aqueles que podiam me entender, meus camaradas de serviço militar. Nós discutimos esses pensamentos e sentimentos e rapidamente eu descobri que eram comuns a todos. Nascia a Breaking the Silence. Aquilo com o qual nós sempre nos deparávamos era a constatação de que as pessoas em casa, em Israel, não tinham ideia, nossa própria sociedade, que nos mandava fazer o trabalho nos territórios ocupados, não sabia o que “fazer o trabalho” significava. Nós decidimos levar Hebron para Tel Aviv. Eu saí do exército em março de 2004, em junho, nós inauguramos uma exposição de fotos e vídeos em Tel Aviv. Éramos 64 pessoas, todas da minha unidade, nossos rostos na tela, os testemunhos em vídeo, nossas fotos nas paredes. Nenhum grande plano ou ideia de pra onde aquilo levaria. Era a primeira vez que um grupo de veteranos se organizava daquela maneira em Israel.”

A linha vermelha
“O que fazemos é muito simples, basicamente duas coisas: a primeira, registrar testemunhos em vídeo e áudio de soldados e ex-soldados sobre seu tempo no serviço militar – hoje quase mil homens e mulheres depuseram –, quase todos serviram após a Segunda Intifada [revolta palestina, de 2000-2005], em Gaza, na Cisjordânia. A segunda é usar nossa experiência pessoal e os depoimentos como uma ferramenta de educação. Fazemos palestras, paineis de discussão, viagens guiadas a Hebron, a Ramallah, tentamos levar o maior número de israelenses para os campos para que vejam o que nossa ocupação é, como é o gosto, o cheiro, o clima. Basicamente, somos um grupo de veteranos que acredita que nossa força militar deveria ser um instrumento de defesa e não de opressão e ocupação. Não somos pacifistas, nós apenas acreditamos que um povo deveria governar a si próprio e não ser dominado por um exército estrangeiro. Tristemente, nesta minha parte do mundo, isso soa como uma ideia bastante radical. Mas nós tentamos colocar um espelho na frente da nossa sociedade para exigir dela que assuma responsabilidade pelo que é feito em seu nome. Tentamos forçar o debate em Israel sobre o preço moral de se manter a ocupação. Tentamos trazer a questão que eu acredito ser a mais importante em uma sociedade democrática: onde estão nossas barreiras morais? Onde está a linha vermelha? Breaking the Silence é a forma de eu assumir responsabilidade pelo que fiz e pelo que fizeram em meu nome. Afinal, eu não acordei um dia com 18 anos e decidi ir para Hebron me divertir. Eu fui enviado para lá pela minha sociedade e os soldados enviados para Gaza agora foram enviados em meu nome. Não que eu ache que a responsabilidade comece e termine com os veteranos, ela começa e termina com cada ser humano no mundo.”

Incutir o medo
“Eu nunca invadi casas no meio da noite, arrombando apartamentos, em Jerusalém e, provavelmente, onde você vive a polícia também não faz isso. Mas, em Hebron, onde eu servi por um ano, há duas patrulhas militares e uma patrulha policial de fronteira. Seu trabalho é, no jargão militar, fazer sua presença notada. Você tem essas patrulhas 24 horas por dia, sete dias por semana. Você começa seu turno às 22h e vai até 6h. Caminha pelas ruas da velha cidade de Hebron, tromba com uma casa, uma casa palestina, não uma casa da qual você tenha alguma informação de inteligência [uma suspeita], uma casa qualquer, o sargento é quem a escolhe – eu fui sargento por alguns meses. Entramos, revistamos a família, homens de um lado, mulheres de outro, vasculhamos o lugar, você pode imaginar a dinâmica da coisa, o que acontece quando uma unidade militar invade sua casa no meio da noite. Acabamos a busca, voltamos pra rua, batemos em algumas portas, lançamos algumas bombas de efeito-moral, fazemos algum barulho, corremos até a esquina, invadimos outra casa, revistamos a família, fazemos uma busca, subimos no telhado, pulamos de um telhado para o outro, descemos pela sacada de uma terceira casa… e assim você passa as oito horas do seu turno, isso 24 horas por dia, sete dias por semana. E, de setembro de 2000, quando começou a Segunda Intifada, até hoje, nós não paramos um segundo sequer. A ideia é simples: todo palestino precisa sentir que há um militar respirando em sua nuca. Você nunca sabe quando nós vamos aparecer, o que nós vamos fazer, quando vai começar, quando vai terminar, quantas horas vai durar… tudo isso é o que os militares chamam de tchushat nirdafut [em hebraico], criar o sentimento de estar sendo perseguido, caçado, criar esse sentimento em uma população inteira. A única forma de dominar um povo para sempre contra sua vontade é fazê-lo temer você. E assim que ele se acostuma àquele nível de medo, você tem de aumentá-lo.”

As forças armadas
Nós somos convidados de tempos em tempos para falar com as Forças de Defesa de Israel (IDF). E nós vamos, mas não acreditamos nessas conversas. Nós sempre dizemos aqui que nós não falamos com a IDF, falamos sobre a IDF. Nós aprendemos que numa democracia o exército é um braço do Estado e o Estado é um braço do povo. Então, é o povo que tem de ser responsabilizado, é o povo quem deveria riscar as linhas, os limites, e não os militares. Não consideramos os militares o problema. Nós acreditamos que a missão política que os militares são enviados a executar é que é o problema. Qualquer militar que recebe ordens da sociedade para ir e ocupar e subjugar milhões de pessoas por mais de 47 anos vai se comportar daquela maneira. O problema é o objetivo da missão e não as pessoas que a estão implementando. E aqui vale reforçar, não se trata de dizer que os soldados não têm responsabilidade pelo que cometem, mas de lembrar que o quadro é bem maior. Se você quiser prender todo soldado que cometeu abusos contra os palestinos, toda minha geração irá pra cadeia. Eu não estou dizendo que todo soldado da IDF mata palestinos, longe disso! Mas ninguém que serviu nos territórios ocupados têm as mãos limpas.

Você não pode ser uma força de ocupação e não se comportar como tal. Você não pode servir nos territórios ocupados e continuar a ver os palestinos como seres humanos. Nosso argumento para o exército é: pare de mentir. Diga para  a sociedade “você quer que nós ocupemos a Palestina, você quer que nós mantenhamos vivo o projeto dos assentamentos, você quer que nós dominemos o território onde gente de verdade, colonos e palestinos vivem, com dois sistemas legais diferentes, duas distintas condições de direitos? A única forma de fazê-lo é assim: 1-2-3. É pegar ou largar. Já se vão 47 anos, são 2/3 do tempo que o Estado de Israel existe. Isso é o nosso projeto nacional, manter, preservar e entrincheirar nosso poder militar absoluto sobre os palestinos. É pra onde vão nossos recursos políticos, econômicos, militares, diplomáticos, este é o projeto nacional do Estado de Israel. Eu acho que o número de israelenses que hoje consegue imaginar o país sem os territórios ocupados é menor a cada dia. E, do outro lado, se você pensar nos palestinos da minha idade… eles nem sabem o que é viver em liberdade. Isso é doentio.”

Crianças palestinas em um funeral em Gaza, durante a operação Margem Protetora (crédito: Unicef/ElBaba)

A sociedade israelense
Eu diria que hoje nós vivemos dias sombrios. As coisas realmente estão piores do que em qualquer época que eu possa me lembrar. O nível de intolerância a questionamentos, a vozes e opiniões dissonantes, é altíssimo. Manifestantes têm sido espancados por justiceiros nas ruas de Tel Aviv sem que os policiais façam qualquer coisa. Mas esse incitamento tem vindo, não há dúvida, de cima, do primeiro-ministro, dos ministros, dos membros do parlamento, até chegar aqui embaixo. Os vigilantes, os justiceiros estão se proliferando. É temporada de caça às pessoas de esquerda. A história do sequestro dos três adolescentes [mortos em junho, na Cisjordânia]? O incitamento começou com ministros de Estado clamando por vingança. Algumas pessoas atenderam a isso e tivemos o assassinato de Mohammed Abu Khdeir, aquele jovem palestino de Jerusalém Oriental queimado vivo [morto em 2 de julho]. Por esses dias, durante a operação Margem Protetora, tivemos primeiras páginas de grandes jornais daqui com falas de ministros e generais pedindo para varrermos vizinhanças inteiras em Gaza… isso é impensável!  É uma atitude que desce para as ruas. As pessoas  sentem isso e agem assim. Nós tivemos um professor, da Universidade de Bar-Ilan, de Tel Aviv, que, em uma entrevista no rádio, apresentou uma ideia para parar e combater os terroristas: estuprar suas mulheres… A palavra paz perdeu seu significado. Nesta parte do mundo é uma palavra completamente irrelevante hoje em dia.

Repercussão em Israel
[Após longa pausa] É importante por as coisas em contexto, especialmente em um lugar como Israel, onde a ocupação é algo tão próximo, onde as forças armadas são algo muito próximo, então, na sociedade, esta é a última coisa que o povo quer ouvir. A negação, o muro do silêncio é alto e largo. Nós sempre dizemos que o dia em que a Breaking the Silence for popular significa que paramos de fazer nosso trabalho. Porque, por definição, nossa função é estragar a festa. Nós lembramos nossa sociedade que mesmo que a vida seja bonita em Tel Aviv, existe a Cisjordânia, existe Gaza, cuja responsabilidade é nossa. Ninguém quer ouvir isso. Especialmente quando você fala sobre seus filhos ou sobrinhos e sobrinhas. A última coisa que você quer pensar é que eles estão fazendo aquelas coisas horríveis que nós mencionamos. Então, ninguém faz fila pra nos ouvir, mas por outro lado, há sempre mais e mais pessoas dispostas a ouvir o que temos pra dizer. Em nossas fileiras há muito otimismo. Somos minoria, mas uma minoria significativa. Mas só teremos paz quando os dois lados puderem ter dignidade.

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