Na edição especial de janeiro (nº 730), dedicada ao balanço de dois anos do Governo Dilma, a revista CartaCapital publicou um artigo de Vladimir Safatle, intitulado Os impasses do lulismo. (clique aqui para ler). Nele, o autor considera que a metade do atual mandato é “um bom momento para colocar questões a respeito dos rumos que o Brasil tomou desde o primeiro governo Lula”.

Inicia o texto criticando tanto as avaliações que assumem um “tom laudatório” como aquelas de “negação absoluta” das conquistas do governo. Segundo o autor, tais análises impedem a compreensão do lulismo, “uma tarefa importante neste momento”.

O enfoque inicial de Safatle é interessante e poderia trazer importante contribuição para debater os rumos do país. Contudo, acaba confundindo o lulismo com desenvolvimento, Governo Lula e Lula. Ainda que sejam elementos de um mesmo processo histórico e fortemente relacionados entre si, sendo mesmo difícil definir suas fronteiras, considerá-los indistintamente também nos impede de compreender o próprio lulismo.

Safatle avalia que “talvez estejamos assistindo, com o Governo Dilma, ao esgotamento do lulismo”, que teria como principal sintoma o fato da presidenta “parecer se encaminhar para ser a gerente de um lulismo de baixo crescimento”. O lulismo seria, portanto, uma política econômica, que estaria se esgotando porque observamos os “dois últimos anos de baixo crescimento”.

O autor, em busca do significado desse declínio, questiona: seria essa “a prova de que o modelo em vigor no panorama brasileiro chegou a um impasse?” O lulismo também seria, portanto, um modelo de desenvolvimento econômico, em relação ao qual o baixo crescimento significaria um afastamento.

É grande o risco de fazer confusão quando se associa o índice de crescimento ao esgotamento do lulismo em seu conjunto. Analisar o ciclo de desenvolvimento olhando apenas para o PIB, tomar o todo pela parte e realizar uma correlação sem mediações entre a conjuntura econômica e a política não parece um bom caminho a seguir.

Em relação ao governo Dilma, afirma Safatle: “No plano econômico, tudo se passou como se o governo acreditasse que a continuidade bastasse”. Assim, não percebe que existe uma mudança de perspectiva estratégica na política econômica do desenvolvimento, conferindo aos investimentos produtivos a centralidade que antes era ocupada pelo consumo de massas.

A miopia se expressa, inclusive, ao ignorar solenemente a redução dos juros e as iniciativas para elevar os investimentos e reconstruir a infraestrutura logística do país. Por isso, Safatle acha continuísmo onde há descontinuidade.

O autor caracteriza o lulismo como fiador de “um modo de gestão de conflitos políticos” baseado na sua transposição “da sociedade civil para o interior do Estado.” A posição de Lula como “mediador universal” teria transformado aquilo “que seria, em situações normais, sintoma de esquizofrenia política” uma oportunidade para o governo “ganhar em todos os tabuleiros”, esvaziando as oposições à direita e à esquerda e tornando-se ao mesmo tempo “o governo e sua própria oposição”.

Muito curioso: para Safatle, isso não é uma esquizofrenia política!

Pelo contrário, “digna de profunda preocupação” seria o fato de Dilma ter optado “por um governo com menos bipolaridade e mais centralizado”, pois isso teria selado “de vez a incapacidade do governo em formular e discutir alternativas”. O que é qualidade no Governo Dilma, é defeito segundo o autor.

Se a presidência da república tem mais condições de ditar os rumos do poder executivo, com menos margens para insubordinações ministeriais, tanto melhor!

Afinal, não é a partir do conflito direto entre setores do governo que se produz alternativas, mas da capacidade do poder Executivo – que não tem esse nome por acaso – em produzir sínteses a partir das contradições presentes na sociedade civil, o que demanda a existência de pluralidade, mas que não se confunde com bipolaridade ou oposição dentro do próprio governo.

De acordo com o argumento de Vladimir Safatle, portanto, a mudança na forma de conduzir a presidência da república contribui para a hipótese de que estaríamos assistindo ao “esgotamento do lulismo”. Ou seja, com Lula fora da presidência, o lulismo se fragilizaria.

Ainda sobre o Governo Dilma, o autor avalia: “o Brasil continuava um país de níveis brutais de desigualdade” e “uma larga parcela da nova riqueza circula pelas mãos de um grupo bastante restrito”: “Ou seja, o governo parou de pensar a desigualdade como o problema central da sociedade brasileira”.

Dito de outra forma: o capitalismo segue concentrando riqueza, logo, o governo deixou de considerar a desigualdade como questão central!

Devemos lembrar a Safatle que peixe é peixe e boi é boi: peixe-boi é outra coisa. Seria mais preciso dizer que as políticas de combate à miséria, encaradas como prioridade pela presidenta, entram em contradição com o processo de monopolização do capitalismo patrocinada pelo Estado via financiamentos do BNDES, aliás bem apontada pelo autor. Melhor seria afirmar que enfrentar a desigualdade exige a democratização da comunicação social e realização de reformas estruturais no país: política, tributária, agrária, urbana etc.

O problema, portanto, não é como o governo pensa o lugar da desigualdade no país, mas o fato de adotar medidas econômicas que operam no sentido oposto ao desejado, potencializando a concentração de riqueza, além de não modificar as bases sobre as quais se sustentam o capitalismo monopolista e dependente do Brasil.

Em relação às classes sociais, diz Vladimir Safatle: “Uma família da nova classe média brasileira deve gastar, porém, quase metade de seus rendimentos com educação e saúde privada”. Na verdade, quem continua pagando esses serviços são, em geral, as famílias da velha classe média brasileira, pois a parcela mais expressiva da classe trabalhadora que recentemente aumentou seu poder de consumo segue dependendo da educação pública e do SUS.

Adotar a renda familiar como critério de analise das classes sociais levou Safatle a considerar que seu aumento e a decorrente ascensão social resultam em mudança de classe. Com isso, passa a enxergar uma nova classe média onde existe um novo processo de formação da classe trabalhadora.

Ao final do texto, Safatle constata a consolidação de dois partidos na vida política brasileira, o PSB e o PSD: “dois partidos que têm, como grande característica, não ter característica alguma” e “parecem indicar o futuro da política brasileira”.

Porém, não apresenta explicação convincente para o fenômeno nem fundamenta suas projeções. Se limita a considerar que se trata da “expressão mais bem-acabada” do que considera a “saída de cena das grandes modificações”, ou o esgotamento do lulismo.

Bem vistas as coisas, a força com que o PSB e o PSD saíram das eleições municipais é resultado direto da vitalidade do lulismo, não de seu esgotamento. O resultado de 2012 mostra os partidos que se puseram a criticá-lo sofrendo duras derrotas, enquanto aqueles que dele se aproximaram ou se abrigaram sob o seu guarda-chuva experimentaram vitórias.

Talvez Safatle fosse mais preciso caso analisasse o lulismo como um campo político amplo e heterogêneo que tem objetivos, se orienta por um programa, desenvolve uma estratégia, promove uma aliança entre classes e frações de classe e mobiliza uma base social.

Com isso, compreenderia melhor que lança mão de táticas variadas, muitas vezes contraditórias, para se movimentar de acordo com esta estratégia, implementar seu programa e contemplar sua base. Além disso, localizaria melhor o lugar e o papel de Lula, de Dilma e do PT neste campo político, ao invés de relacioná-los com o lulismo ora simplificando ora desconsiderando os pontos de conflito e de colaboração existentes entre eles.

Deste modo, o autor conseguiria inclusive explicar melhor que os impasses do lulismo não se expressam nem se resumem na taxa de crescimento do PIB, nas formas de gestão do Estado ou na consolidação de “partidos-curinga”. O problema de fundo é que o programa e a estratégia que o lulismo formulou e desenvolveu foi capaz de fazer o Brasil percorrer o caminho até aqui, mas não será capaz de conduzi-lo mais além se continuar como está.

Em outras palavras, ele tem se saído relativamente bem na luta pela superação do neoliberalismo, mas é insuficiente para derrotar o desenvolvimentismo conservador e excludente e implementar em seu lugar um desenvolvimento democrático e popular.

Isso porque, por um lado, econômica, social e politicamente a margem de manobra da qual o lulismo sempre se aproveitou está cada vez mais estreita, em função das transformações nacionais e internacionais que o acompanharam em sua trajetória e tendem a continuar.

Por outro lado, as medidas necessárias para desatar os nós da nossa formação econômico-social exigem nova orientação estratégica e maior capacidade de mobilização, sem as quais este campo não conseguirá cumprir com o objetivo que animou seu surgimento nem atender as expectativas que gerou com sua ascensão: construir um país justo, democrático, soberano, desenvolvido e ambientalmente sustentável, que valoriza sua diversidade e promove a paz.

O lulismo segue forte, talvez mais do que nunca. Portanto, convenhamos: uma coisa é dizer que o lulismo chegou a um impasse; outra bem diferente é afirmar que ele esteja se esgotando. Se considerarmos o lulismo em sua dinâmica histórica e não como modelo, a questão é saber se ele será ou não capaz de se reconfigurar para superar tal impasse e fazer a necessária mudança de rumos na história do país.

O artigo de Safatle termina com a ideia de que “uma radicalização paulatina dos extremos” seria “talvez a única condição para que voltemos a pensar politicamente”. Ora, cenários polarizados se constroem a partir de projetos antagônicos em conflito, que por sua vez dependem do pensamento e da ação de seus apoiadores. Se o autor anda com dificuldades para “pensar politicamente”, deveria falar por si, na primeira pessoa do singular e não no plural.

*Rodrigo Cesar é militante do PT-SP

 

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