O livro “A imprensa e o arcebispo vermelho (1964-1984)” (Edições Paulinas,1992), de Sebastião Antonio Ferrarini, analisa o modo como a imprensa brasileira, em especial, os jornais O Globo, O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, participaram de uma ampla campanha de críticas e insultos ao bispo da Arquidiocese de Olinda e Recife.

Entre outros insultos, D. Hélder Camara foi chamado nesta campanha difamatória de “perigoso purpurado, líder comuno-nacionalista, arcebispo da subversão, bispo vermelho, opiáceo revolucionário, Fidel Castro de batina, guerrilheiro eclesiástico, pai da mentira, herdeiro espiritual do Antonio Conselheiro, vocação perdida de filósofo especulativo, fogoso fascista, arcebeatle Camara, gralha tagarela, líder anarco-esquerdista do clero, corruptor das consciências, carbonário incendiário, futuro Torquemada, Rasputin do Recife e Olinda, comunista sino-cubano, carcará vermelho, arcanjo do ódio, príncipe da Igreja cubana, romeiro do ódio ao Brasil, garanhão da desordem social, caixeiro-viajante da difamação, pastor de almas penadas.”

O livro reproduz a famosa entrevista de Dom Hélder Câmara ao semanário “Politika” em 1972. O DOPS proibiu sua publicação, destruindo os exemplares já impressos. Ela seria, então, republicada no jornal “O amigo do povo” de agosto de 1979. A seguir, transcrevemos os trechos em que Dom Hélder configura nitidamente a sua identidade socialista e marca o diálogo necessário com o que chama de “neomarxismo”.

Entrego em vossas piedosas mãos o recorte de um artigo publicado em “O Globo” – “Meã Culpa” de autoria de Roberto Marinho, no qual ele acusa Vossa Reverendíssima de ter abjurado o socialismo, inclusive de retornar às antigas concepções de direita.

Dom Hélder – O artigo prova que “O Globo” não leu, jamais,as palestras, as conferências que tenho proferido ao longo destes oito anos e, até, livros que estão publicados, nem também leu os discursos que fiz agora na Alemanha e na Inglaterra.

Se tivesse lido, tanto os discursos de agora como os anteriores que foram feitos ao longo desses oito anos de pregação da justiça como caminho para a paz. Se tivesse comparado o que disse em Munique, em Münster, em Freiburg e depois na Inglaterra, em Liverpool e em Londres, como o que tenho agora andado dizendo, com o que tenho, inclusive, escrito, veria que não há nenhuma alteração na minha linha de conduta. O que eu digo é que há injustiça por toda parte. Desejo um mundo mais justo, porque sem justiça não haverá paz. Denuncio as injustiças criadas, sobretudo, pelas superpotências capitalistas, mas sem poupar jamais as superpotências capitalistas e as superpotências socialistas. Não estão, propriamente, nas atitudes para com o Terceiro Mundo porque eu acho que, dos dois lados, quando lhes convém, elas exploram as mútuas divergências, mas também quando lhes convém sabem marchar juntas, com vistas à redistribuição periódica das zonas de influência no mundo. De diferente mesmo que eu vejo é que para mim o capitalismo é intrinsecamente egoísta, sem jeito, sem remédio. A meu ver, não vejo saída para o mundo numa linha capitalista ou neocapitalista. Aí está como floração mais nova, Deus permita que, derradeira, no capitalismo, a macro-empresa multinacional, sem dúvida uma obra prima da moderna tecnologia mas também exemplo tremendo do mau uso da técnica, porque essas máquinas enormes, que poderiam estar a serviço da humanidade, são postas a serviço de grupos cada vez mais restritos. Quando denuncio as barbáries cometidas pela China, pela Rússia, lembro que se trata da deformação do socialismo. Espero muito de uma socialização humana, que não caía, de modo algum, na ditadura de partido ou de governo, e nem se prenda ao materialismo. Quando perguntam se posso contar algum exemplo de um socialismo desse tipo, eu lembro que talvez o da Tchecoslováquia estivesse caminhando nesta direção, quando foi ela esmagada pela Rússia. Lembro que, veria, salvo engano, Allende, no Chile, tentar, desesperadamente, criar um socialismo chileno, que não repita Rússia nem China nem Cuba. Que atenda às marcas, às características do povo chileno, mas quando há uma tentativa destas, em área capitalista, como é o caso do Chile, não há esmagamento através de tanques, mas há outros esmagamentos…Os privilegiados do país, que perdem os seus privilégios abusivos, gritam, clamam e obtêm imediatamente o apoio da macro-empresa que tem mil maneiras de tornar impossível a caminha de um país subdesenvolvido, que se quer liberar. Mas não quero ficar monologando. Com certeza, você tem outras perguntas a fazer.

V.Revma. acredita no socialismo com o único sistema político e filosófico, capaz de reajustar, sob o aspecto político-econômico social a humanidade ?

Dom Hélder – Bem, quero deixar muito claro que a minha responsabilidade não envolve de modo algum a posição da Igreja. A Igreja está acima dos sistemas econômicos, de correntes partidárias, como também de escolas literárias. Ela está acima. A rigor, desde que o sistema salvaguarde a justiça e a caridade, ela não teria nada a opor. A Igreja não pode impor, nem nunca impõe, nem pretende impor nenhum sistema. Agora, pessoalmente, embora no momento veja que as grandes realizações socialistas estão distorcidas, e são inúmeras, eu penso, sobretudo, na Rússia e na China- no entanto, tendo mais esperança na experiência de uma socialização humana que atenda o alvo dos nossos povos da América Latina e do Terceiro Mundo e não incida, nem no materialismo dialético nem na ditadura, todas são repelentes, tanto as de direita como as da esquerda. São intoleráveis.

Como estudioso das Ciências Sociais e, conseqüentemente, interessado na atual conjuntura político mundial, li há pouco a encíclica Octogésima adveniens em que o Santo Padre Paulo VI condenou aos infernos o regime capitalista e o regime marxista. O primeiro por ser o imperialismo do dinheiro, a tirania do lucro, o regime que considera a propriedade propriedade dos bens de produção como direito absoluto, sem limites, sem obrigações sociais. E o marxismo por ser materialismo ateu, partidário da violência e da luta de classes. V. Revma. podia dar uma idéia de como será edificada a nova sociedade ?

Dom Hélder – Claro que eu conheço, aceito e admiro a Carta do Santo Padre a que você se refere. Apenas lembraria que hoje, entre os marxistas, existe o neomarxismo. Penso, pelo menos, em homens como Roger Garaudy. Penso no mais recente dos seus livros, que me trouxe uma alegria muito grande: “ La Alternative”, publicado recentemente na França. Os marxistas que caminham para o neomarxismo, para uma revisão do marxismo, em vez de ficarem apenas repetindo o que Marx disse, o que Marx pensou, agindo como Marx agiu, procurar agir, agora, de acordo com a realidade que aí está. Verificam que a ligação, que Marx supôs que era necessária e indispensável, entre religião e alienação, não é necessária. Tanto não é que, hoje dentro das grandes religiões do mundo, inclusive dentro do cristianismo, há grupos que absolutamente não aceitam que a religião seja vivida e levada a viver como força alienada e alienante, como ópio para o povo, procuram viver e fazer viver uma religião, ao contrário, encarnada com o Cristo. Outro reparo e isto está sendo feito pelo neomarxismo, é em relação à ligação entre socialismo e materialismo dialético. Marx chegou apensar que o único socialismo que seria capaz, realmente, de livrar o mundo das estruturas de opressão, seria o socialismo baseado no materialismo dialético. Enganou-se duplamente. Primeiro, porque o materialismo dialético não está sendo capaz de salvar a Rússia e a China das graves distorções a que o socialismo, nessas duas superpotências, vem sendo submetido. Depois, há socialistas que não querem ser materialistas. Os materialistas que o digam. Tinham a impressão de que aceitar e admitir Deus,era transformar o homem num escravo. Hoje se sabe que na verdadeira interpretação cristã, Deus, ao invés de querer manobrar o homem, ao invés de querer ser um Deus que absorve tudo, quer que o homem, criado à sua imagem e semelhança, participe do seu poder criador. Seja co-criador. Ele que poderia facilmente ter feito o mundo concluído, acabado e perfeito, de propósito, apenas iniciou e esboçou o mundo, deixando ao homem o encargo de tomar a natureza e completar sua criação. Então, hoje, se entende que um jovem inteligente possa, sem nenhuma dificuldade, admitir Deus. Admitir o espírito, porque isto não é sinônimo de reduzir o homem a um autômato. Então, dizia eu, claro que aceito e aprovo a Carta do Santo Padre, no octogésimo aniversário de Rerum Novarum, mas apenas lembro que o próprio Santo Padre sabe que já há uma possibilidade de diálogo, não com aqueles que se amarram nas teses marxistas, não com aqueles que não abrem mão do materialismo dialético e o querem impor pela força. Mas é possível um diálogo com aqueles que evoluíram do velho marxismo. Guarda a crítica ao capitalismo, que continua, em grande parte, válida. Basta lembrar que Marx chegou a antever a macro-empresa multinacional.

O concílio Vaticano II, no documento Gaudium et Spes, procura edificar, à luz do Evangelho, uma sociedade nova, uma espécie de morada da justiça e de bondade, e afirma que segue neste ponto o mjistério da Igreja nos seus mais recentes documentos e cita a nota “ Mater et Magistra”, “Pacem in Terris” e “ Ecclesian Suan”. Não acha V. Revma. que tais idéias e soluções apresentadas pelo Santo Padre são meras utopias, mais um sonho frustrado, como muitos outros de Santo Agostinho em “ A cidade de Deus” e Campanella em “A cidade do Sol”.

Dom Hélder – Primeiro, quero referir-me à divergência de propriamente a Igreja construir sistemas políticos e cidades terrenas. A religião deve servir de inspiração para todos aqueles que trabalham pela justiça. Recordo, a seguir, que um dos grandes erros cometidos através dos tempos, foi pensar que a eternidade deveria de tal modo absorver o pensamento que esquecêssemos o tempo. Hoje, se sabe, a eternidade começa aqui. É aqui que ela é construída. Por outro lado, devo dizer, em relação à utopia, que ai do mundo se não fosse a utopia. Ai do mundo se não fossem os sonhadores. Se os homens não sonhassem, hoje não estaríamos partindo para as viagens espaciais. É porque houve um “Mito de Prometeus”, porque, através dos tempos, o homem sempre ansiou voar, arrancar-se da terra, que estamos desembarcando na lua. Deus fez o homem grande demais para caber na terra pequenina. O homem é chamado por Deus a participar da sua natureza divina, do seu poder criador. Para mim, ser chamado de utópico, ser chamado de Quixote, está longe de ser uma nota depreciativa. Sinto-me honrado quando, às vezes, me aproximam do cavaleiro andante…

Neste caso, o adjetivo de utópico caberia à Sua Santidade?

Dom Hélder – O utópico cabe a todos aqueles que têm imaginação criadora. Eu me lembro em família, em casa, uma das notas mais terríveis era dizer que alguém não tinha imaginação. A imaginação criadora faz parte do poder criador do homem, do homem que não nasceu para repetir. Que não se conforma com o mesmismo, de ir e voltar sempre pelos mesmos caminhos. Do homem que não aceita, no mau sentido da palavra, burocratizar-se, mas que sente dentro de si uma força que foi ali colocada pelo próprio Deus. Uma força que o transforma em participante da própria divindade. Então, neste sentido, não há limite para a imaginação do homem.

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