Mobilização pelas Diretas-Já pauta há 20 anos o sentimento de união nacional que ajudou a mudar o Brasil.




A movimentação na Praça da Sé começou cedo no feriado de quarta-feira 25 de janeiro de 1984, aniversário dos 430 anos de São Paulo. Por volta das 11 horas chegaram os primeiros militantes com megafones, convocando para um comício horas depois. A praça foi se enchendo de gente comum, comerciários, secretárias, motoristas, uma multidão empurrada pela emenda que restabelecia eleições para presidente, suspensas pela ditadura. No palanque, defendiam a causa políticos como Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Fernando Henrique Cardoso e Lula, e personalidades como Chico Buarque, Osmar Santos, Henfil e Fafá de Belém. A massa de 250 mil pessoas não parava: “Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o presidente do Brasil!” Outras manifestações tinham acontecido antes, mas a Sé é que revelou a magnitude do movimento. Dois meses e meio depois, no Rio de Janeiro, um milhão de pessoas iriam à Candelária. “Dificilmente repetiremos uma mobilização semelhante”, avalia Dante de Oliveira, autor da Emenda das Diretas, que acabou rejeitada.

Passados 20 anos, há distanciamento bastante para avaliar de que forma as Diretas-já e a rejeição da emenda influenciaram a política nacional. Com esse objetivo, Dante, vice-presidente do PSDB, lança em março o livro Quinze meses que abalaram a ditadura, com o ex-deputado federal Domingos Leonelli. Dante estava na época com 32 anos e cumpria seu primeiro mandato de deputado pelo PMDB. Entre várias emendas, a sua foi escolhida porque Ulysses Guimarães considerava seu texto o mais simples. Acabou rejeitada em 25 de abril: precisava de 320 votos e recebeu 298. “Se tivéssemos eleições, a oposição teria uma candidatura comprometida com mudanças mais profundas. No Colégio Eleitoral, aumentou o peso dos dissidentes da direita, como José Sarney e Marco Maciel, e a candidatura (Tancredo Neves) foi mais moderada”, avalia.

O cientista político Alberto Tosi Rodrigues também resolveu analisar a ebulição em livro – Diretas-já: o grito preso na garganta, da Fundação Perseu Abramo. “Foi a primeira expressão genuína da política de massas de baixo para cima no Brasil republicano. O que distinguiu as Diretas foi a autonomia dos atores mobilizados, que não se deixaram manipular”, acredita. O movimento, segundo ele, pautou a política brasileira nos anos seguintes. “As forças mobilizadas impuseram à Nova República nos anos 80 o restabelecimento pleno de direitos.” Para o cientista político, o que bloqueou a agenda de direitos sociais foram a crise internacional e a inflação. “Quase tudo que se fez na década de 90 foi no sentido de limitar direitos para enfrentar essas crises, inclusive no governo Fernando Henrique. O governo Lula retoma, pelo menos metaforicamente, o ‘espírito’ da campanha das Diretas, na luta por direitos sociais.”

É possível que uma mobilização assim se repita um dia? Muitos que há 20 anos subiram naqueles palanques eletrizantes duvidam. Fafá de Belém, que marcou a carreira interpretando Menestrel das Alagoas, de Milton Nascimento e Fernando Brandt em homenagem a Teotônio Vilela, acha que a política e os militantes mudaram muito. “Tudo era feito por amor à causa. Eu e João do Vale fomos a todos os cantos do Brasil de barco, caminhão, lombo de burro. Hoje só se pensa em dinheiro, toda participação tem preço.” Quem via a cantora soltar uma pombinha branca nos palanques, gesto sugerido por Henfil, não sabia que ela comprava as aves com seu dinheiro. “Foi um privilégio viver aqueles momentos”, afirma. A enfermeira paulista Rosângela Lopes, 51 anos, uma das anônimas que há 20 anos lotavam a Sé, participou ali de seu primeiro e último comício. “Tento explicar para os meus filhos a emoção que senti, mas tudo que eu possa dizer é pouco. Só quem esteve lá é que sabe.”


* Publicado na IstoÉ de 21/01/2004 – Memória

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