Henfil
Depois do golpe de 1964, os militares no poder cometeram muitos erros estratégicos. Um dos mais graves foi mexer com irmão de humorista. Para azar deles, (dos militares, não dos humoristas – estes sabiam com quem estavam lidando), perseguiram parentes de monstros sagrados do humor brasileiro, entre os quais, Henfil.
O sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, irmão mais velho de Henfil, sofreu uma das mais implacáveis perseguições depois de 1964. Líder estudantil da Juventude Universitária Católica, projetou-se nacionalmente através da Ação Popular, corrente política que comandou a União Nacional dos Estudantes no início dos anos 60. Viveu dois golpes militares na vida. Em abril de 1964, trabalhava no Ministério da Educação quando o presidente João Goulart foi deposto. Betinho exilou-se no Uruguai e retornou ao Brasil pouco tempo depois, para viver clandestinamente na região metropolitana de São Paulo. À medida que o cerco policial apertava, teve que retornar ao exílio, indo para o Chile governado pelo socialista Salvador Allende. O golpe militar de setembro de 1973, comandado pelo general Pinochet, fez com que Betinho se refugiasse novamente. Nos seis anos seguintes, o irmão de Henfil viveu no Panamá, no Canadá e no México.
Ainda no começo da carreira, quando se mudou de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, Henfil já era monitorado pelos órgãos de segurança pelo parentesco com Betinho, como mostra este trecho do relatório reservado do CENIMAR: “Seu nome verdadeiro é Henrique de Souza Filho. É irmão de um dos chefes da AP (Ação Popular), Sr. Herbert José de Souza, elemento de cúpula da organização que lá foi detido várias vezes por atividades subversivas. HENFIL é chargista radical de esquerda. Até junho/67 colaborava com a revista MOSSICO (o nome do periódico era MOSAICO) do DCE da UFMG (Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais) que reflete a orientação da UNE enquadrado na linha política da Ação Popular”.
A partir de 1977, depois que começou a colaborar semanalmente na revista ISTO É, Henfil deu o troco. Nas “Cartas da Mãe”, fez diversas referências ao irmão exilado. Através de seu drama familiar, expunha publicamente o lado obscuro do país (com presos políticos e oposicionistas banidos e exilados). Como o humor é a reversão da expectativa, Henfil liqüidava com a falsa imagem dos perseguidos políticos que os militares procuravam passar à opinião pública (tratados oficialmente como terroristas sangüinários, delinqüentes cruéis). Quando estreou na revista, em março de 1977, prometeu à Dona Maria que ficaria bonzinho. (Só vou criticar a seleção”). Quinze dias depois, no entanto, já falava em anistia numa imaginária conversa com o presidente Geisel: “Chega e fala assim (podemos redigir juntos, hein? hein?: Povo brasileiro! Decidi aqui com meu amigo Henfil o seguinte: o salário mínimo passa para Cr$ 3.000,00, o AI-5 para o AI-5, anistia geral, eleições diretas anuais.”
Betinho voltaria a ser lembrado no final de 1977, perto do Natal, quando Henfil comentava com a mãe a ausência do irmão: “A senhora sempre disse que Natal só é bom com a família reunida, que é muito triste ficar contando as cadeiras vazias na ceia da meia-noite-feliz. Pois parece que, por mais um ano, na nossa mesa não poderão estar presentes o Betinho e a Maria. E como na nossa, noutras tantas mesas de Natal pelo Brasil afora, cadeiras ficarão vazias, viúvas de vivos”.
Em 1978, as lembranças do irmão que vivia no exterior eram publicadas repetidas vezes nas páginas da ISTO É. Em pelo menos nove edições da revista, Henfil insistia na falta que Betinho estava sentindo de um bom feijão tropeiro, do biscoito de polvilho, do pijama de algodão cosido pela mãe e do guaraná. Através da “Revista do Henfil”, espetáculo dirigido por Ademar Guerra e produzido por Ruth Escobar, que se baseava nos textos e desenhos do humorista, a questão da anistia política extravasava os limitados círculos políticos e acadêmicos. O tema ganhou fôlego ao ser apresentado a diversas platéias de todo o Brasil. Henfil terminou o ano sonhando com os preparativos da volta do irmão. Desejava que o presidente Geisel, num rompante, assinasse a anistia para passar “um Natal de consciência tranqüila, quebrando nozes numa boa”.
O limitado debate na sucessão presidencial de Geisel colocou a anistia definitivamente na agenda política do país. O sucessor de Geisel, João Baptista Figueiredo, foi “eleito” prometendo continuar a distensão lenta, gradual e segura do antecessor. Era o que bastava para que Henfil falasse do irmão todo mês na ISTO É. O humorista criticava a decisão governamental de negar passaporte para os exilados, condenava a tibieza oficial em relação à Flávia Schilling, presa no Uruguai, e exigia uma anistia ampla, geral e irrestrita. Quando ela veio, Henfil comemorou a seu modo na carta para Dona Maria:
“(…) Naquela algazarra de guaranás, pães de queijo, tutu com lingüiça, biscoitos de farinha, o riso tava soltinho comemorando a intervenção de cada irmão no assunto frouxo que nem bola de meia. E a senhora se encolhia cheia de sorrisos e de silêncios. A filharada já grande voltava para festejar o irmão exilado, e à mãe cabia apenas ceder o ninho onde todos um dia dormiram ouvindo a senhora cantar: “Com minha mãe estarei, na santa glória um dia, viva a Virgem Maria, no céu triunfarei. No céu…No céu…Com minha mãe estarei. No céu…No céu…
Aquele calor era tão bom que a gente foi relaxando, amolecendo a cabeça, acendendo os faróis baixos e folgando na roupa.
E aí foi que a senhora falou. Disse assim que no Brasil quem manda são os velhos. De Castello, Costa e Silva, Médici, Geisel a Figueiredo, todos velhos de mais de 60 anos. Mas vai alguém com mais de 35 anos tentar arrumar trabalho numa fábrica ou escritório e não consegue porque já tá velho.
Quem tava cochilando acordou. Quem bebia doce pediu cerveja. O irmão exilado que ronronava nos braços da nossa saudade leu os olhos da senhora pra confirmar, e confirmou.
Agradecemos todos ao Senhor o alimento que tomamos e um a um saiu como saíamos em 63 da mesa lá de casa , na rua Ceará, em Belo Horizonte.
Dezesseis anos depois, os filhos espalhados pelo Brasil e pelo exílio do mundo se reuniram, para, bem-alimentados, ouvir de novo a voz da luz do fundo do útero: a luta continua!
Obrigado, mãe, por me deixar fazer a digestão. Tô indo.
Abaixo a ditadura!”
E a ditadura caiu. É certo que demorou muito. Henfil, que morreu de Aids aos 44 anos, em 1988, nunca votou para presidente da República. Duas décadas depois da conquista, na prática, de uma anistia ampla, geral e irrestrita, ainda falta muito para colocar este país numa verdadeira democracia, sem as acintosas iniqüidade que vemos hoje. Mas já andamos muito e muito devemos a humoristas como Henfil, que soube mostrar a todos os brasileiros a dor provocada pela perseguição política a seu irmão.