Nossa gente é autoritária (sabe com quem está falando?) e pouco cordial, desmentindo as lendas. Brasileiro tem muito desejo e escassa vontade. É grande a diferença.

Quatro Ases e Um Coringa
Para Olívia saber como era o País do seu avô…

Sou um cavalo bravo domado pela filha para ser cavalgado pela neta. Olívia nasceu de Malu e Joel no sábado em que Zico e Sócrates perderam os pênaltis contra a França. Pelo primeiro aniversário hoje, reproduzo "O País dos Dormentes", artigo que escrevi para a terceira página de um grande jornal que, todavia, não o publicou.

Não sei como será o Brasil do tempo de Olívia, mas quero que ela saiba como era isto aqui no tempo do seu avô, coitado. É este pobre presente para a neta nº1, a primeira, a única, a mais querida de todas. Sei que esta página será guardada até quando ela puder ler (e entender) o que aqui escrevo agora.

Deitado eternamente em berço esplêndido, o Brasil é o rei da dormência. E estaria importando 200 mil dormentes da Argentina, a 26 dólares cada. Para a Ferrovia do Ouro? Não, para mais uma reconstrução da Ferrovia do Aço, a interminável. Curiosidade: o dormente nacional (!) custa abaixo de 20 dólares a unidade – e tem a dar com o pau mas, pelo sabido, importar é a solução.

Lembra "Tanga", filme que o genial Henfil acaba de concluir, em que conta histórias da ilha da fantasia, onde os nativos exportavam seus próprios cabelos, para poderem importar ricas perucas. "O humor é a delicadeza do desespero", definiu Boris Vian. O super-homem existe e o nome dele é Henfil, revelo eu. A gente aqui exporta matas, bosques, florestas, selvas, toda a Amazônia, se der veneta, mas – importamos … dormentes. Resultado: o geólogo Orlando Valverde, que preside o Centro Nacional de Defesa e Desenvolvimento da Amazônia, prevê que a "continuar o atual ritmo de desmatamento, Rondônia ficará sem suas florestas no próximo ano; Mato Grosso perderá as suas em 1989, o Maranhão em 1990, o Pará em 1991, o Acre em 1997, Roraima em 2002 e o Amazonas em 2003. O território do Amapá é o que está menos ameaçado: sua floresta deve durar até o ano 2059."

O Brasil pós-tudo da Inventona de 1º de abril virou uma Suicíndia, crueza cruel de Suíça das contas numeradas com Índia das turbas esfaimadas. Os números são de Cláudio Abramo: três milhões de supermarajás, 30 milhões de vítimas privilegiadas e 100 milhões de vítimas desgraçadas. Barril de pólvora "no capricho".

Pior: além de sermos um país sem memória, perdemos também a vergonha, um povo cuja capacidade de indignação foi dissolvida em decretos-leis, alguns até secretos. Fomos transformados em dócil rebanho, mansa manada. Povo bom taí: não tuge nem muge, tudo bem. Vai daí que engole toda sorte de atentados contra os seus direitos mais elementares, sem dar um pio.

O último general no Planalto pediu que o esquecêssemos mas não tá fácil: as ordenanças que deixou tomando conta do lugar deitam e rolam nos fofos tapetes da Nova Ditadura, digo, República. E promovem seu animado Baile da (Bras)ilha Fiscal, a Nova Realeza se divertindo tanto que nem percebe os sinais das ruas. Mergulhada num oceano de pus que reduz a lagoa o mar de lama de antigamente, a massa de vítimas principia a botar a boca no trombone, não dá mais pra segurar.

Já os grandes meliantes, com a impunidade total de que desfrutam – mais o princípio da "obediência devida" – não estão nem aí. Enquanto isso, nas periferias da vida, Rotas "vingadores" e "polícias mineiras" se encarregam dos pés-de-chinelo.

O prefeito da favela do Vergueiro foi claro: "O Brasil tem dois códigos – o civil, para os poderosos e o penal, para os miseráveis". Não é a toa que nos exterminamos nessa de "cada um por si e Deus contra todos". Queremos levar vantagens em tudo, ouvindo o dr. Gerson de Vila Rica (sumidade em enfizema e câncer do pulmão), nossos falsos malandros são abençoados por Macunaíma, Herói Supremo e Guia da Nacionalidade.

Graças a tanta sabedoria e inspiração, hoje o rico assalta o pobre no campo e é por esse roubado na cidade, belo negócio. No Brasil pós-64 o crime reina, impávido colosso. O castigo? Anda em vilegiatura pela Suiça, a conferir saldos. Jamais se viu tanta inocência nem tal pureza: a pátria amada é o céu dos anjos.

Mania de campeões, ganhamos A Maior Dívida Externa do Mundo. Por apenas. Já não se sabe de quantos bilhões: pegaram o que puderam e torraram onde quiseram, sem nos dar a mínima. E acham que auditoria é revanchismo.

Debaixo do tapetão "PMDB" escondem o lixo da ditadura, mais os detritos da "Nova República". Rabo escondido com o gato de fora, como diz Millôr, o ex-MDB (bons tempos) faz qualquer negócio para "disfarçar" sua condição de governo, de (má) Situação. Brinca nas onze. O dr. Ulisses preside tudo e o dr. Sarney se apraz em ser presidente (de honra) do partidaço que trocou l’espoir pour poire.

São capazes de forçar a aceitação de um papel que fará corar o que a junta militar (codinome "Luzia") deixou na horta. E proclamaram: "nova Constituição será a que o PMDB quiser". Não vai dar outra: uma constituição descartável, não uma razoável.

Mas tornemos à Fuferroabá (Fúria Ferroviária que Assalta o Bananão): é coisa de falido que se põe a detonar cartões de crédito,certo de que não vai pagar mesmo. E seria tão mais inteligente se procedessem à humanização dos trens do subúrbio que transportam milhões de párias aqui e no Rio! Qual, nem pensar!

Nossa gente é autoritária (sabe com quem está falando?) e pouco cordial, desmentindo as lendas. Brasileiro tem muito desejo e escassa vontade. É grande a diferença. Mal e porcamente, sobrevivemos à ditadura de Vargas, à era faraônica de JK, à ditadura militar, a esses autoritarismos todos. Firmamos a Declaração Universal dos Direitos do Homem mas a ignoramos solenemente. E dizemos querer que o Brasil seja uma nação de herdeiros, não de meros sobreviventes…

"Sempre houve – e ainda há – multidões de homens, mulheres e crianças a quem, pelo terror, a miséria e a mentira, se conseguiu fazer com que esquecessem sua dignidade natural, ou que renunciassem ao esforço de fazer com que os outros reconhecessem essa dignidade. Estas se calam. As vítimas que se queixam e cuja voz é ouvida, gozam, já assim, de melhor sorte." Do prefácio de René Maheu para "O Direito de Ser Homem", editado pela Unesco em 1972, ano internacional do livro.

Otto Lara Resende costuma dizer que nada vale Deus ser brasileiro porque alguns brasileiros, são deuses. Verdade. E são tais deuses que nos impõe ditaduras, novas repúblicas, planos cruzados, ferrovias de aço e de ouro.

Acorda, Brasil! O Terceiro Milênio vem aí.

PT saudações.

Carlito Maia
21/06/1987