“Se não ocuparmos o debate da segurança com técnica, a direita ocupará”, afirma o senador Fabiano Contarato
“Quando um político desvia verbas da saúde, mata milhões de pessoas”, afirma o senador Fabiano Contarato, que propõe transformar crimes como peculato, corrupção e sonegação fiscal em crimes hediondos. “Se não ocuparmos o debate sobre segurança com propostas técnicas, a direita o fará com discursos simplistas”, alerta Contarato. Em entrevista à Focus Brasil, defende a responsabilização real para crimes econômicos, critica a seletividade penal e apresenta propostas para enfrentar o crime organizado e a desigualdade no sistema de justiça

Com 27 anos de atuação como delegado da Polícia Civil do Espírito Santo, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) tornou-se um dos principais nomes do Congresso nas discussões sobre segurança pública e justiça penal. Defensor dos direitos humanos e da Constituição de 1988, Contarato diz que o sistema penal brasileiro “criminaliza a pobreza e a cor da pele” e cobra um novo equilíbrio: “Quando um político desvia verbas da saúde, mata milhões de pessoas. Quando desvia da educação, mata sonhos. E ninguém fica preso por esse tipo de crime no Brasil.”
Autor de um pacote de projetos apresentado em abril de 2025, ele propõe transformar crimes como corrupção, peculato e sonegação fiscal em crimes hediondos. A ideia é eliminar brechas legais que hoje garantem liberdade a quem desvia recursos públicos. “Não podemos permitir que um condenado a nove anos por homicídio doloso fique nem um ano e oito meses preso. Isso não é razoável”, afirma. O senador também defende o fim das saídas temporárias para crimes graves e a reformulação da remissão de pena por trabalho. “A impunidade se mantém porque o sistema beneficia a elite econômica e racial.”
Direitos humanos
Para além do endurecimento, Contarato aposta na formação em direitos humanos para policiais, na atuação firme das corregedorias e no fortalecimento da investigação qualificada como pilares para uma política de segurança mais eficaz. “Segurança pública é dever do Estado. Se a população não se sente contemplada, adere a discursos punitivistas.”
Ao tratar da atuação do Supremo Tribunal Federal, o senador rejeita o argumento de que a Corte invade competências do Legislativo. “Se não legislarmos, o STF vai dizer o direito. É o que a Constituição manda.” Para ele, projetos que tratam do casamento homoafetivo, do marco legal da internet ou da descriminalização do porte de drogas só chegam ao Judiciário porque o Congresso se omite. “Temos que fazer essa mea-culpa.”
Na entrevista à Focus Brasil, Contarato faz um alerta direto à esquerda e ao campo progressista: “Se não ocuparmos o debate sobre segurança com responsabilidade e técnica, a direita o fará com populismo penal”. A seguir, a entrevista com o senador.

– O impasse em torno do IOF criou na sociedade um sentimento de que Congresso e país caminham em rumos diferentes, sem sintonia com a população. Como senador petista, como o senhor tem avaliado o momento?
– Na verdade, eu acho que é uma função do Executivo, é uma prerrogativa do Executivo, por decreto, fazer a regulação desse imposto, portanto, quem mandou mal nesse contexto foi o Congresso Nacional. O presidente da República tem legitimidade, ele tem autonomia, ele é o Executivo e ele tem que entender, e sabe, qual é a importância dessa vinculação e desse aumento do IOF de 1,1% para 3,5%, por isso que agora ele tem que buscar efetivamente a tutela do poder judiciário para que corrija essa prerrogativa que é constitucional. Mas essa articulação política tem que ser contínua e permanente, compete aos líderes, tanto do governo no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal fazer essa articulação para que não haja nenhuma arranhadura nessa relação, preservar autonomia e harmonização entre os poderes. Então, eu acho que isso faz parte do jogo democrático de direitos e é uma prerrogativa, e defendo a prerrogativa efetivamente do chefe do executivo. Ele está ali, ele tem que implementar, a função do executivo é essa, administrar o Estado, implementar as políticas públicas e, para isso, ele tem que saber quando ele tem que fazer essa regulação, essa alteração, esse aumento do IOF, que foi a mola propulsora que causou esse desgaste. Acredito que a população tem que entender que é no governo do Partido dos Trabalhadores que o pobre efetivamente está no orçamento. Está dentro da Constituição Federal, desde o dia 5 de outubro de 1988, no Artigo 153, que compete à União, instituir imposto sobre grandes fortunas, isso está lá desde o dia 5 de outubro de 1988. Passou da hora da gente taxar as grandes fortunas, passou da hora da gente combater os supersalários, os penduricalhos. Nós temos que entender que o teto do servidor público é teto, não podemos admitir que uma camada, uma nata dos servidores públicos, que não chega a 22, 25 mil funcionários públicos no país, todo mês ganhe R$ 100 mil, R$ 200 mil, R$ 300 mil, R$ 500 mil, R$ 1 milhão de reais; enquanto um professor no meu estado, Espírito Santo, para ganhar o piso de R$ 4.800,00, cumpre carga de 40 horas. E quantos são os municípios do Brasil onde eles não ganham nem o piso? Nós aprovamos o piso da enfermagem, um projeto do qual sou o autor, mas eles também não estão recebendo. Nós não enfrentamos o tema dos supersalários dos penduricalhos. Eu já cobrei isso dentro da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que tem um projeto para regular e acabar com isso de uma vez por todas, acabando com essa desigualdade. Como você explica, num país com tamanha desigualdade social, num país que, depois da Reforma Trabalhista, houve a precarização da relação dos direitos dos trabalhadores? Nós temos aí a uberização do sistema de trabalho, o enfraquecimento dos sindicatos e uma série de ataques à pauta dos trabalhadores. No entanto, temos, na contramão, uma tentativa de, de alguma forma, impedir que o Executivo desempenhe sua função. Mas eu acredito que, com a articulação dos líderes do governo no Senado e na Câmara, e com a liderança do presidente Lula, isso não terá nenhum impacto, o que precisa ser reforçado é a comunicação. É preciso dizer, divulgar e explicar claramente à população quais são as consequências dessas medidas. O governo do presidente Lula quer, e nós queremos também, isentar quem ganha até R$ 5 mil, é essencial taxar as grandes fortunas, os jatos, as aeronaves. Precisamos garantir que o chefe do Executivo tenha condições de implementar as políticas públicas para as quais foi eleito.
– O senhor acabou de lançar um pacote contra a impunidade dentro da discussão da segurança pública, uma pauta cara ao seu mandato. Me parece que uma das iniciativas mais importantes é a questão da remissão da pena. Então, gostaria que o senhor explicasse o que é esse pacote, detalhasse o que significa essa sua proposta de remissão de pena.
– Na verdade, a segurança pública é um direito de todos e dever do Estado, conforme estabelece o artigo 144 da Constituição Federal. É por isso que a população se sente vulnerabilizada, ela não se sente segura porque sente a ausência do Estado, as pessoas temem atravessar a rua usando relógio, cordão ou celular, o que causa essa aderência a pautas extremamente punitivistas. Porém, nós, no campo progressista, precisamos compreender que devemos dar tratamento igual a comportamento igual, e tratamento diferente para comportamento diferente. Como ex-delegado, com 27 anos de experiência, pude testemunhar como, infelizmente, o Estado frequentemente criminaliza a pobreza e a cor da pele, quando mais de 70% da população carcerária, são de pessoas pretas e pardas, mas os crimes de maior prejuízo, quem pratica esses crimes, são os políticos ou servidores públicos. De um lado, crimes contra a ordem tributária, o sistema financeiro, sonegação fiscal, corrupção ativa e passiva, peculato – todos esses delitos de colarinho branco. De outro, a realidade carcerária brasileira. Então, temos uma clara distorção no sistema penal, quando o Estado criminaliza a pobreza e a cor da pele, isso tem que me dizer alguma coisa. Faço um desafio a qualquer pessoa: procure no sistema prisional, através dos dados do Ministério da Justiça, qual o percentual de presos em regime fechado por crimes como corrupção, peculato ou delitos tributários. O peculato, por exemplo (que é o desvio de recursos por funcionário público), tem pena de 2 a 12 anos. Mas há uma razão para a pena mínima ser de 2 anos: a tendência, é condenar na pena mínima, isso permite a suspensão condicional da pena e acordos de não persecução penal. Na prática, mesmo cometendo esses crimes graves, o sistema atual permite que crimes econômicos e contra a administração pública – como corrupção, peculato e sonegação fiscal – sejam praticados sem consequências reais. Já aprovamos na Comissão de Segurança Pública, que esses crimes de corrupção ativa, peculato, corrupção passiva, sejam tratados como crimes hediondos, com uma proposta de minha autoria, de alteração da pena mínima do peculato de 2 para 6 anos, eliminando assim a possibilidade de suspensão condicional da pena.
Também temos que enfrentar um outro tema que é delicado para o campo progressista do adolescente em conflito com a lei. Um caso recente no Espírito Santo, um adolescente entrou em uma escola e matou quatro pessoas e feriu doze. O ECA estabelece o limite máximo de 3 anos de internação. É óbvio que eu sou radicalmente contra, com base em vários fundamentos, da redução da maioridade penal, vocês não me verão falando em redução de maioridade penal. Pedi para a minha equipe e para a consultoria do Senado pesquisar quais as penalidades ou medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei nos países do G20. O Brasil é o mais permissivo de todos. Por que não podemos, como progressistas, propor que atos infracionais praticados com violência, ameaça, ou crimes comparados a crimes hediondos cometidos por adolescentes, apenas nessas hipóteses, aumenta-se o período de internação, com um debate sério sobre a ampliação do período de internação, sejam 5, 8 ou 10 anos. A questão não é o número em si, a questão é que nós não debatemos sobre o tema de segurança pública. Quando eu fui delegado de polícia, eu apurei um fato de um homicídio qualificado (que para adultos teria pena de 12 a 30 anos), cometido por um jovem de 17 anos, resultou em apenas 1 ano de internação. Como explicar isso à sociedade? Como consolar uma mãe que perdeu seu filho num crime brutal? Imagine um estupro seguido de morte, praticado por um rapaz de 17 anos, ele vai ficar internado por um ano, dois, três anos? Em síntese, meu projeto busca corrigir essa distorção, essa criminalização da pobreza. Hoje, como está, se criminaliza a pobreza e a cor da pele. O que nós estamos estabelecendo é que crimes contra a ordem tributária, sistema financeiro, sonegação fiscal, corrupção ativa ou passiva e peculato passem a ser crimes hediondos, sem acordos de não persecução penal. Quando um político desvia verbas da saúde, mata milhões de pessoas. Quando ele desvia verbas da educação, ele mata o sonho de milhões de jovens, mas, ninguém fica preso por esse tipo de crime no Brasil. Então, vamos corrigir esse aspecto, estabelecer critérios na chamada remissão de pena pelo trabalho. Eu fui criticado por me posicionar contra as saídas temporárias, quando votei contra um veto do presidente, mas, eu fui conselheiro na vara de execuções penais. Um homicídio doloso, intencional, com pena de 6-20 anos, a tendência é condenar a pena mínima. Um condenado a 9 anos, com 1/6, já pode sair para o regime aberto. A cada 3 dias trabalhados, recebe remição de pena por trabalho. Com ⅓ da pena, livramento condicional com base no artigo 83. No final do ano, indulto e comutação de pena. E ainda você vai dar por ano, 35 dias de saída temporária? Ou seja, aquela pessoa, e eu estou falando de um maior de idade, que foi condenada a 9 anos de reclusão por homicídio doloso, não vai ficar nem 1 ano e 8 meses preso. É razoável isso? Não acho razoável, e nós temos que fazer esse enfrentamento. Como professor de Direito Penal e Processo Penal, e defensor dos direitos humanos, apresentei um projeto, que está na Câmara e deveria ser prioridade do governo, estabelecendo que todas as instituições de segurança pública e privada, ministram direitos humanos. Essa medida humanizaria as instituições de segurança pública, para que elas atuem com rigor da Lei independentemente de raça, cor, etnia, religião, origem ou poder aquisitivo, e que as pessoas paguem pelos crimes, ou contravenção e ato infracional. Um dos meus projetos altera significativamente a pena para tráfico de entorpecente, temos que entender a conduta de tráfico de entorpecentes dentro da sociedade brasileira e o que isso significa, entre outros crimes, como exploração sexual de crianças e adolescentes, são crimes que temos que enfrentar.
– Existe também uma pressão da sociedade, principalmente da ala mais conservadora, de aumentar as responsabilidades dos adolescentes, haja visto esse projeto que foi aprovado na Comissão de Segurança Pública da Câmara, que reduz a idade para porte de arma de 25 para 18 anos. Como o senhor vê esse avanço da extrema-direita quanto à maioridade penal? No Senado esse projeto seria aprovado?
– Pela composição que eu tenho presenciado aqui no Senado, na pauta relacionada à segurança pública, e é disso que eu estou falando, é que se o campo progressista não faz esse enfrentamento, não exerce o protagonismo de forma responsável, equilibrada… Eu não estou aqui me colocando como dono da verdade, muito pelo contrário, eu só estou querendo é colocar na mesa para que a gente possa discutir o tema. Vamos fazer audiência pública? Vamos entender se a gente tem que aumentar o período de internação para adolescentes em conflito com a lei, para o ato infracional equiparado a hediondo, ou com violência ou grave ameaça? Temos que exercer esse protagonismo, porque se não exercemos esse protagonismo, a direita exerce, e de uma forma que eu tenho muita cautela com relação a forma dela agir. Eu presenciei aqui, por exemplo, eles proporem o aumento da pena do estelionato, que está no artigo 171, que é um crime praticado sem violência, sem grave ameaça, onde a pena é de um a cinco anos, uma proposta do aumento da pena para 19 anos de reclusão. O principal bem jurídico é a vida, a pena do homicídio é de 6 a 20, nós estamos aumentando a pena para o estelionato para 19 anos de reclusão. Com muito sacrifício eu consegui reduzir para 12, que ainda é um período muito elevado. Eu não estou aqui falando que não tem que ser condenado, muito pelo contrário, tem que ser, agora, o condenado por crime de estelionato tem que ficar efetivamente preso, tem que cumprir a pena que foi ali estabelecida. Agora, eu só acho assim, como fica essa proporcionalidade e essa razoabilidade em aumentar uma pena nessas circunstâncias?
Eu presenciei aqui, por exemplo, aumentando o furto de cabos de energia. Tudo bem, mas por que a gente não aumenta a pena do receptador? É muito mais grave a conduta do receptador, não estou aqui justificando o furto, mas ele vai ser condenado pelo furto, mas se tiver que aumentar a pena, vamos aumentar a pena de quem pratica a receptação. E assim sucessivamente. Em outro exemplo, estavam aprovando a extração compulsória de material genético de todas as pessoas, de todos os crimes tentados ou consumados. Nós temos mais de 2000 tipos penais. Então, o Estado não tem nem perito para fazer isso. Imagine uma pessoa condenada por injúria, ter que passar por identificação civil e criminal, além de extração compulsória de material genético para cadastro em banco de dados criminais. Vejo que na atual composição do Senado há sim um terreno fértil para avançar em pautas como essas que estão sendo discutidas na Câmara. Aqui mesmo já aprovamos medidas extremas, me perdoem, mas sou delegado aposentado e advogado, fui inscrito na OAB após me aposentar, e antes de ser delegado exerci brevemente a advocacia. Foi aprovado aqui o porte de arma para todos os advogados! Sim, para todos, 1.5 milhão, sem distinção. O argumento usado era a equiparação, que juízes, promotores e advogados não deveriam ter distinção. Eu questionei: mas para ser promotor ou juiz, quantos anos de advocacia são exigidos? Dei um exemplo: meu sobrinho, no nono período de direito, já havia passado no exame da OAB. Quando se formou, automaticamente se tornou advogado. Automaticamente ele tem direito ao porte de arma? Com muito sacrifício, consegui incluir que, pelo menos todos os advogados tenham que se submeter aos requisitos, não basta ser advogado, ele vai ter que fazer os exames psicológicos, ele vai ter que provar capacidade técnica no manejo de armas. O que esse exemplo mostra é que o ambiente no Senado é um ambiente fértil para fazer esse tipo de alteração. Com relação às penas para adolescentes, vamos comparar com outros países: México: 5 anos, Argentina, Canadá e Alemanha: 10 anos; França e Itália: 20 anos; Inglaterra: não tem prazo definido; Austrália e Estados Unidos: prisão perpétua. O que estou propondo é simples: apenas nos casos de atos infracionais com violência, grave ameaça ou equivalentes a crimes hediondos, aumentar o período máximo de internação de adolescentes, que vai continuar internado, que hoje é de 3 anos, para até 10 anos. Esse prazo pode ser discutido: 5, 8 anos… O importante é que nós, do campo progressista, falarmos sobre segurança pública. Por que fomos rotulados como defensores dos direitos humanos daqueles que estão cerceados da sua liberdade de ir e vir? Precisamos inverter essa lógica. Sabe o que são direitos humanos? Isso nos dá a oportunidade de comunicar com a sociedade de uma maneira muito clara: Direitos Humanos são o conjunto de direitos naturais de todas as pessoas, independente de raça, cor, etnia, religião ou origem. Quando esses direitos são colocados em um texto legal, tornam-se direitos fundamentais. O jurista Karel Vasak, em 1979, inspirado nos princípios da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), classificou essas garantias em gerações de direitos humanos de 1° geração, 2° geração, 3° geração, e há quem fale em 4° geração de direitos humanos. As pessoas que têm sua liberdade de ir e vir restringida têm seus direitos humanos amparados? Sim, têm. Mas precisamos lembrar que as famílias dos policiais mortos em confronto, defendendo a sociedade, também têm direitos humanos. As famílias das mulheres vítimas de feminicídio, as crianças órfãs dessas tragédias, os menores vítimas de violência sexual, também. Por que não mudamos e falamos que direitos humanos são para todos: tanto para a população carcerária quanto para as famílias dos policiais mortos, para as vítimas de feminicídio e para os crimes contra a dignidade sexual. Precisamos deixar claro que os agentes de segurança pública, tanto na esfera pública quanto privada, devem ser formados em direitos humanos, sistematicamente. Platão falava que “a sabedoria está na repetição”, a gente tem que repetir isso. Precisamos fortalecer as corregedorias para que possam punir com rigor aqueles policiais que cometem excessos, fazendo com que respondam penal, civil e administrativamente por qualquer desvio de conduta. Em uma ocasião, eu fui perguntado “mas o senhor é um delegado, o senhor não é de direita?” O policial deve ser visto como um garantidor de direitos, não como violador. Partimos do princípio da presunção de legitimidade dos atos da administração pública. Nós, do campo progressista, perdemos a oportunidade de falar mais com a população sobre direitos humanos, sobre combate a corrupção, sobre tornar crimes hediondos os crimes contra a ordem tributária, contra o sistema financeiro, aumentar o período de internação, em casos excepcionais para adolescentes em conflito com a lei. Temos que caminhar e debater isso, pois do contrário, esse tipo de projeto que foi usado como exemplo na sua pergunta, e como é esse que eu dei o exemplo aqui, do furto de carro de energia, mais uma vez criminalizando a pobreza, do estelionato passando para 19 anos de reclusão, da extração compulsória de DNA para todos os crimes tentados ou consumados. Eu acredito que o campo progressista tem que entender que a segurança pública é uma bandeira nossa também. E que tem que ser nossa também, porque essa é uma garantia constitucional. Esse não é um interesse meu, porque eu fui delegado, porque eu sou professor de direito penal. Não é isso, não. Porque isso está na Constituição Federal, artigo 144: Segurança pública é direito de todos, mas é dever do Estado. Então, se a população fala, ‘olha, eu não estou sendo contemplada com a segurança pública’, por isso ela adere a um comportamento muito mais punitivista.
– Como o enfrentamento ao crime organizado no Brasil? Você acha que com o Código Penal que temos hoje, esse “arcabouço jurídico”, dá para combater essas organizações com a ramificação que elas já têm hoje?
– Sim, se efetivamente a lei for cumprida independentemente de raça, cor, etnia, religião, origem ou poder aquisitivo. Como exemplo, temos casos de políticos condenados a 300 anos de cadeia, (300 anos de cadeia!), que estão em prisão domiciliar. Agora, tem o caso da pessoa pobre, morrendo dentro do sistema penitenciário, dentro do sistema prisional, morrendo, e não tem direito à prisão domiciliar: dois pesos e duas medidas. Mais uma vez, se você traçar o perfil socioeconômico de quem está preso? Pobre, preto e semialfabetizado. Qual o percentual da população carcerária que está presa por crimes contra a ordem tributária com o sistema de corrupção, ativo e corrupção passiva? Não tem. Mas, por que não tem, se o crime está aqui? Se você tem uma polícia inteligente, se você tem uma perícia qualificada, se você coletar elementos, provas, objetivas, subjetivas, se você dá elementos para que o Ministério Público, titular da ação penal, deflagre a ação penal, e depois assegurar o contraditório e ampla defesa, ele é condenado. Mas aí não tenha aquela flexibilização de benefícios, como eu falei, que foi o caso da “saidinha”, com todo respeito a quem pensa o contrário. Você falar com uma pessoa que praticou um homicídio intencional, disparo de arma de fogo, foi condenado a nove anos, não vai ficar nem 1 ano e 8 meses preso, isso é razoável? Isso não é razoável. Por isso você tem que ter uma polícia inteligente, os órgãos de fiscalização e controle, tanto o Ministério Público, corregedorias, eles têm que ser muito mais atuantes, tem que cumprir o que está na lei. Se você tem alguém que praticou um crime de homicídio qualificado, a pena do homicídio qualificado é de 12 a 30 anos, está no artigo 121, parágrafo 2°, se ele foi condenado a 16 anos, ele vai ficar 16 anos.Vamos trabalhar com inteligência para fazer a desarticulação da organização criminosa, das milícias? E aí, sim, você tem instrumentos belíssimos dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Você tem infiltração, você tem escutas, tudo de forma muito legítima muito bem estruturada o que tem que ser feito é dar efetividade para que as instituições exercem esse papel, independente do poder aquisitivo. Não acho razoável isso: você dar um tratamento quando eu dei o exemplo da prisão domiciliar, uma pessoa que foi condenada por corrupção, transitado em julgado, concede-se a ela prisão domiciliar, agora, uma pessoa pobre, infelizmente, não consegue prisão domiciliar. Então, dois pesos, duas medidas, isso não é a mola propulsora na minha vida, nem no meu mandato. Eu sou um eterno defensor de direitos humanos, não tenha dúvida disso. Mas eu quero uma polícia técnica, inteligente, que tenha capacidade, que saiba fazer uma investigação penal, que saiba fazer um trabalho de infiltração, que saiba coletar provas de natureza objetiva e subjetiva, uma perícia extremamente qualificada. E aí sim, ao final, a pessoa condenada, depois de assegurados o contraditório e a ampla defesa, e transitada em julgado, vai cumprir a pena no regime adequado. É simples, para mim é dessa forma que tem que ser feito. E eu acho que, com os instrumentos que nós temos dentro do Código de Processo Penal, são suficientes, dentro do Código Penal também são suficientes. Porque se a gente esperar uma reforma do Código Penal, que é de 1940… aos poucos ele está sendo reformado. Ele é como um Leviatã, vai sendo reformado aos poucos. Eu dei o exemplo aqui hoje, com vocês, do estelionato, violência doméstica, feminicídio, crimes praticados contra policiais, e assim sucessivamente, aos poucos você vai fazendo essa alteração de acordo com a realidade comportamental. Agora, o processo legislativo também é muito lento. Eu lembro que, quando as mulheres conquistaram o direito à licença-maternidade, foi uma grande vitória, todos comemoraram, mas o que as empresas começaram a fazer? Não contratar mulher ou exigir atestado de esterilidade ou negativa de estado gestacional. Ora, era um fato moralmente reprovável, mas era um fato lícito, porque a premissa é constitucional, não há crime sem lei anterior que o defina, não apenas se emprega a combinação legal. Só em 1995 veio a Lei nº 9.029/95 que estabeleceu como crime a conduta de quem exige atestado de esterilidade ou negativo de estado gestacional. Mas quantas mulheres já foram vítimas? Isso num país que ainda é profundamente sexista, preconceituoso e misógino. A Constituição, desde 5 de outubro de 1988, no artigo 5º, declara a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações. Mas será que essa igualdade existe de fato? O problema é que quando surge a oportunidade de avançar, o processo legislativo não acompanha a urgência necessária. Enquanto isso, muitas pessoas continuam sofrendo com essas condutas abusivas que permanecem impunes por falta de regulamentação adequada.
– O sonho da extrema-direita, além de derrotar Lula, é dominar o Senado para poder interferir nos outros poderes, essa se apresenta como a lógica da extrema-direita. O senhor é candidato à reeleição, pretende permanecer no Senado?
– Eu sou do Partido dos Trabalhadores no Estado Espírito Santo, e em nível nacional o interesse é efetivamente a gente caminhar para a reeleição do presidente Lula. Eu agradeço à população do Estado do Espírito Santo pela confiança, tenho muito orgulho do mandato que tenho exercido e minha consciência está tranquila em relação a isso, estou conseguindo avançar em pautas extremamente importantes na defesa intransigente da democracia, mas com um olhar firme também. Fui delegado de polícia durante 27 anos, lidava com duas dores: com a dor da família da vítima e a dor da família do autor do crime. Eu precisava ter serenidade, sobriedade, equilíbrio, mas a altivez, respeitando os princípios que regem a Administração Pública, que estão no Artigo 37: a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. Quantas vezes, ao investigar uma conduta criminosa, concluí que não houve crime e sugeri o arquivamento ao Ministério Público? E quantas vezes também tive que comprovar, por provas objetivas, técnicas, periciais e subjetivas, como a análise comportamental ou depoimento de testemunhas, que o crime foi praticado, e que o responsável respondesse na esfera competente. Minha consciência está tranquila com todos os projetos que tenho. Consegui recentemente alterar a pena mínima para peculato, o que era um absurdo, uma pena de 2 a 12 anos com um hiato tão grande é justamente para beneficiar e evitar que alguém seja condenado e preso. Perguntava-me por que me senti utilizado pelo Estado durante 27 anos para agir de forma contundente contra pobres e pretos? Porque o perfil socioeconômico de quem está preso é majoritariamente de pobres e pretos. Por isso, aqui no Senado, estou alterando crimes contra o sistema tributário, financeiro, sonegação fiscal, peculato, corrupção ativa e passiva, para que essas pessoas efetivamente fiquem presas. Para que não apenas crimes de colarinho branco sejam beneficiados por prisão domiciliar, mas que a lei seja cumprida independentemente de raça, cor, etnia, religião, origem, orientação sexual, pois essa é a premissa do artigo 5° da Constituição Federal, que morro defendendo. A espinha dorsal do Estado Democrático de Direito se chama Constituição da República Federativa do Brasil. Por isso, defendo o fortalecimento das instituições e a conduta do próprio Supremo Tribunal Federal, o STF tem tido um comportamento de verdadeiro guardião. As pessoas não sabem diferenciar. Meus colegas dizem: “Ah, o Supremo está avançando, está legislando”. Eu digo: não façam isso! Vejam a Constituição Federal no artigo 5°, item 43, o princípio é a inafastabilidade jurisdicional: a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito. Se não legislarmos, e o Supremo é instado a dizer o direito ante a nossa omissão, ele terá que dizer o direito. Isso aconteceu, por exemplo, com o casamento de pessoas do mesmo sexo, que é uma pauta da minha vida; nós não legislamos sobre isso, mas instado pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pelo princípio da igualdade, que todos somos iguais perante a lei, o Supremo Tribunal Federal vai e diz o direito.
– Está acontecendo sobre o marco legal da internet também, uma discussão fundamental no Brasil, especialmente às vésperas de 2026…
– A mesma coisa, como acontece com o marco temporal, a mesma coisa, como acontece com inúmeros fatos. Mas isso não é uma marca daqui, do STF do Brasil, as pessoas têm que entender que a função do poder legislativo, nós exercemos uma função do poder majoritário. O papel da Suprema Corte ou de uma Corte Constitucional é contramajoritário, ela tem o poder de invalidar leis que nós aprovamos, por exemplo, que são instaladas com vício de iniciativa ou com inconstitucionalidade, ela tem um papel representativo de dizer o direito quando nós nos omitimos. E ela tem essa função que eu gosto sempre de falar, que é iluminista, de empurrar a história para o rumo certo, como aconteceu, por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos, quando decidiu acabar e impedir a segregação de crianças negras nas escolas públicas, aquela foi uma decisão contramajoritária, uma decisão iluminista. A Suprema Corte da África do Sul aboliu a pena de morte em qualquer hipótese. A Suprema Corte de Israel, quando veio a estabelecer a proibição da pena de tortura, inclusive para os condenados por crime de terrorismo. Então, e aqui no Brasil, quando houve a autorização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas, então, o Supremo Tribunal Federal age ante a nossa inação, a nossa omissão, isso não sou eu que estou dizendo, está escrito ipsis literis na Constituição Federal: a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito. Se nós não dissemos, se nós não legislamos por uma questão, porque não legislar também é uma decisão. Se nós não legislamos para não ficar mal com a base eleitoral… Por que o Supremo Tribunal Federal veio falar sobre a quantidade de substâncias entorpecentes? Porque nós não legislamos, nós não estabelecemos na lei de entorpecentes quais são as condutas com critérios objetivos e subjetivos para se configurar como tráfico de entorpecentes. E aí vai continuar utilizando aquilo que eu presenciei no meu dia a dia quando eu era delegado plantonista: pegou um jovem negro num bolsão de pobreza com uma quantidade de maconha, pela quantidade, pela natureza, pelo local: traficante. E pega um jovem num bairro de classe média com a mesma quantidade, um homem branco, é para uso próprio. Essa discussão está no Senado há dez anos. Mas por quê? Porque nós não legislamos. É preciso que nós tenhamos também, façamos essa mea-culpa de entender que quando nós não legislamos, para isso que existe o sistema de freios e contrapesos, para isso que existem os poderes, para isso que existe o poder judiciário, de que, diante desse princípio da inafastabilidade jurisdicional. Se o Supremo Tribunal Federal foi instado a falar sobre casamento do mesmo sexo, é porque nós não legislamos. Se ele foi instado a falar sobre quantidade de substância entorpecente para definir traficante ou usuário, é porque nós não legislamos. Se o Supremo Tribunal Federal foi instado a falar sobre o marco da internet, é porque nós não legislamos. Se o Supremo Tribunal Federal foi instado a falar sobre o marco temporal, é porque nós ficamos deitados eternamente em berço esplêndido.