Esmir Filho conta como foi dirigir ‘Homem com H’, cinebiografia de Ney Matogrosso
O diretor Esmir Filho revela os desafios e o processo de criar a cinebiografia de Ney Matogrosso, mostrando a luta pela liberdade e a quebra de paradigmas em um filme que emociona e conecta diferentes gerações

Como foi que você se tornou roteirista e diretor de Homem com H?
Recebi o convite da Paris Entretenimento como um presente, porque, se houvesse qualquer artista da música brasileira para eu me debruçar, seria o Ney. A história dele condiz muito com várias coisas que venho elaborando no audiovisual. Acho que todos os meus filmes falam sobre pulsão do corpo, desejo, relação pai e filho, afetos. É um ser humano e artista que admiro muito pela música e toda a forma de olhar as coisas, a postura frente ao mundo. Ele atravessou muitos obstáculos e traz características que têm a ver com outros personagens dos meus filmes. Foi um match, mesmo sem saber. Aconteceu no segundo ano da pandemia, quando ainda estava isolado no apartamento e mergulhei na história.
Embora o filme retrate uma vida toda, o espectador não percebe cortes abruptos, pois dá a sensação de viagem no tempo. Gostaria que comentasse como foi que chegou a esse resultado.
O meu primeiro desafio foi traduzir o Ney para o cinema. Então, precisei descobrir a linguagem, pois, a partir do momento que a entende, opera a partir dela. A linguagem do filme deveria ser ousada, provocativa, erótica, afrontosa contra qualquer figura de autoridade, tudo o que expressasse o Ney. Na hora de fazer o recorte, falei: vou ter que pensar no tempo, pois não quero que seja uma coleção de épocas e cenas do Ney. Gosto de cinebiografias com um recorte temporal bem definido. Mas, olhando para a história dele, vi a jornada do herói. O menino que começa com um desejo, é reprimido pelo pai e esse desejo se expande até hoje. Ele é a prova viva de que fez muito bem em acreditar no seu desejo. Representa essa liberdade conquistada. Então, me interessava mostrar quais foram os obstáculos que fizeram esse protagonista questionar, atravessar, para poder ser livre. No livro Vira-Lata de Raça, ele fala em primeira pessoa: “Eu sempre reagi ao autoritarismo”. Desenvolve a relação com o pai, que era militar, até dizer: “O sargento Mato Grosso foi a maior autoridade que já enfrentei na vida, a maior de todas”. Imagine tudo que passou depois. Quando criança, todas as suas escolhas foram para contrariar a vontade do pai. Isso, para mim, era uma coisa forte do personagem. No filme, começa apanhando e ouvindo do pai: “Você tem que aprender a ser homem”. Ney aprendeu à sua maneira, pois dança a coreografia que quer. Ele não sofre imposição da masculinidade tradicional. E foi assim que fiz o recorte, que não é temporal, é emocional. Apesar da época ir pulando, não sentimos o pulo porque o recorte é emocional. E com essa resolução maravilhosa de ser livre, estar aberto ao afeto e ainda poder, na idade que tem, dançar, cantar, expressar sua sexualidade.
Como foi fazer essa produção tendo o próprio Ney como parceiro no set?
Foi aos poucos. Mandei uma mensagem para ele dizendo que ia fazer a cinebiografia e estava começando a escrever. Passamos duas tardes juntos, já com o recorte definido. Queria conversar sobre as cenas que formavam o arco narrativo. Ele trouxe muito detalhe, muita textura para cada cena, mas principalmente o sentimento. Não lembrava de tudo que foi dito ou como e onde aconteceu, mas disse para não se preocupar com isso. A
lacuna faz parte da memória. O que interessava era o sentimento: raiva, tristeza, magoado, humilhado. Esses sentimentos foram mapeados no roteiro para trabalhar nas situações, falas, diálogos. Pedi a ele liberdade para preencher lacunas com cinema, que é imagem e som, não só palavra. Depois que leu o roteiro, ligou e disse: “Esmir, entendi o que explicou. Nem tudo foi dito daquela maneira ou aconteceu naquele dia, mas é tudo verdade, está tudo lá.” Acho que entrei no universo dele, e foi gratificante ouvir isso. Ele propôs ficar mais próximo do projeto, gostou da condução. Sempre mandava coisas do elenco, locações, perguntava. Foi muito solícito, veio três vezes nas filmagens, viu o corte, com muita generosidade e abertura. No final, foi bonito apresentar o filme para ele.
O filme traz a história de uma pessoa real que quebrou muitos paradigmas e, apesar do crescente conservadorismo na sociedade, foi muito bem recebido pelo público e pela crítica. A que atribui essa receptividade?
Aprendi muito com Ney, que sempre carregou um mistério enigmático e atrai as pessoas. Ele sempre se colocou de uma forma que nunca deixou a desejar, mas também não mostrou tudo. Ele se mantém a uma distância ótima para que conservadores e progressistas se encantem. Isso é muito dele, não é dissimulado, é genuíno. Ney é íntegro e franco. Tentei trabalhar assim ao traduzi-lo para a linguagem do filme: com afeto, carinho, mas sem deixar de mostrar o que precisava ser visto. O filme tomou essa mesma distância com o público. As pessoas viram Ney e ele tocou em pontos universais, que todos sentem. Não é sobre uma pessoa que sofreu repressão em uma época, promove um rasgo temporal. Fala sobre todos nós, indivíduos de qualquer gênero e expressão de sexualidade, que vivemos situações diante de autoridades que tentaram nos reprimir, na família, trabalho, vida social. Promove diálogo entre seres diferentes, pai e filho. É um marco que gosto muito. No fim, ambos se olhando e compreendendo, cada um à sua maneira. A ligação dos dois é inegável, um saiu do outro. Acho que se amam, sempre se amaram. É uma história de amor nesse sentido.
Vivemos um momento muito positivo, de produções incríveis e reconhecidas, como Ainda Estou Aqui. Esse movimento influenciou Homem com H?
É uma história bonita e, claro, com muita campanha, mas forte. O que une os lados? Filmes que não ativam polarização. Ainda Estou Aqui fala da ditadura, de uma mulher que perdeu o marido, a família, que podia ser de qualquer família. Ele coloca muitas coisas em jogo, a família tradicional, com filhos, que cuida da casa. É interessante como diz: “Olha só, somos muitos, somos diferentes, mas estamos aqui, né?”. Isso gerou comoção no público, porque não fomenta embate. Quer diálogo e traz mensagem importante para todos nós. Acho que as pessoas que gostaram compactuam dessa mensagem. É como deve ser essa nova era no cinema: levar todo mundo e transmitir mensagem, sem falar só com seus iguais.