O jornalista Miguel de Almeida  reconstitui a história de uma das bandas mais  influentes e bem-sucedidas da MPB na década de 1970: os Secos & Molhados. Uma contra-revolução em plena ditadura

Há historiadores e pesquisadores da música brasileira que identificam a Tropicália como um movimento contracultural. Em “Brutality Garden: Tropicalia and the Emergence of a Brazilian Counterculture”, pesquisador norte-americano classifica os procedimentos uso de alegoria e das colagens do grupo baiano já como uma manifestação contracultural da cultura brasileira. Sem diminuir a importância do livro de Dunn, essa leitura do que aconteceu na brevíssima trajetória do tropicalismo dá um relevo à sintonia de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé com o cenário internacional das artes em geral e da música em particular que não procede.

É no momento seguinte, nos terríveis anos 1970 que, de fato, as formas da contracultura vão entrar de sola no Brasil. Parte da importância de “Primavera nos Dentes”, biografia da banda Secos & Molhados, é que seu autor, o jornalista Miguel de Almeida, “esteve lá”. Jornalista de formação, começou a trabalhar na Folha de S. Paulo já no final dos anos 1970, período em que a vida cultural do Brasil vivia ainda sob muita influência dos movimentos contraculturais.

É por esse tecido mais sensível, de alguém contemporâneo daquilo que pesquisa e descreve como a história curta, porém explosiva, de um grupo que mudou o rumo da MPB, que “Primavera nos Dentes” se destaca como livro-reportagem. A reconstituição da São Paulo daqueles primeiros anos da década de 1970, em que imperava o clima de terror imposto pela ditadura militar, com censura prévia na imprensa e nas artes, além de precisa, parece ser muito autoral; como estudante da Faculdade Cásper Líbero, situada em plena avenida Paulista, muitos dos teatros, das casas de shows e dos percursos entre os apartamentos nos quais se gestou e onde ensaiava a banda certamente fizeram parte da adolescência e juventude de Miguel de Almeida. 

Esse era um efeito paradoxal daqueles que cresceram durante o regime militar: os espaços de resistência cultural, onde circulavam intelectuais, artistas, estudantes e jovens inconformistas em geral, se constituíam como ilhas de respiro e de liberdade. Numa cidade cercada pela caretice daqueles que aderiram às promessas da progresso do Milagre Econômico e da ordem das casernas, qualquer possibilidade de ver uma peça, um filme, um show que confrontasse de alguma forma conservadorismo virava febre entre os dissidentes.

E como a banda formada por João Ricardo, Gérson Conrad e Ney Matogrosso era afrontosa. No início, era apenas João Ricardo, poeta e compositor, que fundou uma banda acústica que se apresentava em um bar no Bixiga, bairro boêmio de São Paulo, berço de uma das mais emblemáticas escolas de samba de São Paulo, a Vai-Vai, e onde estavam situados vários casas de espetáculo importantes na cena teatral paulistana. 

Com a defecção de Fred e Pitoco, dois dos membros originais, João Ricardo saiu à procura de um cantor. Por indicação de uma amiga em comum, Luli (que depois formaria a dupla Luli e Lucina), topou com Ney Matogrosso, que tinha a ideia de se tornar ator. À dupla, se juntou Gérson Conrad, estudante de arquitetura. 

A partir das bases instrumentais entre o soft e o hard rock já experimentadas nos anos anteriores, letras líricas e algumas lúdicas, Ney entrou com a voz de falsete, as coreografias sexy e uma concepção plástica de performance teatral. 

Em outras palavras, a personalidade do Ney cantor, que emergiu entre os ensaios e as apresentações no circuito paulistano de shows, era o fator transgressivo, provocador e ousado que transformou os Secos & Molhados em um dos grupos de música mais importantes daquele período.

Quando gravaram o primeiro disco, em 1973, já eram um grupo mais ou menos conhecido pelo público de rock, mas o que aconteceria com a banda, a partir desse disco, foi um fenômeno raro: apesar da repressão e da censura, o choque da androginia de seus três integrantes, que se apresentavam com maquiagem pesada e figurinos provocantes, caiu nas graças das crianças e das mulheres. A primeira música de trabalho, “O Vira” (composição de João Ricardo em parceria com Luli), com seus elementos do folclore brasileiro, foi apresentada no “Fantástico” e, no dia seguinte, era assobiada nas ruas. As letras mais poéticas, como “Fala” ou “Rosa de Hiroshima” (adaptada de poema de Vinícius de Moraes) encantaram as mulheres — e o carisma de Ney Matogrosso transformou-o num pop star instantâneo.

Com essa formação, os Secos & Molhados gravaram apenas mais um disco no ano seguinte, “Secos & Molhados 2”. O primeiro fez 1 milhão de cópias vendidas em apenas um ano, batendo o então mais popular dos cantores brasileiros, Roberto Carlos. A banda lotou o Maracanãzinho em 1974, com 20 mil pessoas dentro do ginásio e outras tantas que não conseguiram comprar ingressos do lado de fora. Foi a primeira vez que um show de um único grupo brasileiro atraiu esse público.

Para além dos recordes e das vendagens, o que o biógrafo Miguel de Almeida persegue, ao contar essa história explosiva e efêmera, é como a liberdade criativa consegue driblar tempos difíceis. Além de uma pesquisa cuidadosa (inclusive revista e ampliada a partir da versão do mesmo livro de 2019), Miguel de Almeida é um autor que “derruba a quarta parede” para o leitor, ou seja, convida-o a participar dessa história traduzindo a intensidade emotiva — afinal, estamos falando de canções que até hoje estão vivas no imaginário da cultura brasileira — de cada escolha, de cada momento, inclusive das tensões que juntaram e separaram dois rapazes latino-americanos e um europeu numa metrópole perdida do Brasil há 50 anos. •

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