Entrevista | José Genoino – “Contra futuros golpes, reavaliação do sistema judicial”
”Temos que ser um animador permanente de resgatar sonhos e utopias”, diz o ex-presidente do PT, perseguido e condenado. Ex-guerrilheiro do Araguaia, Genoino diz que é preciso repassar todo o arcabouço jurídico a limpo e submeter os militares à tutela do Poder Civil. ”Temos uma oportunidade histórica de de subordinar as Forças Armadas aos princípios e aos valores de um regime democrático. Esse é o desafio que está posto”,
Ex-deputado federal, ex-guerrilheiro e militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), José Genoíno é um sobrevivente. Foi ao inferno da condenação com o Mensalão, teve a vida devassada, mas mantém a serenidade dos inocentes e a indignação dos injustiçado. Profundamente preocupado com os rumos do país, enxerga no terceiro governo Lula a chave para a refundação do Brasil e da política.
Nesta entrevista concedida à Focus Brasil, o analista político pensa alto, lembra como a tentativa de interdição do PT da vida política quase deu certo entre 2003 e 2006, relembra os buracos na narrativa gerada pela mídia para condenar o partido e seus dirigentes. E aponta que o mergulho do Brasil à beira do abismo a partir do golpe de 2016 mostra que a esquerda precisa estar atenta.
Aqui, Genoino fala sobre a trajetória do PT, a atuação das Forças Armadas e as artimanhas do capitalismo neoliberal na construção de golpes alinhados com as ‘forças-tarefas’ judiciais que se firmaram para barrar avanços e vitórias das classes trabalhadoras.
Focus Brasil — De que forma um partido como o PT, seus diretórios, sua estrutura, serve para uma comunidade lá na ponta do território? O que a gente detectou é que existe uma certa pobreza de atuação?
José Genoino — A primeira condição é exatamente a militância. O dirigente partidário, em qualquer nível, deve ter uma postura, uma compreensão, uma posição de que ele é um articulador, um mobilizador, animador, um um promotor político de alternativas para aquela comunidade, seja na micro ou na macropolítica. A segunda condição é ele se inteirar, se enraizar na problemática que mexe com a cabeça e o coração das pessoas. E a terceira condição é a organização territorializada, porque a organização verticalizada, no meu modo de ver, é enfraquecida com a reestruturação do capitalismo. Eu me baseio muito na experiência da Itália, que após a Segunda Guerra Mundial e a derrota do fascismo, por inspiração do [Antonio] Gramsci, os comunistas organizaram na reestruturação do partido. Nas comunidades, nos bairros, organizaram centros de cultura socialista onde havia debates, seminários, formação, diálogos. Não é por acaso que o Partido Comunista Italiano foi um dos poucos partidos comunistas de massa durante várias décadas.
Na nossa geração, de 1968, era conhecimento e não informação. Agora é o contrário. Então, a compreensão política passa a ser um elemento fundamental para essa relação do dirigente, do diretório com a comunidade local. E você não pode fazer uma política de exportar para aquela comunidade de maneira mecânica. Você tem que ligar a problemática dela com a questão geral, ligar o problema do esgoto, da água, ligar o problema da luz, da moradia, do saneamento, ligar o problema do Bolsa-Família, do emprego, com a questão geral.
Eu nunca esqueço uma frase do Antonio Cândido. Quando fui atingido pelo mensalão, fui conversar com ele. Eu estava abatido. E ele disse: “olha, vocês fizeram a revolução social porque botaram o povo no orçamento. No capitalismo, o orçamento não é para botar o povo. E vocês botaram 65 milhões de brasileiros no orçamento”. Ele tinha esse número, somando todos os programas sociais e disse: “mas vocês esqueceram de ganhar o coração e a mente do povo. Você não faz uma mudança só com a visão economicista. Você tem que fazer a mudança com a visão subjetiva”. O que é o capitalismo hoje? Ele não quer só lucro de mais-valia, ele quer ganhar as pessoas. Ele cria uma subjetivação para enquadrar as pessoas, o seu papel no mundo e o seu papel na comunidade. E se nós não formos uma alternativa política, cultural, ideológica, que trate dos mais diversos pontos da comunidade, a gente fica para trás. Nós temos que ser um animador permanente de resgatar sonhos, utopias. Por que a Igreja é tão forte? Porque ela apresenta uma alternativa manipulada e enganosa para a população que tá sofrendo.
E por que o caos ganha? Porque é o desespero social. Então, diante disso, ou você trabalha com uma produção alternativa ao nível local ou então você não aglutina, não traz a política para aquela comunidade. Ou só leva a política para a comunidade em época de eleição. Eu penso dessa maneira.
— Pegando o gancho que você falou da Itália, que foi o primeiro país a ter uma experiência do imbricamento do Judiciário sobre a política, a Mani Pulite, que serviu de inspiração para procuradores e juízes do Brasil de usar a máquina do Estado para interferir no processo político. Qual é a tua avaliação?
— Existem dois livros muito interessantes para explicar esse fenômeno: “Os Engenheiros do Caos”, de um jornalista italiano que mostra como a Itália foi o palco de um grande laboratório político em que a ascensão de uma direita desorganizada partidariamente se organizou com o Partido Cinco Estrelas, com a Liga do Norte. Ele mostra como a Operação Mãos Limpas lá foi fundamental. O outro é “Primeiro Eles Tomaram Roma: Como a Extrema Direita Conquistou a Itália Após a Operação Mãos Limpas”. Esses dois livros estão em circulação, são muito importantes. Quando fui obrigado por falta de condições políticas a deixar a Presidência do PT, fiz um discurso de improviso que deve ter nos arquivos do partido. Eu dizia o seguinte, em 2005, há duas questões em jogo. A classe dominante quer interditar uma alternativa de esquerda de massa, que era o PT. A segunda é inviabilizar o governo, representado pelo companheiro Luiz Inácio Lula da Silva. E eu dizia que essas duas condições devíamos colocar como questões fundamentais para se defender, acima das nossas vidas pessoais.
E a história mostra que de 2005 a 2008 foi um laboratório. Primeiro o nome, o nome Mensalão foi do delator, e a grande mídia adotou o mensalão. Depois vem o Petrolão, a ideia do espetáculo, essa ideia dconstruída com as denúncias, e com o processo de cassação de alguns mandato, como o do companheiro José Dirceu. Terceiro, o núcleo da denúncia. A denúncia tinha 40. Faltava quem? O maior, que era Lula, que eles queriam atingir e não conseguiram. Lula derrotou aquela operação na eleição de 2006. Mas quem era na política? Estava o presidente do partido, o tesoureiro, o presidente da Câmara, João Paulo, e o chefe da Casa Civil, que também era chefe político do PT. Portanto, o núcleo estava montado. Esse núcleo era estratégico para o conceito de operação e o conceito de força-tarefa. Esse núcleo foi profundamente atingido, não com provas, atingido a partir de uma determinação: a Visanet, a sobra de campanha e o financiamento da eleição em 2004. Não tinha financiamento para ninguém, não tinha mensalão, não tinha mesada, não descobriram um depósito na conta de ninguém. Mas a ideia era a tal história da narrativa.
E aquela narrativa macabra foi construída para atingir o PT enquanto alternativa. Eles queriam atingir o Lula, mas não tiveram força para tanto e atingiram o PT. A partir daí, o PT passou a enfrentar uma perseguição judicial que, na democracia liberal, raras vezes um partido sofreu. Começou em 2005 e foi até 2021 quando Lula foi solto da Lava Jato. Portanto foram 16 anos. E essa operação envolvia a mídia, o sistema de Justiça, o Congresso Nacional, porque processou e projetou essa disputa à questão internacional.
É bom deixar claro que o mensalão começou antes para atingir o Lula e ele não ir para reeleição. Inclusive, puseram essa proposta por Lula que não fosse pra reeleição e não seria ‘impichado’. Só que o Lula enfrentou pela sua força, pela sensibilidade e pela capacidade de lançar a palavra de ordem ‘mexeu com Lula, mexeu comigo’. Aquilo foi uma criação do Lula, com os metalúrgicos do ABC, os companheiros do sindicato tiveram um papel fundamental naquele momento.
Ali, a operação foi executada milimetricamente. Primeiro, a denúncia, quando foi apresentada e aceita, houve um grande show midiático, quando o então procurador-geral fez a defesa da denúncia no Supremo. Segundo, quando marcou o julgamento, no ano da eleição municipal, em 2012. Saiu faltando 15 dias, 20 dias para a eleição. São Paulo tinha o [Fernando] Haddad como candidato a prefeito contra o José Serra e tinha outras cidades importantes. Estou citando só São Paulo. Três, a data da nossa prisão foi 15 de novembro de 2013, portanto, um ano antes da reeleição da Dilma. E fomos presos antes dos recursos infringentes, os chamados embargos. Hoje, as pessoas só são presas com os embargos infringentes, declaratório julgado.
E nós fomos presos antes dos embargos infringentes. Eu, o Zé Dirceu, Delúbio [Soares], Silvinho [Pereira], não tínhamos prerrogativa de foro. Podíamos ter sido julgados na primeira instância. O Supremo, por maioria, decidiu não nos remeter para a primeira instância. Então não tivemos o direito ao chamado juiz natural. Nós fomos julgados no Supremo.
— Você foi vítima
— E, por último, a canalhice de eu sofrer dois processos: dois empréstimos do Banco Rural e um do Banco BMG. Esses empréstimos foram feitos em 2003, quando assumi a Presidência, o PT estava endividado, fruto da campanha de 2002. Não tinha como pagar aluguel, luz, telefone, etc. Fizemos dois empréstimos no BMG e outro no Banco Rural. Esses empréstimos o PT registrou na sua contabilidade e pasmem, o PT foi cobrado judicialmente pelos bancos e pagou com juros e correção monetária. Mostramos para a acusação, para o Ministério Público e para o Supremo.
Eles disseram que aquilo ali era uma ficção e tanto que um dos processos fui julgado por falsidade ideológica e, em 2021, recebo um oficial de justiça e ele diz: “vim aqui pedir autorização sua para devolver parte do dinheiro que foi pago ao Banco Rural e ao BMG, porque o juiz da Vara Cível fez um sinal que o PT pagou a mais. Então você precisa, como avalista, autorizar a devolver parte do dinheiro para o PT”. Se os empréstimos eram fraudulentos como é que vou autorizar devolver parte do dinheiro para o PT? Isso aconteceu depois de tudo julgado, depois do indulto.
Então, esse modelo de operação foi fruto de uma concepção de que você tem que ter um inimigo, tem que ter um alvo, tem que ter um objetivo. E os fins justificam os meios. Se buscou o chamado direito penal do inimigo, para o amigo você protege os direitos fundamentais. Para o inimigo, você desumaniza. Fomos desumanizados, viramos objeto de chacota, de escracho.
E aí, para terminar, tem dois personagens. Não podemos esquecer. Primeiro, o Sérgio Moro era assessor principal da ministra Rosa Weber e o relator, e não vou citar o nome dele, teve como auxiliar da acusação um promotor público de Curitiba que o auxiliou na montagem da denúncia da operação toda que foi montada no STF
Vocês devem lembrar que quando o Supremo ia nos julgar os 11 ministros entravam em fila indiana, com aquela capa preta. Aquilo ali era uma estética do medo. Todo mundo de capa preta caminhando, sentava, transmissão ao vivo pela TV Justiça reproduzido pela TV aberta. E aí o espetáculo estava concluído. Fomos condenados antes de sermos julgados, a condenação veio antes do julgamento. O julgamento é apenas uma confirmação da condenação, do ato, da denúncia. E tanto que nesse caso do mensalão, a Polícia Federal não teve atribuição nenhuma, até porque os inquéritos, as investigações da PF contrariavam aquilo que era a vontade do relator, o caso concreto, o dinheiro da Visa, o caso concreto dos empréstimos ou se meu sigilo foi quebrado, o sigilo fiscal bancário. Nenhum delator me citou, nenhuma testemunha, mas eu era presidente do PT. Como é que o PT era uma organização criminosa e o presidente não era citado nela, até porque tinha que ter quatro para a quadrilha.
— A imprensa estrangeira foi quem, primeiro se atinou para que o que estava acontecendo. Como vê esse reposicionamento depois do caos?
— Vou colocar uma questão antes de responder concretamente. O ativismo judicial, a tribunalização, que é o papel dos tribunais superiores, e a criminalização da política faziam parte de uma nova estratégia, de uma nova tática política da ordem capitalista mundial capitaneada pelos Estados Unidos. É bom deixar claro aqui uma observação: durante o governo Jimmy Carter, quando os Estados Unidos queriam se livrar das ditaduras, da guerra do Vietnã, porque aquilo ali era muito desgastante, eles tentaram transportar aos derrotados que tinha que ter um outro tipo de guerra, com uma nova visão do direito, o ativismo judicial, o direito alternativo, o direito como protagonista. Daí surgiu a ideia do domínio do fato e a ideia do direito penal do inimigo. É um resgate da concepção fascista do direito penal (ao amigo tudo, aos inimigos, desumanizar). E aí o próprio conceito de Estado de Exceção é a vontade do soberano de enfraquecer o Parlamento e o Poder Executivo, que eram eleitos, e fortalecer o sistema de Justiça. O Judiciário é que dava a qualidade do contrato do dinheiro, a preservação dos acordos. Então foram assinados vários acordos internacionais sobre tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, sobre branqueamento e aconteceu um fato que foi a ampliação do caráter jurisdicional do direito penal americano. Isso entrou aqui no Brasil e olha bem, nós tínhamos uma contradição. O governo Lula era a relação sul-sul na política externa. Do ponto de vista geopolítica, econômico. Mas no plano do Direito, era norte-sul que a gente bebia na hegemonia do direito penal americano.
E o relator se formou lá, fez curso lá, trouxe essa concepção para cá. E aí, veja bem, em 2003, criou se a ECLA, quer a Estratégia Nacional sobre Lavagem de Dinheiro. Em 2009, teve uma reunião com advogados, com os policiais, com Ministério Público, juiz sobre as empresas brasileiras que tinham ações na bolsa de Nova York, que tinha assinado de corrupção, que era Petrobrás, Braskem, Odebrecht, Embraer e por aí afora.
Isso em 2009, após a crise de 2008. Então, veja bem o que aconteceu com esse ativismo judicial foi a justiça substituindo na política a política, produto da soberania popular, que é o Executivo e o Legislativo. Não dava segurança a essa nova hegemonia do capital financeiro, da da gestão da dívida, das agências, dos bancos centrais independentes, Estados Unidos, Europa, Brasil e por aí afora.
E aí se criou uma governança autoritária a partir do saber e da meritocracia. Precisavam destruir essas alternativas populares. E o PT era produto dessa alternativa popular. O PT nasceu pra dar vez e voz a quem não tinha e essa vez, embora, chegou ao poder com o Lula. E o Lula resolveu fazer um governo progressista, desenvolvimentista e inclusivo.
E é isso que na crise de 2008 e 2009 entrava em contradição com o sistema de dominação. E nesse processo que eles intensificam a Operação Lava Jato, inclusive ela é concluída. A Operação Mensalão é concluída em 2013 e a Operação Lava Jato aparece em 2014 na boca da eleição presidencial Dilma e Aécio. Portanto, isso estava dentro de uma estratégia geopolítica.
Aliás, tem dois livros, o do Euclides Manche, “O Golpe”, e o livro do Fernando Fernandes, que é “A Geopolítica da Intervenção”. Esses do livros têm dados, dão informações de como se articulava os interesses interno com os interesses externos. E aí, veja bem, tem os BRICS, tem o petróleo e o dólar. Isso aí não é brincadeira. O mundo estava começando a discutir a multipolaridade e essa multipolaridade passava pelos BRICS, dólar, petróleo. E veja o que acabou acontecendo agora com a guerra na Ucrânia. Então, esse foi o contexto de uma disputa política. Nessa disputa política a burguesia se uniu toda para criminalizar o PT. E ela se uniu inclusive para dar o golpe.
Em 2016 ela se uniu porque queria interditar essa alternativa popular de massa, ela veta toda vez que as massas tendem a ocupar o protagonismo. Acho que esse foi o sentido de um novo autoritarismo judicial. É tanto que você não tem no Brasil uma decisão no sistema de Justiça que contraria o capital, na relação capital-trabalho, privatização, sistema financeiro… Olha os escândalos que estão estourando aí. Isso não foi investigado, não foi visto? E a imprensa tenta fazer uma campanha para deslegitimar a política pública, ‘a política não presta, tem que ter uma coisa limpa’. E nós não compreendemos essa nova disputa política. Por que? Porque havia uma crise do pensamento de esquerda no mundo. Essa crise incentivou muitos setores da esquerda, inclusive no PT, a adotar o moralismo político como estratégia, fortalecida com a vitória do impeachment contra Collor. A gente incorporou essa luta como estratégica. Em vez de considerar estratégico o programa e as transformações, quando chegamos ao governo. É bom lembrar que a primeira ação contra o PT foi contra o Zé Dirceu no episódio Waldomiro Diniz, no ano da posse do Lula.
Portanto, eles estavam com a determinação. Por quê? Porque achavam que o Lula ia ser um fiasco. Ia ficar quatro anos, saía como um Lech Wałęsa, da Polônia. Só que o Lula governou o país e o Brasil decolou. E aí disseram: “Ah, não, contra esse cara nós temos que romper com as regras da democracia liberal”. E romperam de maneira desavergonhada.
E é bom deixar claro: mídia, poder econômico, sistema de Justiça como um todo — o sistema de Justiça só se levantou quando a roupagem foi desnudada, quando tiraram a roupa da Lava Jato e aí não tinha como defender aquilo. As Forças Armadas se uniram para interditar o PT.
— Você lembrou bem porque tão logo teve a interdição e a prisão do Lula, teve aquele julgamento no Supremo. E aquele famoso tuíte do general Villas Boas. E essa tentativa de golpe que se deu a partir das eleições com a ocupação nas portas dos quartéis, exigindo o golpe de Estado e depois o ato malogrado de 2023. Você vê essa conexão?
— As Forças Armadas, antes do golpe, protagonizaram-no com o discurso da revolução, a guerra cultural contra o politicamente correto, o marxismo cultural e restabelecer o conceito de inimigo interno — os movimentos sociais, o PT e os governos progressistas. O conceito de inimigo interno trazido da Escola Superior de Guerra na época da Guerra Fria.
O bode na sala foi a Comissão Nacional da Verdade quando pela primeira vez o Estado investigou crimes do Estado. Não completou porque não fez um pedido de desculpa perante a sociedade, perante a tutela militar. Então a tutela militar foi restabelecida e eles foram fundamentais no golpe. Primeiro, o Bolsonaro lançou a candidatura dele na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 2014. É bom deixar isso claro, não se lança um candidato dentro da AMAN sem a conivência do Alto Comando. Segundo, além do Twitter, dois generais de quatro estrelas foram assessores da Presidência do Supremo. Nem na ditadura tinha isso. E quarto, eles fizeram a intervenção no Rio de Janeiro, uma intervenção que até hoje não tem a justificativa legal e foi fundamental para preparar o terreno da campanha do inominável.
E fizeram um grande acordo. As Forças Armadas aderiram à geopolítica americana contra o ameaça chinesa e adotaram o discurso neoliberal de privatização, de ajuste fiscal. E foram embalando a candidatura do inominável. Eles se envolveram com o Estado e com o governo. As Forças Armadas entraram para valer no governo e no Estado, e não queriam sair. E aí vetaram a candidatura do Lula. Esse veto no Sete de setembro de 2021, no Sete de setembro de 2022, é quando o Lula ganha a eleição e eles fizeram de tudo para virar o jogo no segundo turno. Não deu. E tentaram um golpe. A tentativa de golpe dependia, no caso do Brasil, de quatro condições.
Primeiro, o aval do imperialismo americano, que eles não tiveram. Dois: a unidade da classe dominante, que não tinham. Três: apoio majoritário da população, mas a população estava dividida. E quarto: a unidade de comando estava dividido. Tinha gente que queria ir pro pau e tinha gente que achava que era um risco. Eles tinham como experiência o golpe na Bolívia, que fracassou, e antigamente o golpe na Venezuela, que deu total força ao Chávez para fazer as transformações profundas. E o golpe fracassado contra o Chávez. Aí houve um momento de vacilação. Nesse momento, os acampamentos eram uma possibilidade, na medida em que representavam um núcleo de mobilização. Quando viram que fracassou o 12 de dezembro, quando Lula foi diplomado, e fracassou o atentado no aeroporto, foram perdendo a iniciativa. Aí foram ao desespero da intentona golpista de 8 de janeiro. E tem como pano de fundo o papel das Forças Armadas na sua tradição golpista. Isso é evidente. Claro que tinham base de apoio no agronegócio, setores do grande comércio, setores da parte da opinião pública, com alguns canais de rádio e TV. Fizeram uma aventura. Agora, temos uma oportunidade histórica de fazer as mudanças necessárias, de subordinar as Forças Armadas aos princípios e aos valores de um regime democrático. Esse é o desafio que está posto.
O outro grande desafio é se vamos passar a limpo as atrocidades cometidas pelo sistema de Justiça. Você sabe que tenho uma avaliação e vou expressar pela primeira vez nessa entrevista para a fundação do meu partido, que é o seguinte: o PT, o governo Lula, não pode representar para o sistema de Justiça o que o PMDB representou, ao aceitar o pacto da transição de 1979, 1985. Eu digo isso: não podemos passar a mão na cabeça dos que promoveram o autoritarismo judicial, fizeram a judicialização, a criminalização do PT sem passar a limpo. A ideia de algum juiz fazer uma ampla, uma grande Comissão da Verdade para analisar tudo isso, essas denúncias que estão aparecendo contra a Lava Jato em Curitiba. E as leis que nasceram na fornalha dos nossos governos têm que ser reavaliadas por uma comissão de alto nível dos juristas.
Isso tem que mudar. Têm que reavaliadas essas leis, essas que estão em vigor. Portanto, a Lava Jato, mesmo enquanto concepção de Justiça que parte da ideia de que a força-tarefa e a operação é uma tradução no terreno do direito do arco de um terreno da guerra militar. Isso tem que ser reavaliado, no meu modo de entender, por uma reforma do Judiciário com mandato. Isso passa pela extinção da Justiça Militar. E recriar a figura do juiz de instrução que nós defendíamos na Constituinte e perdemos, que hoje é chamado como juiz garantista. •