Senador Marcos Do Val revela trama em que foi convidado em dezembro pelo deputado Daniel Silveira e o presidente Jair Bolsonaro para gravar clandestinamente Alexandre de Moraes. A ideia era justificar um Golpe de Estado. O caso tem versões contraditórias, envolve o GSI e coloca Bolsonaro fora da lei: ou prevaricou ou tramou contra a República. Os dois crimes dão cadeia

História mal contada

Depois do 8 de janeiro, quando golpistas tomaram a Praça dos Três Poderes e promoveram um quebra-quebra nas sedes das instituições do Brasil, veio a público a minuta de um decreto presidencial que permitiria a Jair Bolsonaro afastar ministros do Tribunal Superior Eleitoral e promover um golpe de Estado para se manter no poder.

Tais fatos chocaram o país e deixaram o bolsonarismo encolhido e Bolsonaro foragido nos Estados Unidos. Mas o que parecia ser suficientemente grave, ganhou ares de uma ópera-bufa. Na madrugada da última quinta-feira, 2, um novo capítulo da novela sobre a iminência de um golpe para impedir Luiz Inácio Lula da Silva de assumir o novo governo em 1º de janeiro, foi revelado. Dessa vez, por um bolsonarista de quatro costados.

Numa live feita na madrugada, o senador Marcus Do Val (Podemos-ES) revelou em suas redes sociais que tinha em mãos uma bomba: teria sido coagido por Bolsonaro, em 9 de dezembro, a participar de um complô para anular o resultado das eleições de outubro e impedir a posse de Lula. Do Val anunciou na madrugada de quinta, 2, que tinha revelado tudo à revista Veja, mostrando como Bolsonaro tentou “dar um golpe de Estado”.

A ideia da quebra da institucionalidade foi discutida diretamente com o ex-presidente. Ocorreu ainda em dezembro, quando ele e Daniel Silveira se encontraram com Bolsonaro na Granja do Torto, três dias antes da diplomação de Lula pelo TSE. Integrante da base bolsonarista no Congresso  durante quatro anos, o senador revelou que teria sido incumbido de uma “missão” para “salvar o Brasil”. Ele grampearia Alexandre de Moraes, enquanto tentava fazer com que o juiz admitisse ter ultrapassado a lei e cometido abuso de poder.

A conversa entre Bolsonaro, o senador e o então deputado federal foi precedida de ininterruptas trocas de mensagens via WhatsApp entre Daniel Silveira e o próprio Do Val amtes e depois do encontro, ainda em dezembro. Em uma das mensagens, Silveira teria sugerido ter equipamentos disponíveis para gravar Moraes, com o auxílio luxuoso de arapongas do governo Bolsonaro.

“Como tivemos pouco tempo, não passei o que entendo como diretriz para que você adapte da sua maneira”, escreveu Daniel Silveira. “Contudo, já tenho escutas usadas pelas operações especiais. Tenho veículo receptor que pode imediatamente reproduzir além da gravação e essa operação ficar restrita a um círculo de cinco pessoas. Três estavam sentados hoje conversando juntos. Se aceitar a missão, parafraseando o 01, salvamos o Brasil”, diz o Silveira, na qual o “01” seria o Bolsonaro. A mensagem foi publicada por Veja e, segundo a revista, entregue por Do Val.

História mal contada
ALVO Alexandre de Moraes seria a vítima do ‘plano infalível’ que Bolsonaro tramou. O magistrado o classifica como “Operação Tabajara”

Mas, em outro trecho da entrevista à publicação da editora Abril, o senador envolve diretamente Bolsonaro na trama, acusando-o de ter sugerido que realizasse o grampo em Moraes e que isso culminaria na prisão do ministro da Suprema Corte e presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Ainda na sexta, Veja divulgou o áudio do que disse Do Val à revista em resposta ao desmentido do senador, após vir a público a reportagem sobre a trama. Do Val disse à imprensa após a publicação da reportagem que a trama havia sido ideia de Daniel Silveira e que o ex-presidente não teria dado nenhuma palavra durante a reunião.

A revista revelou, contudo, que ele disse que teria ouvido a proposta diretamente de Bolsonaro, quando Veja o questionou se o então presidente teria sugerido que gravasse a conversa com Moraes. “Disse, sim. Que o GSI ia me dar o equipamento para poder montar para gravar. Aí eu falei assim, quando eu falei que ‘mas não vai ser aceito’. ‘Não, o GSI já tá avisado.’ Quer dizer, já tinha validado a fala comigo”.

Segundo o senador bolsonarista, o presidente foi explícito: “Eles vão te equipar, botar o equipamento de escuta, de gravação e a sua missão é marcar com o Alexandre e conduzir o assunto até a hora que ele falar que ele, que ele avançou, extrapolou a Constituição, alguma coisa nesse sentido”, contou o parlamentar à Veja. E continua: “Aí ele [Bolsonaro] falou ‘ó, eu derrubo, eu anulo a eleição, o Lula não toma posse, eu continuo na Presidência e prendo o Alexandre de Moraes”.

Na quinta, 2, Moraes ordenou que a Polícia Federal tomasse o depoimento do parlamentar. E aí o senador veio com uma nova narrativa. Ao ser ouvido como testemunha pela PF, Do Val apresentou “uma quarta versão dos fatos por ele divulgados, todas entre si antagônicas, de modo que se verifica a pertinência e necessidade de diligências para o seu completo esclarecimento”.

O congressista mudou as versões em menos de 48 horas, mas embora tenha tentado alterar qual teria sido a participação de Bolsonaro no complô, suas revelações colocam o ex-presidente diante de dois crimes: participação direta em uma tentativa de golpe de Estado, crime previsto no Código Penal, ou prevaricação. Nos dois casos, as penas podem levar Bolsonaro para a prisão.

Na sexta, 3, Do Val anunciou que iria pedir o afastamento de Alexandre de Moraes do caso por suspeição. O ministro não poderia investigá-lo, já que agora também teria interesse pessoal no caso por ter sido envolvido. Mas isso só piorou a situação de Do Val.

No mesmo dia, o ministro determinou a abertura de um procedimento para apurar suspeita da prática dos crimes de falso testemunho, denunciação caluniosa e coação no curso do processo pelo senador. Do Val disse que informara o próprio Moraes sobre o que foi discutido na reunião com Bolsonaro e Silveira e que se recusou a participar da suposta conspiração. As versões não ajudam a esclarecer o caso.

O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente, disse estar ciente da reunião, que descreveu como uma tentativa de Silveira de persuadir os outros dois homens a fazer algo “absolutamente inaceitável, absurdo e ilegal”. Mas discutir tal ideia não constitui crime, justificou. Mas é crime. Se Silveira convidou ambos a violarem a Constituição para envolver um ministro da Suprema Corte num ardil com o intuito de facilitar um golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder, e ninguém fez nada para impedi-lo, ambos cometeram crime de prevaricação.

Na manhã de quinta-feira, Daniel Silveira foi preso por ordem direta de Moraes. Mas porque o ex-deputado teria violado os termos de sua libertação da prisão. Silveira já havia sido condenado por atos antidemocráticos após fazer ameaças contra Moraes e outros ministros do STF, mas foi salvo por um indulto assinado por Bolsonaro. Ele foi proibido de acessar as redes sociais e obrigado a usar uma tornozeleira eletrônica. Nada parece tê-lo dissuadido a continuar transgredindo as leis.

Na sexta, Bolsonaro protagonizou novo encontro com seus apoiadores radicais. Mas, na Florida. Ele estava num evento no hotel de Donald Trump em Miami, diante de uma multidão de minions. Assim como Trump, jamais deixa de posar de vítima. A aparição marcou parte do ressurgimento depois de semanas escondido em um subúrbio em Orlando, na tentativa de se manter longe do noticiário. No discurso, Bolsonaro fez a defesa de seus quatro anos no poder. E, claro, mentiu.

Durante uma sessão de perguntas e respostas com Charlie Kirk, chefe do conservador Turning Point USA, apoiador de Trump, ele desfiou as realizações de seu governo e abriu espaço para os apoiadores gritarem que era vítima de uma fraude eleitoral. “O Brasil estava indo muito bem”, disse. “Não consigo entender as razões pelas quais (a eleição) decidiu ir para a esquerda”.

O ex-presidente não deu nenhuma declaração sobre seu envolvimento no 8 de janeiro ou quanto à minuta encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres que permitiria a decretação de um Estado de Exceção e sua permanência no poder. Tampouco abordou as revelações de Do Val que o colocam mais perto de ir para a prisão por conspirar contra a democracia.

O PT no Senado quer investigar o senador bolsonarista e avalia a abertura de um processo na comissão de ética. Até porque outro ponto nebuloso nas várias versões do que disse Do Val é sobre o envolvimento de pelo menos dois generais e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sob Bolsonaro no enredo da trama.

A eventual participação do GSI precisa ser investigada. É o que defende o senador Rogério Carvalho (PT-SE). “Se o senador Marcos Do Val comprovar a denúncia de escuta partindo do GSI, isso é muito grave. Porque agrava a situação do ex-presidente Bolsonaro e consolida o fato que os atos terroristas de 8 de janeiro foram uma tentativa de golpe. Valida a minuta encontrada e demais provas das investigações”, disse Carvalho. O senador Humberto Costa (PT-PE) se disse perplexo.

Do Val quer a abertura de uma CPI para investigar os atos de vandalismo e que revelaria mais detalhes da trama golpista da qual participou. “Não posso tornar público porque é sigiloso, por isso estou cobrando [o presidente do Senado, Rodrigo] Pacheco para a abertura da CPI, aí eu posso divulgar”, justificou. “Claro que já tenho todos os nomes, mas só na CPI posso apresentar”. Como se vê, o escândalo ainda está longe de chegar ao fim. Novos capítulos devem se desdobrar ao longo desta semana. •