Antes de Vargas, um país no escuro

Setor privado sempre foi contra a ideia de uma estatal de energia, mas o fato é que o país antes da Eletrobrás vivia uma rotina de apagões. Empresa só virou realidade com Jango

Antes de Vargas, um país no escuro

No Carnaval de 1954, os foliões brincaram nas ruas do Rio de Janeiro ao som de uma marchinha que debochava de uma mazela que infernizava a capital do Brasil: os apagões quase diários. A marchinha “Vaga-Lume”, na voz de Violeta Cavalcanti, denunciava: “Rio de Janeiro / Cidade que nos seduz / De dia falta água / De noite falta luz”.

A eletricidade capenga não era um problema exclusivo do Rio. Afetava o Brasil inteiro. Enquanto as maiores cidades penavam com cortes recorrentes de luz, grande parte do interior do país virava as noites no breu, numa situação ainda pior, sem energia elétrica nenhuma.

Um mês depois daquele Carnaval, o presidente Getúlio Vargas deu o pontapé num ambicioso plano para finalmente pôr o sistema elétrico brasileiro em ordem. Em abril de 1954, ele enviou ao Congresso um projeto de lei que autorizava o governo a fundar uma estatal chamada Eletrobrás.

Papéis históricos conservados pelo Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que Apolônio Salles (PSD-PE) foi um dos senadores que levantaram a bandeira da Eletrobrás. “Dotando o país com energia elétrica abundante, a Eletrobrás há de representar o marco decisivo na caminhada econômica do Brasil”, defendeu.

A criação da Eletrobrás marcaria, de fato, uma mudança e tanto no Brasil. Em meados do século passado, a geração e a distribuição de energia cabiam basicamente à iniciativa privada. O setor era repartido entre a americana Amforp e a canadense Light, que concentravam seus esforços no abastecimento das grandes cidades do país. A Light detinha a nata do mercado: o eixo Rio-São Paulo.

Diante do desinteresse das duas multinacionais pelas regiões pouco lucrativas, os estados ricos se incumbiam de levar a eletricidade às cidades mais afastadas. O governo paulista, por exemplo, criou as Usinas Elétricas do Paranapanema. O Governo mineiro era dono das Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig).

Em todas as situações, contudo, a produção de eletricidade era pífia e as redes de alta tensão, que distribuíam a energia, eram minúsculas e isoladas. Nenhuma das empresas conseguia dar conta da demanda, que crescia exponencialmente. Era a época em que os brasileiros trocavam o campo pela cidade e a economia passava de agrícola a industrial. Os novos tempos eram da eletricidade.

Antes de Vargas, um país no escuro

Para o presidente Vargas, o governo só conseguiria garantir o suprimento energético necessário à industrialização do Brasil se possuísse uma empresa estatal encarregada de fazer o planejamento de todo o sistema elétrico nacional, construir usinas (em especial as hidrelétricas) e erguer torres com linhas de transmissão — sem a seletividade capitalista das companhias privadas nem a visão local e limitada das empresas estaduais.

“O problema da energia elétrica reclama atuação vigorosa e urgente de parte do poder público, para que as dificuldades atuais sejam debeladas e o país venha a dispor no menor prazo possível da energia de que necessita para o seu desenvolvimento”, escreveu Vargas na justificativa que acompanhou o projeto de lei endereçado ao Congresso em 1954.

A ideia era que a Eletrobrás não detivesse o monopólio da energia elétrica, mas trabalhasse em coordenação com os grupos que já atuavam no mercado. O presidente vinha embalado pela recente criação da Petrobrás. A estatal do petróleo criada por ele havia sido aprovada poucos meses antes. O projeto da Eletrobrás, entretanto, não teve vida fácil no Congresso.

Vargas não viu a Eletrobrás tornar-se realidade. A proposta se arrastou pelas comissões do Senado e da Câmara e só conseguiu sair do papel oito anos e quatro presidentes da República depois. O projeto seria aprovado em 1961, e a empresa começaria a funcionar em 1962. Getúlio se matou em 24 de agosto de 1954.

Na carta-testamento, ele citou o movimento daqueles que se opunham à Eletrobrás: “A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. Quis [eu] criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás. Mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o povo seja independente”.

A faixa inaugural da Eletrobrás seria cortada em 1962, pelo presidente João Goulart e pelo primeiro-ministro Tancredo Neves, durante o breve período em que o Brasil experimentou o parlamentarismo.

A Eletrobrás acabaria incorporando as suas adversárias históricas. A Amforp foi comprada pela estatal em 1964. A Light, em 1979. Graças à atuação da nova empresa, a capacidade instalada no Brasil entre 1960 e 1980 aumentou 600%, passando de 5 GW para 34 GW, o que sustentou o “milagre econômico brasileiro” da década de 1970. Atualmente, a capacidade é de 150 GW.