Do contracheque à Ferrari: os Golden Boys do bolsonarismo e o golpe bilionário no INSS
Durante o governo Bolsonaro, jovens empresários e dirigentes de fachada transformaram o INSS num balcão de luxo e corrupção, desviando mais de R$ 700 milhões de aposentados em um dos maiores escândalos da história da Previdência

O golpe começou em silêncio, com pequenos descontos que aposentados e pensionistas sequer notavam. Dois, cinco, dez reais por mês, escondidos sob a rubrica de “mensalidades associativas”. Por trás desses centavos estava um esquema bilionário que, entre 2019 e 2022, os anos do governo Jair Bolsonaro, transformou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) num balcão de negócios e privilégios.
Agora, com as investigações da Polícia Federal, da Controladoria-Geral da União e da CPMI do INSS, a engrenagem dessa fraude tem rosto, endereço e CPF. Jovens empresários, filhos de políticos e operadores digitais, todos com menos de 45 anos, montaram um império com o dinheiro de quem trabalhou a vida inteira.
Eles são os “Golden Boys do bolsonarismo”: a geração que fez fortuna explorando os mais pobres.
A engrenagem do golpe no INSS
O esquema funcionava com aparência de legalidade. As associações obtinham do INSS um Acordo de Cooperação Técnica (ACT), que lhes permitia descontar mensalidades de filiados diretamente na folha de pagamento dos beneficiários. A ideia original era nobre — fortalecer entidades representativas. Mas, durante o governo Bolsonaro, o sistema virou um paraíso para oportunistas.
Entre 2019 e 2022, uma rede de entidades fantasmas passou a usar assinaturas falsificadas, autorizações digitais forjadas e cadastros automatizados para filiar, sem consentimento, milhões de aposentados. Os valores, transferidos automaticamente, chegavam às contas das próprias empresas dos dirigentes dessas associações — que se apresentavam como “empreendedores” e “defensores da inovação”.
A CPMI instalada em agosto deste ano já obteve provas de que as quatro principais associações envolvidas — Amar Brasil Clube de Benefícios, Masterprev, ANDAPP e AASAP — movimentaram cerca de R$ 700 milhões, parte desviada diretamente para contas particulares e offshores.
Os “Golden Boys”
O grupo central da fraude era formado por Felipe Macedo Gomes (35 anos), Américo Monte (45), Anderson Cordeiro (38) e Igor Dias Delecrode (28). Jovens, articulados e com discurso de eficiência, eles se apresentavam como a nova geração do setor de crédito e tecnologia. Na prática, usavam fintechs próprias para lavar dinheiro e justificar movimentações milionárias.
Felipe Gomes, apelidado de “o banqueiro das associações”, presidiu a Amar Brasil — entidade que firmou acordo com o INSS em agosto de 2022, já nos últimos meses do governo Bolsonaro. Um detalhe chama atenção: o pedido de convênio foi feito por e-mail corporativo de sua fintech RendBank, misturando empresa privada com entidade “sem fins lucrativos”. Em seguida, Felipe doou R$ 60 mil à campanha de Onyx Lorenzoni (PP-RS), então ministro da Previdência, que assinara a ampliação das margens de consignado.
Documentos obtidos pela PF revelam que Gomes recebeu R$ 17,9 milhões da Amar Brasil por meio da empresa EMJC Serviços, criada com capital de apenas R$ 20 mil. Ele é também dono da FAE Magazine Virtual e da RendBank — que recebeu repasses diretos de contas das associações. Seu padrão de vida é o retrato da farra: carros de luxo, vinhos raros, jet skis, imóveis milionários e compras mensais de mais de R$ 100 mil em grifes como Louis Vuitton e Dior.
Américo Monte, o “clã do consignado”, era o elo bancário do grupo. Ex-correspondente de crédito, estruturou uma rede de empresas e colocou familiares — pai, tio e filha — à frente das entidades. Segundo o Coaf, movimentou R$ 500 mil em revendedoras de carros, R$ 218 mil em joalherias, R$ 200 mil a um pastor em Alphaville e R$ 100 mil em uma marca italiana de tênis. Também aparece em transferências para Eric Fidelis, filho do ex-diretor do INSS André Fidelis, e para Thaissa Hoffmann, esposa do ex-procurador-geral do INSS Virgílio de Oliveira Filho — ambos afastados após o escândalo.
Anderson Cordeiro, o “estrategista das fintechs”, cuidava da parte digital: integrava os sistemas das associações ao sistema bancário, permitindo que os cadastros de aposentados fossem acessados automaticamente. Os contratos de suas empresas falavam em “análise de perfil financeiro” e “captação de filiados” — na prática, uma cortina para venda de dados e intermediação de empréstimos.
Já Igor Delecrode, o mais novo do grupo, comandava a AASAP e foi secretário da Amar Brasil. Ele criou o elo tecnológico entre o golpe e a aparência de legalidade: suas empresas de biometria digital eram contratadas para “validar” as próprias assinaturas falsificadas. As plataformas controladas por ele, segundo a PF, chegaram a inserir milhares de autorizações fictícias nos sistemas do INSS. Somente as entidades que contrataram sua empresa Power BI Software arrecadaram R$ 1,4 bilhão.
Luxo, política e impunidade
Enquanto os aposentados perdiam poucos reais, os “Golden Boys” viviam como magnatas.
Felipe Macedo patrocinou um réveillon da Igreja da Lagoinha, ao lado do pastor André Valadão, e vangloriou-se, em vídeo, do crescimento de seus negócios: “O menor negócio da minha vida hoje é 40 vezes maior que meu primeiro dízimo neste altar”.
As festas, os carros de luxo e as viagens internacionais eram bancados com dinheiro público desviado de benefícios previdenciários. O dinheiro das mensalidades financiou também campanhas eleitorais, empresas fantasmas e offshores no exterior.
Com a proteção de dirigentes nomeados politicamente, o grupo operou sem obstáculos. Entidades suspensas eram reabilitadas em questão de meses, e alertas da CGU, da PF e até do Procon-SP, enviados desde 2019, foram ignorados.
A blindagem bolsonarista
O escândalo expõe o ambiente de conivência que marcou a administração do INSS sob o bolsonarismo. A CPMI já identificou ao menos dois ex-presidentes do INSS, um ex-ministro e um ex-coordenador-geral que deixaram de agir diante das denúncias.
A Comissão ouviu depoimentos de empresários e ex-assessores que confirmaram o uso de empresas de fachada e contratos forjados. Um deles, o empresário Cícero Marcelino, relatou ter criado firmas “a pedido de dirigentes” para atender a Carlos Roberto Lopes, da Conafer, outra entidade investigada. Segundo os documentos, ele e a esposa movimentaram R$ 300 milhões.
Nas últimas sessões, o relator Alfredo Gaspar (União-AL) e parlamentares da base governista afirmaram que as investigações estão “chegando ao núcleo do esquema”. O deputado Paulo Pimenta (PT-RS) foi direto: “Essas entidades fantasmas foram criadas durante o governo Bolsonaro. Eram o braço financeiro e político de um projeto criminoso.”
O operador de luxo e o reincidente
Entre os personagens secundários, dois chamam atenção. O empresário Luciano Fracaro, paranaense, já havia sido condenado por fraudes previdenciárias. Mesmo assim, voltou a atuar no ramo durante o governo Bolsonaro, ligado a empresas como SudaCred e Sudamérica Promotora. Segundo o TSE, doou R$ 300 mil à campanha de Ratinho Jr., no Paraná.
Outro nome é Fernando Cavalcanti, o “operador de luxo”, ex-sócio do advogado Nelson Wilians. Dono da empresa Valestra, foi alvo da Operação Sem Desconto. Em sua casa, a PF encontrou vinhos avaliados em R$ 7 milhões, R$ 300 mil em espécie, uma Ferrari e réplicas de carros de Fórmula 1, além de dez motos de coleção. Ele é investigado por contratos simulados e lavagem de dinheiro e doou à campanha da filha do deputado Ricardo Barros (PP), figura central do bolsonarismo no Congresso.
Do desmonte à reconstrução
O que permitiu a farra foi o desmonte da fiscalização e o afrouxamento das normas de proteção de dados promovidos entre 2019 e 2022. No mesmo período, o governo Bolsonaro ampliou as margens de consignado, abrindo caminho para a infiltração das fintechs e das entidades “amigas”.
A Operação Sem Desconto, deflagrada em abril de 2025, revelou a extensão do golpe: bilhões desviados, centenas de mandados e prisões em 13 estados. Desde então, o governo Lula iniciou a devolução de R$ 2,1 bilhões a 3,1 milhões de aposentados, com pagamento direto e correção pelo IPCA.
Agora, a CPMI promete ir até o fim. As provas reunidas pela PF, CGU e Coaf mostram como a Previdência Social foi usada como caixa político e pessoal, e como o bolsonarismo transformou a máquina pública em um sistema de favorecimento privado.
O país começa a conhecer, nome por nome, o retrato da corrupção que cresceu à sombra da extrema direita: um Estado capturado por empresários de fachada, servidores cúmplices e jovens milionários que enriqueceram com o dinheiro dos idosos.
Números da Farra do INSS
- R$ 700 milhões faturados por quatro associações (ABCB, Masterprev, ANDAPP e AASAP)
- R$ 1,4 bilhão arrecadado por entidades ligadas à Power BI, empresa de Igor Delecrode
- R$ 17,9 milhões recebidos por Felipe Gomes via EMJC Serviços
- R$ 324 milhões em faturamento da ABCB após o ACT de 2022
- R$ 60 mil doados por Felipe Gomes à campanha de Onyx Lorenzoni (PP-RS)
- R$ 93 mil transferidos por Américo Monte ao filho de ex-diretor do INSS
- 13 estados com mandados cumpridos pela Operação Sem Desconto
- R$ 2,1 bilhões já devolvidos a 3,1 milhões de aposentados lesados
Confira quem são os principais “marajás do INSS”
Felipe Macedo Gomes, 35 anos — Presidente da Amar Brasil; dono da fintech RendBank e da FAE Magazine Virtual; doador de Onyx Lorenzoni; investigado por lavagem e desvio de R$ 17,9 mi.
Américo Monte, 45 anos — Empresário do crédito consignado; envolvido em transferências milionárias e pagamentos a parentes de dirigentes do INSS.
Anderson Cordeiro, 38 anos — Especialista em fintechs; responsável por interligar bases de dados e permitir descontos automáticos.
Igor Delecrode, 28 anos — Empresário de biometria digital; criou sistemas usados para validar assinaturas falsas; faturamento de R$ 1,4 bi em entidades parceiras.