Pepe Mujica: o homem que plantou flores nas ruínas da política, por Pedro Henrichs e Fabian Restivo
Pedro Henrichs e Fabian Restivo contam como Mujica transformou um fusca e uma enxada em símbolos de um novo mundo possível

“De repente você, leitor, acha que conheceu o Pepe. É possível. Você já viu e ouviu notícias, entrevistas, fotos, vídeos. Até provavelmente tenha lido o meu livro…sei lá. Agora sente-se, respire profundo, escolha a calma e leia isto sobre o Pepe. É bom para duas coisas importantes: a cabeça e a alma”- Fabian Restivo.
Era uma vez no Uruguai, não nas páginas de um conto de fadas, mas na dura e bela realidade de um pequeno país entre rios e pampas. Nasceu em 20 de maio de 1935, em Montevidéu, um menino chamado José Alberto Mujica Cordano. A infância não foi abastada, mas cheia de cheiros de terra, vozes camponesas e valores que cresceriam dentro dele como sementes lançadas no campo: simplicidade, honestidade e rebeldia.
Seu pai, agricultor de origem basca, faleceu cedo. Sua mãe, descendente de imigrantes italianos, carregou sozinha o sustento da casa com coragem e dignidade. O menino Pepe como passaria a ser chamado cresceu entre hortas, ferramentas e livros. O campo ensinava sobre tempo e paciência. A cidade ensinaria mais tarde sobre injustiça e urgência.
Na juventude, conheceu a política como quem leva um soco no estômago: pelas contradições do mundo, pelas desigualdades que separavam ricos e pobres, pelas feridas abertas do continente latino-americano. Inspirado pelos ventos da Revolução Cubana, Pepe ingressou no Movimento de Liberação Nacional dos Tupamaros.
Guerrilheiro e prisioneiro do tempo
Os Tupamaros não eram simples militantes: eram guerrilheiros urbanos. Assaltavam bancos para distribuir comida, libertavam presos políticos, ocupavam rádios para ler manifestos. Na época, a ditadura uruguaia endurecia, e o país mergulhava em escuridão.
Pepe Mujica foi preso quatro vezes. Na última, ficou mais de uma década em cárcere nove anos em completo isolamento, em celas subterrâneas, exposto ao frio, à fome e ao esquecimento. “Fiquei louco por um tempo”, confessaria mais tarde. Mas da loucura nasceu outra lucidez. No silêncio da cela, aprendeu a conversar com as formigas, a revisitar a própria alma, a transformar a dor em sabedoria.
Sua prisão foi brutal, mas nunca o destruiu. Ao sair, em 1985, não buscou vingança. Ao contrário: encontrou na liberdade a chance de lutar pela paz. A democracia voltava ao Uruguai, e com ela, Mujica abandonava as armas não por rendição, mas por convicção.
Do cárcere ao Palácio
Na década de 1990, Mujica ingressou na Frente Ampla, uma coalizão de esquerda que crescia no Uruguai. Foi eleito deputado, depois senador, e aos poucos se tornava uma das figuras mais carismáticas do país. Com seu jeito simples camisas abertas, gírias no discurso, flores no bolso do paletó, Pepe desconcertava a elite política e cativava o povo.
Em 2010, aos 74 anos, foi eleito presidente da República. Assumiu o cargo sem abandonar a chácara onde morava com sua companheira de décadas, Lucía Topolansky. Recusou o palácio presidencial. Doava 90% de seu salário. Dirigia seu velho fusca azul pelas ruas de Montevidéu. Não aceitava guarda-costas. Dormia em colchão simples, cercado de livros e cachorros.
Era o presidente mais pobre do mundo e talvez o mais rico em valores.
Durante seu mandato, promoveu reformas progressistas: legalizou o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e regulamentou o uso da maconha. Não fazia isso por cálculo político, mas por ética, por acreditar que a liberdade exige coragem para confrontar tabus e humanizar as leis.
Um filósofo no poder
Pepe Mujica jamais se encaixou nos moldes do político tradicional. Enquanto o mundo caminhava para o marketing de imagem, ele fazia o contrário: despojamento. Enquanto muitos usavam ternos impecáveis e jargões diplomáticos, ele falava com pausas, expressões simples, metáforas camponesas e uma honestidade brutal. E isso o tornava poderoso.
Seu governo não foi perfeito, reconheceu ele próprio. Mas foi coerente. Buscou distribuir renda, incentivou o cooperativismo, fortaleceu a educação pública e investiu em programas sociais. Seu maior projeto, no entanto, não cabia em papel timbrado ou orçamento público: era o projeto de mudar a mentalidade das pessoas.
Pepe falava da morte como quem fala de uma antiga amiga, alertava sobre o consumo excessivo, denunciava a lógica do lucro acima da vida. “Não sou pobre. Pobre é quem precisa de muito para viver”, dizia. Essa frase, repetida mundo afora, era mais que retórica: era sua forma de viver.
Na ONU, em 2013, fez um discurso que se tornaria histórico. Não falou de poder militar, nem de acordos comerciais. Falou de espiritualidade laica, de ecologia, de humanidade. “Viemos ao mundo para ser felizes, não para ser escravos do mercado”, declarou. Os aplausos foram longos. Mas mais do que o aplauso, foi o silêncio reflexivo que ficou.
A flor que brota do asfalto
Ao final do seu mandato, Mujica não tentou perpetuar-se no poder. Passou a faixa presidencial com humildade, voltou ao Senado e logo depois se retirou. Disse que era hora de dar espaço aos mais jovens. Recolheu-se à sua chácara, onde cultivava flores com Lucía. Sim, flores símbolo de paz, de beleza e da delicadeza que ele via como revolução.
Ele era um homem duro, mas nunca frio. Um ex-guerrilheiro que sabia chorar. Um político que não escondia a emoção, nem o cansaço, nem a dúvida. Questionava o próprio passado, refletia sobre os erros e, sobretudo, cultivava a esperança.
Pepe visitou universidades, recebeu prêmios, foi convidado por jovens do mundo inteiro. Em todas as falas, deixava um rastro de reflexão: “Se não mudarmos nossa cultura, não há política que salve”. Falava de afeto, de solidariedade, de tempo. Para ele, o tempo era o maior bem do ser humano. O que fazemos com o nosso tempo é o que somos.
Mujica se tornou ícone. Mas rejeitava o culto à personalidade. Dizia com frequência: “Sou um velho cansado, com mais perguntas do que respostas”. E talvez tenha sido essa consciência da finitude que o tornava tão eterno.
O legado que não morre
Pepe Mujica não escreveu tratados filosóficos, mas viveu como um. Seu legado não cabe apenas nas reformas que fez, nos cargos que ocupou ou nas leis que sancionou. Cabe, sim, uma ética radical de coerência e humildade. Ele nos ensinou que a política pode e deve ser feita com afeto, com simplicidade, com verdade.
Seu exemplo ecoa em líderes e cidadãos do mundo inteiro. Não por ser infalível, mas por ser autêntico. Em um tempo de pós-verdade, ele era verdade. Em um tempo de vaidade, ele era simplicidade. Em um tempo de ódio, ele era ternura.
Mujica foi um sobrevivente da tortura, mas nunca deixou que a dor o transformasse em um monstro. Foi presidente, mas nunca se tornou refém do poder. Foi amado por milhões, mas nunca se esqueceu de onde veio: a terra, a luta, a dignidade.
Hoje, sua imagem permanece como um farol em meio ao caos. Não porque tenha todas as respostas, mas porque nos mostrou que perguntar já é um ato revolucionário.
Amor e resistência — Lucía, a companheira de todas as guerras
Nenhuma biografia de Pepe Mujica pode ser completa sem mencionar Lucía Topolansky, sua companheira de vida e luta. Guerrilheira como ele, prisioneira como ele, sobrevivente como ele mas sobretudo, cúmplice de cada pedaço de história que escreveram juntos.
Lucía e Pepe não tiveram filhos, mas construíram juntos algo maior: uma existência política e amorosa baseada na solidariedade, no compromisso e na paciência. Dormiam na mesma cama estreita, cultivavam as mesmas flores, dividiam o mate ao entardecer e os silêncios da velhice com serenidade.
“Ela é o meu ministério do interior e do exterior”, brincava Mujica. Em suas falas públicas, jamais romantizou o amor como ideal hollywoodiano. Para ele, amar era resistir junto, cuidar do outro na sua inteireza, não esperar a perfeição, mas alimentar a convivência.
O amor, em Mujica, não era fuga, mas trincheira. Era uma escolha diária de permanecer ao lado. Era uma revolução doméstica aquela que constrói o mundo a partir do cotidiano. “A vida não é só o que você quer, é também o que você oferece ao outro”, dizia. E ofereceu sua vida inteira a Lucía, ao povo e às
ideias em que acreditava.
A morte como parte da vida
Pepe Mujica nunca temeu a morte. Falava dela como quem conversa com uma velha conhecida. Após os 80 anos, sabia que cada dia era um presente raro, e cada despedida um ritual necessário. Sua filosofia, influenciada por estoicos, anarquistas, cristãos e ateus humanistas, sempre teve o tempo como medida.
“Temos que viver como se fôssemos morrer amanhã, mas com responsabilidade como se fôssemos viver cem anos”, dizia. Esse paradoxo de viver com intensidade e responsabilidade era o que o movia. Não acumulava bens, mas memórias. Não colecionava inimigos, mas causas.
Sua relação com a morte era tão serena que causava espanto em jornalistas, líderes e jovens. Ele sabia que tudo passa. “Somos apenas um pequeno sopro no tempo, mas podemos escolher o que fazemos com esse sopro. Eu escolhi lutar”, afirmou em uma de suas últimas entrevistas.
Pepe não teve medo de ser esquecido, porque sabia que a memória não está nos livros de história, mas nas sementes que se espalham. E ele espalhou muitas.
Um gigante entre nós
Quando o mundo soube da morte de Pepe Mujica, uma comoção silenciosa atravessou os continentes. Não foi o luto pelo fim de um político, mas pela partida de uma consciência. As redes sociais se encheram de frases suas, imagens com seu fusca, vídeos em que abraçava crianças e fazia rir até os céticos mais duros.
Muitos choraram. Outros refletiram. E alguns, os mais jovens, conheceram sua história pela primeira vez naquele dia. Era como se o mundo tivesse parado para ouvir um velho camponês sussurrar ao vento: “Vale a pena viver com dignidade”.
Artistas pintaram murais. Presidentes enviaram condolências. Professores deram aulas sobre sua vida. Estudantes tatuaram no braço: “Gracias, Pepe”. Mas o maior tributo foi invisível: pessoas mudando pequenas atitudes, sendo
mais gentis, consumindo menos, ouvindo mais, duvidando do ódio. Era a revolução de Mujica em curso silenciosa, lenta, mas viva.
A última lição ser humano é ser livre
Quando se observa a vida de Pepe Mujica, não se vê apenas um político. Vê-se um sábio camponês que traduziu a filosofia em gestos cotidianos. Sua última lição não foi sobre partidos ou programas de governo, mas sobre liberdade.
Para Mujica, ser livre não era fazer tudo o que se quer, mas não ser escravo de nada. Nem do dinheiro, nem do ódio, nem da vaidade, nem do poder. “A liberdade é ter tempo para viver aquilo que te faz feliz”, disse certa vez. É uma frase simples, mas que desarma todo o sistema econômico, social e cultural que aprisiona bilhões em jornadas vazias e sonhos alheios.
Ele defendia um tipo de liberdade que se parece com uma velha bicicleta no campo: silenciosa, útil e suficiente. E foi isso que ofereceu ao mundo não um manual para revoluções, mas um espelho para que cada um olhasse a própria vida.
Nas escolas do Uruguai, professores ainda ensinam sua história. Mas mais do que isso, ensinam seu jeito de ser: dizer a verdade mesmo que doa, escutar com atenção, cultivar o essencial, proteger a natureza e amar com radicalidade. Pepe não queria discípulos. Queria cidadãos despertos.
A despedida do povo
Seu velório foi como ele queria: simples. Milhares caminharam pelas ruas de Montevidéu com flores, bandeiras, bicicletas e cães como se a cidade inteira fosse uma chácara em silêncio. Não houve luxo, mas houve amor.
Camponeses do interior, jovens urbanos, líderes indígenas, artistas, ex-presidentes e crianças se misturam na fila. As pessoas vão dizer: “Ele era um de nós”. Os meninos perguntavam: “Ele vai cuidar da gente lá de cima?”. E havia quem apenas chorasse, sem saber por quê, como se algo precioso escapasse do tempo.
O fusca azul, ficou estacionado na chácara, todos sentiram falta. Era mais do que um carro era o símbolo de que é possível governar o mundo com os pés
no chão e o coração limpo.
Lucía, firme como sempre, agradecia ao povo e deixou mensagem que ressoará por décadas: “Ele salvou minha vida.” O funeral terminou com ela abraçando as bandeiras que cobriam o caixão.
O homem que virou semente
A história de José “Pepe” Mujica não termina com sua morte. Ao contrário, começa a florescer de outras formas. Seu rosto virará arte de rua, sua voz ecoará em vídeos no TikTok, seu fusca aparece em charges no Japão, suas ideias viraram tese em universidades africanas. E, mais importante, sua maneira de estar no mundo tocará milhões.
No futuro, quando perguntarem quem foi esse homem de fala lenta, ombros caídos e olhar firme, a resposta não estará apenas em biografias. Estará no agricultor que partilha sua colheita, no estudante que recusa o ódio, no político que escolhe a verdade, na mulher que luta e cuida, no jovem que diz não ao excesso.
Pepe Mujica não buscou ser herói. E por isso mesmo se tornou um.
É raro encontrar alguém assim. Alguém que passou pela guerra, pelo cárcere, pela solidão, pelo poder e, mesmo assim, escolheu cultivar flores.
E agora, como num último gesto, a humanidade olha para o céu e diz:
Gracias, Pepe.
Por ter vivido sem máscara.
Por ter amado sem medo.
Por ter governado sem se perder.
Por ter sido humano… até o fim.