Durante seminário promovido pela Fundação Perseu Abramo, Dilma Rousseff criticou a hegemonia do dólar, defendeu o uso de moedas locais no Novo Banco de Desenvolvimento e afirmou que a transição para um mundo multipolar liderado pelos BRICS já está em curso

Dilma alerta para crise do dólar e defende papel do BRICS no novo equilíbrio global
Foto: Divulgação/NDB

“O dólar americano foi tradicionalmente considerado um porto seguro pelos bancos centrais ao redor do mundo. Mas hoje ele se encontra sob crescente ameaça, e essa ameaça não vem de fora. A ameaça vem de dentro dos Estados Unidos”. A fala de Dilma Rousseff durante a reunião do seminário promovido pela Fundação Perseu Abramo nesta terça-feira (20), em São Paulo, é mais do que uma análise conjuntural: é um aviso contundente sobre as rachaduras no sistema financeiro global e a urgência de novos arranjos.

O Seminário, organizado pela FPA, pelo Centro de Formação Política e de produção de conhecimento do PT, teve como mote: “BRICS no Brasil: perspectivas e desafios”, e contou com participação online da ex-presidenta Dilma Rousseff, que foi reeleita para chefiar o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS na China recentemente. A iniciativa buscou tratar do BRICS, grupo econômico formado por 11 países: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã, e aconteceu no Auditório Antonio Candido, na sede da instituição. 

A fala da presidenta Dilma pode ser assistida na íntegra neste link.

Multipolaridade 

Segundo a presidenta do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), a instabilidade política e econômica interna nos EUA, aliada à política comercial agressiva e imprevisível, “cria uma incerteza e muita insegurança no mundo” e coloca em xeque o papel dominante do dólar. A crítica vem no momento em que os BRICS, grupo composto por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e novos membros como Egito e Etiópia, avança com propostas concretas rumo à multipolaridade.

“O sistema internacional foi moldado pelos acordos de Bretton Woods, aliados à relativa estabilidade da economia americana. Isso permitiu ao dólar atuar como moeda de reserva por décadas”, explicou Dilma. “Mas esse papel hegemônico, sustentado pelo uso obrigatório do dólar, trouxe também um efeito colateral: a desindustrialização americana, resultado do privilégio de financiar seus déficits com recursos externos praticamente sem custo”, expôs a presenta Dilma Rousseff. 

A ex-presidenta destacou ainda a contradição central da política externa dos EUA, especialmente no governo Trump, que se manteve no governo Biden: “Querem recuperar o poder do Estado-nação, o ‘Make America Great Again’, sem abrir mão da hegemonia imperial do dólar. Mas isso é contraditório. Não dá para manter as duas coisas ao mesmo tempo”.

Alerta sobre o dólar

O alerta não é retórico. Dilma lembra que a confiança nos ativos americanos sofreu um abalo inédito nos últimos anos: “Pela primeira vez em décadas, vimos uma venda simultânea de ações, de títulos do governo e do próprio dólar. Foi uma reação à postura agressiva dos EUA no comércio internacional. E isso é muito significativo”. A quebra de expectativa de que o dólar seja sempre refúgio em tempos de crise é, segundo ela, um marco do fim de uma era.

Nesse cenário, o papel dos BRICS cresce. Mais do que bloco geopolítico, o grupo passa a ser vetor de mudança estrutural no sistema internacional. “Os BRICS não são só o Brasil, não são só a China. Estão em todos os continentes e estão em expansão. Isso é geopolítica, sim, mas também é economia. É a base material de um mundo multipolar”, afirmou Dilma.

À frente do NDB, Dilma tem defendido a ampliação do uso de moedas locais nos financiamentos. “Ninguém tem condição de tomar dinheiro em moeda forte e pagar em moeda fraca. Porque o dólar varia. Quando a taxa de juros sobe, o custo do empréstimo sobe junto. É uma situação impossível”, disse. A solução? “Usar moedas locais para financiar os países. Lançamos títulos em rand sul-africano para emprestar em rand. Podemos lançar em real para emprestar em real.”

Essa estratégia, segundo Dilma, é parte de uma transição que já está em curso. “Não é mais possível depender exclusivamente de um sistema de pagamentos como o SWIFT, que é lento e está pouco digitalizado. Países da Ásia e do Oriente Médio já criaram sistemas alternativos, muito mais ágeis. Isso é como água fluindo. Ninguém segura.”

A presidenta também destacou a postura diferenciada do NDB em relação a instituições financeiras tradicionais. “Nosso banco não tem poder de veto. E, ao contrário de outros bancos multilaterais, nós não impomos condicionalidades para conceder empréstimos”. Para ela, esse modelo reforça a lógica cooperativa que deve guiar o novo sistema internacional. “Cada vez mais está claro que a melhor forma não é o protecionismo, não é a restrição ao outro mercado. A melhor forma é a cooperação”.

BRICS como transformação 

Dilma vê nos BRICS uma plataforma concreta para essa transformação. “Essa reunião é muito importante para, de fato, se dirigir ao que há de mais dificultoso para os países: criar uma plataforma comum, avançar nos acordos já feitos, buscar um entendimento maior da realidade”. Ela reforça: “Se você não entender a realidade, não sabe agir em condições difíceis como as que estamos vivendo hoje”.

A crítica à hegemonia do dólar não vem desacompanhada de alternativas. Dilma aposta no multilateralismo não como discurso, mas como tendência histórica. “A construção de um mundo mais multipolar não depende só da vontade dos países. Há uma tendência econômica, social e política que empurra nessa direção”.

E conclui com um recado ao Brasil: “Temos a mania de olhar só o Brasil. Mas o que ocorre no mundo afeta o Brasil profundamente. Nós estamos diante de uma transição. E essa transição é para um mundo mais igual, em que nenhum país seja hegemonicamente superior ao outro. E os BRICS têm um papel essencial nisso.”