Vilma Piedade, sobre Dororidade: ‘Além da violência do machismo, temos uma dor a mais: o racismo’
Escritora e Palestrante, Vilma cunhou o termo “Dororidade” como uma resposta à dor localizada das Mulheres Negras, que sofrem tanto com o machismo quanto com o racismo. Critica do racismo na linguagem e na sociedade, a autora enfatiza a relevância de figuras como Lélia Gonzalez para o feminismo negro

Em um cenário onde as palavras ganham novos significados para incluir todas as dores e vivências, Vilma Piedade, reconhecida Professora e Escritora – e ela faz questão de ressaltar: com caixa alta, que é o valor que o ofício tem – introduziu o “Conceito de Dororidade” ao debate social quando lançou o livro sobre o tema, em 2017 (NÓS).
Defensora da flexibilidade das ideias, afirma que “um Conceito nunca é definitivo ou imutável”. Sua experiência como “mulher preta, feminista, de axé” a levou a perceber a insuficiência da “Sororidade” em abordar questões de “pretitude”, refletindo que “quanto mais preta, mais racismo, mais dor”.
“Dororidade”, o livro e o Conceito, foi muito bem recebido pela Juventude Negra brasileira, em especial na cidade de Vilma, a capital fluminense. Manifestou-se em murais no Rio de Janeiro e inspirou canções de Rap. A expressão transcende fronteiras e ganhou reconhecimento na área do direito.
Sobre a inclusão na educação, Vilma Piedade observa o sucesso das políticas de cotas, destacando que “hoje a Universidade empreteceu”, mas admite que “ainda tem que ficar mais preta”, um objetivo que vislumbra para as gerações futuras.
A Escritora apresenta a leitura de seu livro com uma provocação sobre a cor associada à faxina, observando uma relação racista enraizada na linguagem: “faxina tem cor? Aqui tem, tem cor. É preta” e destaca a linguística entre branco e preto, luz e sujeira, revelando como o racismo está impregnado na língua portuguesa.
Graduada em Ciência da Literatura pela UFRJ, palestrante e autora renomada, Vilma publicou o Livro “Conceito Dororidade” em 2017, com uma edição traduzida em espanhol lançada na Argentina em 2020. Em 2021, co-lançou “Sobre Feminismos”. Integrou a Comissão de Relatoria da Revisão da Conferência de Durban e foi agraciada com várias homenagens, incluindo o Diploma Heloneida Studart. Em 2023, escreveu o prefácio do livro traduzido de Maya Angelou, Não trocaria Minha Jornada Por Nada, enquanto idealizou a obra “Nós… Mulheres do Século Passado”, realçando as histórias de 76 mulheres. Vilma Piedade é hoje uma referência nas narrativas Negras e Feministas.
Vamos começar sobre educação? Como a senhora avalia o sistema de cotas que existe no Brasil, você acha que ele causou algum impacto para a inclusão dos alunos?
Excelente pergunta. Eu trabalhava pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, fui uma das revisoras da relatoria da Conferência de Durban, fomos nove, eu fui delegada de conferência e relatora, nós brigamos muito para as cotas que vieram em 2012. As cotas são excelentes, mas nem deveria ter cota, não é? Porque se fosse igual, como foi criado com o mito da democracia racial, porque é um mito, teria para todo mundo, mas nós sabemos a dificuldade, porque povo negro ou é regra ou é exceção, e nós sabemos que os nossos jovens, e às vezes não jovens, na sua grande maioria negros, têm mais dificuldade para ingressar numa universidade pública. Hoje tem o Enem, que facilita também, mas eu, quando entrei na UFRJ, só tinham quatro alunos negros, e eu não era considerada Negra, por ser Negra mais clara. Eu era chamada de morena e eu não tinha consciência racial nenhuma. Então, eles diziam assim: “você tem o nariz afinado, os lábios finos”, isso quer dizer, eles estavam falando em fenótipo, mas eu não sabia, eu fui saber depois, quando eu entrei no movimento negro, no movimento de mulheres Negras. Então, eu não tinha essa consciência, eles inventaram uma raça morena para mim. Quer dizer, depois eu fui perceber, mais tarde, por que não tinha negros. A universidade, quando eu fui da Federal, eu tinha que estudar o dia inteiro, tinha matéria de manhã e de tarde. Eu sou filha única, de classe média, então eu podia fazer isso, meus pais podiam. Então, talvez a maioria dos outros não pudesse. Então, a cota é necessária, é fundamental, porque hoje, quando eu vou numa universidade, dar uma palestra e vejo ela preta, é muito bom isso. E nós ainda precisamos alcançar mais a nível de escolaridade, mas já foi um avanço.
Também tivemos, recentemente, o reconhecimento de personalidades pretas, tanto na Academia Brasileira de Letras quanto na Academia Brasileira de Cultura
Uma literatura preta… Tem muitas mulheres fantásticas escrevendo, e homens também. Eu vou citar Conceição Evaristo, citando todas elas, mas eu vou ter que falar em Lélia Gonzalez, porque, como eu criei o Conceito de Dororidade para dialogar com Sororidade… A Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Angela Davis lá fora, nós temos que saudar todas as que vieram antes de nós, mas a Angela Davis ainda está aí. Então, por exemplo, se nós temos o feminismo negro hoje no Brasil, nós devemos a Lélia Gonzalez. Quando ela cria, em 1983, o coletivo Nzinga, de mulheres…
Você conheceu a Lélia Gonzalez?
Conheci. Tinha uma coisa, a Lélia era lacaniana, e a gente, na faculdade, não gostava do estruturalismo, a gente não gostava de Lacan, olha que maluquice! Mas, veja bem, eu conheci Lélia no Parque Large, dando cursos. Eu sempre usei turbante, ela usava também na faculdade. E, uma vez, nós estávamos na universidade, éramos bem jovens, fomos até lá, na sociedade lacaniana, e ela falou assim: “já vi esses meninos aí!” Foi muito engraçado, porque a gente tinha menos idade. Mas, o que ela deixou, ainda deu para conhecê-la. Lélia entrou no MNU (Movimento Negro Unificado), ela foi uma das fundadoras, ela se candidatou. Mas nós temos que falar que Lélia Gonzalez, abre um caminho para a gente que é interseccionalidade, ela usou, trabalhou em interseccionalidade antes. E outra coisa também: ela criou dois Conceitos: a amefricanidade e o pretuguês. Primeiro o pretuguês, depois a amefricanidade. E foi uma das que mais viajou para fora desse país para dar palestra. É Lélia que empretece o feminismo, porque a primeira onda do feminismo era totalmente branca; e estou falando branca não é questão de cor de pele, estou falando da branquitude, porque as mulheres dos EUA iam para a rua para pleitear para poder trabalhar fora, mas a maioria das nossas ancestrais já trabalhavam na casa delas há muito tempo, até para elas estarem na rua pleiteando direito.
Você fala da Lélia e esse ano ela teria completado 90 anos, no dia 1º de fevereiro. Você acha que o mundo acadêmico está incluindo a Lélia adequadamente, a grandeza que ela representa, como tradutora, inclusive?
Tradutora, antropóloga, historiadora, eu vou falar do meu exemplo. Quando eu entrei na academia, não tinha negros no conteúdo programático, só Machado de Assis. E nem era negro naquela época. Então, o que acontece? Hoje, no currículo, no conteúdo programático, você encontra literatura infantil de autores negros, você encontra Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez, hoje é mais estudado, está no conteúdo. Hoje mudou, mas ainda pode mudar mais. Também os estudantes criaram coletivos dentro das universidades, estou falando das públicas, não sei a realidade das universidades particulares, eu sou muito chamada para a universidade pública. A gente tem que pensar o seguinte: a lei, a abolição, que a gente chama de inconclusa, a lei Áurea, ela veio em 1888 e antes, teve a lei de sexagenario. Tem um estudo que diz que os escravos, na época, não chegavam, a maioria não chegava aos 60 anos. Teve a lei do ventre livre, mas livre pra quê? Então, quando vem a lei Áurea, logo depois, em 1890, vem a lei de que negro não tinha direito a terras. Aí veio a imigração toda pra cá. Então, nós sofremos muito, até hoje, com a questão da herança da escravidão, porque isso é uma herança. O Brasil foi o último país a combater a escravatura. Nós tivemos problemas sérios com o patriarcado, com a sociedade patriarcal, machista e com o racismo. E nós tivemos um racismo que, como criaram o mito da democracia racial, de que o Brasil não é racista, mas nós vemos casos de racismo diuturnamente em escola, universidade, no trabalho. Uma coisa também muito interessante que o movimento brigou muito e que acabou foi aquela história de foto no currículo. Aquela foto no currículo para arrumar emprego tinha a ver com o fenótipo, ou seja, seus traços físicos, que foi criado lá no século XIX no movimento da eugenia. Então, inventaram que tinha uma raça superior, que seria branca, que nós éramos uma raça inferior. Aliás, nós fomos os únicos povos vendidos em praça pública como peças. Se hoje nós temos as cotas, em 1968, existia uma Lei de cotas chamada Lei do Boi, que era para filhos de ruralistas, para a Universidade Federal. Então, eu acho que é um avanço. Seja o que for, é um avanço. Porque hoje a Universidade empreteceu. Mas ainda tem que ficar mais preta. Com certeza. Porque preto ou é regra ou é exceção. É regra na falta de saneamento básico, na baixa escolaridade. Agora, é exceção quando eu tenho que apresentar a desembargadora Ivone Caetano, como a única Desembargadora Negra do Rio de Janeiro. A professora Helena Theodoro, que é uma escritora que é fantástica, é a única professora pós-doc negra também no Rio de Janeiro. Quer dizer, isso tudo é exceção, né?
E tem também a doutora Edilene Lobo, que está no TSE.
Exatamente… hoje as mulheres ocupam cargo, ainda é pouco, mas já tem. Vamos aguardar, porque não é para a minha geração, mas espero que a geração futura. Agora também tem mais incentivo, prêmio de cientistas, jovens cientistas, e tem muitos negros, alunos ganhando, e eles também estão se articulando na música, na literatura, mas na música também. E agora, nas teses, Lélia Gonzalez, Angela Davis, aqui a gente deve muito, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Helena Theodoro. Eu estou nas teses por causa da Dororidade.
Então, vamos falar sobre Dororidade. O seu livro e a sua trajetória são a marca desse ativismo que criou o Conceito Dororidade. Você acha, falando especificamente sobre o dia 8 de março, para a gente desenvolver o Conceito que você criou em 2017, que o 8 de março os movimentos, as marchas já absorveram esse Conceito? Será que a gente já está vivendo uma luta que leva em conta a Dororidade?
Olha, eu vejo muita gente, principalmente, eu agradeço muito a juventude, que é a nossa continuidade, que usam o Conceito, falam sobre o Conceito, estão nas teses. Quando eu crio esse Conceito, eu crio para dialogar com Sororidade, porque Sororidade é um Conceito que ancora o feminismo, é a união entre as mulheres. Mas Dororidade vem de dolor, que é um prefixo latino, Sororidade vem de soror, que é um prefixo grego, que significa irmã, mas não é para ficar na dor, é para transformar a dor em potência, como a gente está fazendo. Então, tem clipe de Dororidade, tem um mural de Dororidade aqui, na Rua do Lavradio, que a Panmela Castro pintou com uma placa, tem várias coisas, mas Dororidade veio porque, na minha concepção, o machismo mata. Mata mulher branca, ribeirinha, caiçara, preta, mata. Mas nós, Mulheres Negras, além da violência do machismo, temos uma dor a mais, que é a dor provocada pelo racismo. Aí entra a raça, entra a classe, entra a gênero, entra a interseccionalidade. Ele é muito usado, ele tem sido muito usado, inclusive agora escreveram, saiu num caderno mexicano, sobre Dororidade africana. Eu uso o Conceito de Pretuguês aqui da Lélia. Ele tem sido muito usado, eu sou muito agradecida. A coisa mais interessante é que quem pegou o Conceito e absorveu, foi a área de direito. O doutor Gustavo Bernardo decidiu usar Dororidade na área de direito, porque no caso da Mulher negra, diz ele, a pena vai para além da apenada, atinge a família dela inteira – isso aí é decorado, eu não entendo nada de direito (risos)… Mas eu sou sempre convidada para o Instituto de Advogados do Brasil, para as faculdades de direito. Já abri duas vezes, um encontro de advogadas negras, e elas criaram Dororidade jurídica, que é só de advogadas negras no Instagram. Já criaram Dororidade capilar, eu falei, gente, o que é isso? Aí as meninas explicaram: é quando você alisa o cabelo e aí você passa por um momento de baixa estima. Tem gordoridade, e eu fui falar com elas, e elas me explicaram, que no caso da mulher gorda, a gordofobia da mulher gorda preta, a solidão da mulher negra é maior. Entendeu? Então tem essa questão da solidão da mulher negra.
Como foi o seu encontro com a Angela Davis?
Angela Davis é uma referência, a nossa referência. A intelectual, ativista negra, desde Black Panthers, isso tem anos, ela cria, ela trabalha com essa interseccionalidade, ela trabalha com gênero negro-clássico, uma intelectual brilhante. Inclusive quando ela veio aqui em 2019, ela falou assim “eu não sei porque vocês vivem atrás de mim, se vocês têm Lélia Gonzalez”. Foi muito engraçado. E eu fui para uma reunião com 30 mulheres negras, e eu pedi a minha filha, porque eu não falo inglês, e ela fala muito bem, escreve muito bem, para traduzir, eu dei para ela o Conceito, ela traduziu em inglês, e a dedicatória. E quando eu cheguei lá e estava entregando o livro, eu fui entregar meu livro para ela. Ela leu e gostou muito. Depois eu a encontrei no Festival LED e tiramos até uma foto, conversamos, claro, com tradução. Ela é uma referência, ela é uma referência para nós, ela é uma referência para o mundo, porque ela não vem de agora, ela vem de lá do Black Panther, assim como Maya Angelou. A Nova Fronteira me convidou para fazer o prefácio da Maya Angelou, Não Trocaria Minha Jornada por Nada. Conceição Evaristo fez o do primeiro, Carta à Minha Filha, e Djamila Ribeiro fez do terceiro, Até as Estrelas Parecem Solitárias saiu agora, esse ano, que passou. Eu dei até entrevista para o Le Monde por conta desse livro, a Maya Angelou também era múltipla, Maya Angelou lutou ao lado de Malcolm X e Martin Luther King pela emancipação dos povos pelos americanos, afro, pelos afro-americanos. Ela era atriz, ela era apresentadora, ela tinha seriado, ela era poetisa, ela era escritora, tudo, múltipla. E ela tem um poema muito famoso, Ainda Assim Me Levanto, que quando ela diz, “você pode me reduzir a pó, mas assim como a poeira eu vou me levantar”. Eu acho que é o que todas nós, mulheres, a população negra faz, é levantar, é transformar dor em potência, é transformar dor, por exemplo, nisso que está aqui, é transformar… Hoje tem uma literatura infantil juvenil fantástica, nós temos um filósofo que é o escritor Renato Nogueira, nós temos o Rodrigo de França… Quando eu era criança, não tinha literatura preta, gente. Não tinha literatura infantil, não tinha nem boneca, até que a Estrela criou a barba preta. Criou uma heroína preta, negra. Eu fui para a Bienal com a Andréa Pachá, escritora, desembargadora, e nós fizemos esse livro aqui sobre feminismos, porque eu falo muito de racismos e feminismos, a idealização é minha, mas a organização é da Andréa Pachá, desembargadora, escritora, e da desembargadora, escritora Cristina Gaulia. Aqui tem cozinheira, tem ministra, tem Zélia Duncan, aqui tem… É bem interessante. Uma coisa que eu ia colocar, é que eu trabalho com racismos. Porque a língua portuguesa tem uma coisa, ela vai, conforme o falante vai usando o vocábulo, ela vai esvaziando. Quando você falava em necropolítica, agora com os algoritmos, acabou. Genocídio da população negra, acabou. Genocídio da juventude negra. Só que o racismo, nós somos através da linguagem, a partir da linguagem. O racismo se alimenta, se retroalimenta na linguagem. Porque a coisa está ruim, você não tem direito, a coisa está preta. Tudo que é ruim é preto. E amanhã é oito de março, o Dia Internacional da Mulher, mas a nossa luta é todo dia. Nossa luta pelos direitos de todas as mulheres. E nossa, de mulheres negras, é todo dia, porque o aumento do feminicídio está aí. E se antes matava mais mulheres brancas, que não devia matar nenhuma, de cor nenhuma, hoje estão matando mais mulheres negras. O Ministério das Mulheres fez uma ação muito bonita, interessante, com uma faixa imensa, na abertura do desfile das escolas de samba, mas nós precisamos de mais ações para combater o feminicídio, que só aumenta. E tem uma coisa que poderia mudar na mídia, não tem a menor interferência, mas antigamente tinha até uns grupos que trabalhavam com a mídia, como por exemplo, em um texto, quando o repórter diz que “matou porque não suportou a separação”. Não é isso, é assassinato, é crime!
As palavras importam.
A palavra… A palavra importa, a palavra nos constrói. Então, viva o 8 de março, viva o dia Internacional das Mulheres, porque nós não tínhamos isso, e que nós possamos avançar e que o feminicídio acabe, porque precisamos de mais políticas públicas para trabalhar essa questão. Apesar que já tem, tem a Lei Maria da Penha, medidas protetivas, mas que não… ainda não funcionam.
Você pode explicar para a gente como é o seu trabalho de letramento racial e esse empretecimento?
É um curso, eu trabalho muito com vídeo, eu gosto muito Por exemplo, teve uma música, em 1949, da Banda Lua, já no YouTube. Foi um sucesso internacional, foi traduzido em mais de seis idiomas, que era “Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia”. São seis homens, héteros, brancos, cis, eles cantaram e fizeram um sucesso imenso. Esse Nega do Cabelo Duro ficou, porque a linguagem fica, nosso cabelo não é duro, nosso cabelo não é ruim, nunca fez mal a ninguém, hoje a gente até está na moda. Mas… Aí o Emicida com a Elza Soares, dois ou três anos antes dela morrer, ressignificam esse Nega do Cabelo Duro, é muito interessante. Então ela fala, qual é o pente que me penteia. E ele romantiza a imagem dela, porque a imagem da mulher negra não é romantizada. Agora que tem maquiagem para pele preta, protetor solar, porque antigamente a preto não precisava ir à praia. Era uma coisa assim, essas falas vão retroalimentando, vão alimentando o racismo de uma forma absurda. Denegrir. Acabaram com denegrir. Mulata, que vinha de mula, que também acabaram. O movimento negro atuou muito junto, na época, há anos e anos atrás, um personagem que tinha no Zorra Total, que era negro, e tirou o personagem do ar. Mas vocês sabem que depois da pandemia e depois de certas questões que eu não gostaria de mencionar, não quero, mudou muito. Hoje o movimento está mais tímido, até porque nós estamos vivendo um momento muito sério de mudanças climáticas intensas, de muita violência. São várias violências.
A gente começou falando sobre a questão da academia, das cotas, essa foi a primeira parte da nossa entrevista, e eu queria saber o que você achou dos Racionais receberem esse título de honoris causa pela Unicamp?
Eles são fantásticos. É muito importante. Isso é muito importante. Um grupo que faz a luta anti racista, pelo fim da desigualdade social e racial, ser reconhecido pelo seu trabalho, é maravilhoso. A academia tinha que empretecer, é um orgulho ter o Racionais reconhecidos como Doutores Honoris Causa. Agora, veja, a Academia Brasileira de Letras está difícil de empretecer, mas ela está melhor. E nós temos também que comemorar agora o nosso primeiro Oscar. Inédito. Ainda estou aqui. Eu fiz um card que nós ainda estamos aqui, nós negros e negras, apesar de tudo, nós ainda estamos aqui também. Parabéns, Walter Salles, Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Marcelo Rubens Paiva, Rubens Paiva.
Memória. É o que a gente tem que trabalhar.
Memória. Muito importante. E a casa que foi construída o filme vai ser transformada num museu, num centro cultural. É isso, sabe? Memória. Eu agradeço muito a vocês. Dororidade está aí. Eu tenho uns textos aqui também, porque por exemplo, a escritora premiada, Luana Tolentino, é porque o racismo tem uma coisa, depende da roupa que você está, você sofre mais racismo, mais ou menos. E como disse Steve Biko, quanto mais preta a cor da pele, mais racismo você sofre. Então, ela estava no aeroporto, mas estava de sandália havaiana, e uma senhora chegou perto dela e falou assim, você faz faxina? Ela falou, não, eu faço mestrado.
Inclusive, isso está no seu livro, essa história.
A cor da faxina no Brasil. Aí eu botei, faxina tem cor? Aqui tem, tem cor. É preta. Ou limpa sujeira, que é preta. Está no léxico, está no dicionário. É só procurar sinônimos ou antônimos. A oposição linguística é notória. Estrutural, alimento imaginário, o racismo, o branco, o luz, o preto, o sujo. Está na nossa língua portuguesa. Isso também conceituo como Dororidade, o que é, ou o que pretende ser. Seria a dor e a nem sempre beleza de se saber ou de não se saber quem somos? Aí eu falo sobre ela, o que ela botou na gente, o que aconteceu. Porque a identidade às vezes não adianta, né? E tem mais uma coisa, eu faço uma pesquisa, no curso de Letramento Racial que eu coloco, que é, peço para fazer a pesquisa, se você pegar dicionário online, hoje, alguns, e forem ver sinônimo de preto, é só uma coisa ruim. Sinônimo de branco é só bom. Então, isso, na minha época, deve ficar falando tanto na minha época, né? Mas era na minha época mesmo. E eu acho que vocês não pegaram isso. Levava dicionário para a escola. Apesar que agora não tem mais celular na sala de aula, que bom. Que bom. Mas eles vão fazer pesquisa e vão ver em casa. E está lá. Então, é complicado. Aí você, como diz o José Saramago, que é um grande escritor, não há língua portuguesa, há línguas em português. Como que você faz isso se nós temos a língua do colonizador? A gente trabalha muito para fazer isso, mas é difícil. Nós temos pronomes que nós não usamos quase. O tu e o vós. O vos é usado para a questão do STF, do Supremo, para as excelências. Mas o tu, nós não usamos quase as palavras.
Será que já não está na hora também, depois do Dororidade, de a gente admitir que não falamos a língua portuguesa, que falamos a língua brasileira? Você acha que a gente pode evoluir para dizer que a nossa língua é o brasileiro?
É uma reforma no léxico. Por exemplo, para mim, quando eu dou essas aulas, o léxico teria que ter uma reforma. Por exemplo, esses dicionários teriam que mudar, mas isso é muito difícil. Nós falamos uma língua brasileira, sim, porque nós temos vários dialetos. Nós temos, por exemplo, macaxeira, que é aipim, dependendo da região. Nós temos uma língua brasileira, diversa. Mas, como dizia Lélia Gonzalez, quando ela faz o Conceito do Pretuguês, e ela coloca, eles dizem que a gente… Porque Lélia tinha uma coisa, ela “desengessava” a linguagem acadêmica. Então, ela falava a gente o tempo todo. Era quando eles diziam que a gente fala errado porque fala pobrema. É porque não tinha o L na língua africana. Então, nós não podemos esquecer que nós herdamos muita coisa da linguagem africana porque vieram várias nações para cá. Povos que foram escravizados, quieto, banto, efom, gigi, várias. E isso tudo, por exemplo, hoje todo mundo fala axé. Já está popularizado. Mas, antes, axé era uma palavra nossa, não era bom falar isso. Mas, essa pergunta que você fez, a gente fala uma língua brasileira? Falamos, sim. Nós temos aí, nós temos músicas, você pega um MC, pega o Beco Estúdio Blues, você pega o Racionais MC, você pega a Caetano, você pega… Pega todos eles, né? Milton, que, aliás, foi uma homenagem linda que foi feita para Milton Nascimento, agora no Carnaval. E pega todos eles.. E todas. Eu vou ficar devendo, né? Jovelina, Pérola Negra. E a gente também não pode esquecer, uma coisa, desculpe: a resistência. Porque Tia Ciata é um nome do samba, que é de uma importância inenarrável. Porque a pequena África, Prainha, Pedra do Sal, ela mantinha, foi ali, tinha o samba, e lá atrás tinha o terreiro. Então, essas mulheres que vieram pra cá, que fundaram o Candomblé, e que resistiram, essas mulheres foram muito importantes. São até hoje. E, apesar disso tudo, nós temos o racismo religioso. Nós temos intolerância religiosa. Então, a língua portuguesa, tem uma coisa, fica assim, racismo linguístico, racismo religioso, racismo recreativo, racismo estrutural, racismo sistêmico. Vai dividindo. É racismo. O Vini Junior sofreu racismo, aí botam, não, é racismo recreativo já fazendo esses recortes. Isso já é a nossa língua brasileira, mas eu prefiro trabalhar com racismos. Mas respeito todo mundo que trabalha só com racismo. Trabalho com racismo também. Às vezes eu não uso negra, eu uso preta. Que aí eu sigo o Achille Mbembe, e ele diz que se a gente continuar usando, segundo ele, na leitura dele, usando negro, a gente pressupõe que tem uma raça ainda superior à branca. Então ele prefere usar o quesito cor. E o SUS usa o quesito raça-cor, né? É importante.
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