Marcio Astrini, diretor do Observatório do Clima, fala sobre eventos climáticos extremos e como é possível se preparar para o agravamento de situações que poderiam ser evitadas com planejamento e reconhecimento das transformações a partir do aquecimento global


Claudia Rocha

Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima. Foto: MarciaAlves

Formado em gestão pública e pós-graduado em políticas públicas e direito constitucional, Marcio Astrini tem experiência nos poderes Executivo, Legislativo e no terceiro setor. Ele trabalhou por mais de uma década no Greenpeace Brasil, onde coordenou as áreas de clima, Amazônia e políticas públicas. Atualmente, é secretário-executivo do Observatório do Clima, uma rede de entidades que discute a problemática das mudanças climáticas a partir do contexto brasileiro.

“Hoje, na verdade, a política ambiental que a gente tinha no governo Bolsonaro, que saiu do Executivo, atravessou a rua e se instalou dentro do Congresso Nacional”, comenta Astrini, que relatou que o Observatório catalogou 25 projetos em nível acelerado de tramitação com perspectivas de destruição da agenda ambiental. Em relação a novos empreendimentos que considera pouco eficientes, como as hidrelétricas, afirma: “eles plantam hoje o desastre de amanhã”.

Para além das enchentes, como as que devastaram, recentemente, o estado do Rio Grande do Sul, deixando uma centena de mortos, mais de 615 mil desabrigados e um percentual de 91% das fábricas gaúchas inundadas, o ambientalista revela preocupação também com outras regiões como o Semiárido, a Amazônia e o Pantanal.

Para Astrini, as mudanças climáticas agravam ainda mais as desigualdades sociais porque afetam justamente as populações que estão mais vulneráveis; ele explica na entrevista a seguir:

Primeiro, acho importante trazer um pouco de esclarecimento sobre a relação do que aconteceu no Rio Grande do Sul com as mudanças climáticas, né? Com a rede social, acaba que esse debate fica um pouco nebuloso. Então, de uma maneira didática, qual é a relação desses eventos? Enchentes, por exemplo, não são incomuns, mas, como se dá a interferência do aquecimento global neste caso?

O que a gente chama de aquecimento global é o que potencializa esses eventos e torna alguns deles extremos. Então, por exemplo, uma região que chove muito, a volumetria tem uma média e uma periodicidade média, isso é histórico. O que o aquecimento global faz, quando você tem a interferência do aquecimento do planeta, é que esse fenômeno passa a ser mais extremo e mais constante. Então aquela chuva que chovia naquela volumetria e naquele espaçamento de tempo, muitas vezes, ela chove em uma volumetria maior, ou seja, tem muito mais chuva caindo em um menor espaço de tempo no mesmo local. E nós, a humanidade, nos adaptamos aos locais onde vivemos. Então, em áreas que já são naturalmente alagadiças, há um resguardo maior para poder construir habitações, em outras áreas, um resguardo menor de onde o rio está passando. Essa geografia está sendo mudada hoje por conta dessa modificação do clima no planeta, então é uma readaptação total, né? Aquela adaptação que nós tínhamos e aquela regularidade climática que a gente conhecia vai ser radicalmente alterada, já está sendo, e continuará por um bom tempo.

E quando a gente fala de adaptação, para além desse primeiro momento, do resgate das vítimas e a reconstrução da infraestrutura, quais são essas medidas de adaptação das cidades?

É importante entender que a adaptação ela não vai fazer parar de chover, né? Ela não vai aliviar aquele evento que já que seria extremo e fazer com que ele fique menos extremo ou com menor potencial. O que ela vai fazer é preparar regiões, as que são possíveis de serem preparadas, para ficarem mais fortes para encarar um evento que vai acontecer em maior intensidade. O tipo de adaptação a ser feita depende também do tipo de problema e da localização. Vamos supor que você tem uma cidade com um número grande de habitações que estão em encostas, você precisa verificar o risco de deslizamento, se há alguma obra de engenharia que elimine esse risco – ou se vai vai ser preciso fazer a remoção temporária para que as pessoas não morram soterradas ou, aos poucos, uma remoção total porque senão aquela população fica exposta ao risco de vida, esse é um exemplo. Podemos pegar outro exemplo, o oposto, em regiões de seca como no semiárido, onde temos um número muito grande de pequenos agricultores, agricultura familiar, em pequenas propriedades. Tem uma previsão de que a gente tenha secas mais severas, mais intensas, e cada vez mais frequentes, quer dizer menos espaçadas, nessa região. Então, em alguns desses lugares, você pode levar a irrigação assistida, por exemplo, para melhorar a capacidade de armazenagem de água quando tem chuva na região, isso vai tornando aqueles habitantes e aquela produção de alimentos um pouco mais fortalecida do que ela é hoje para enfrentar um evento extremo. Mas, existem regiões em que, realmente, a adaptação não vai conseguir suprir o tamanho do risco, não vai conseguir minimizar, e aí o tratamento tem que ser outro, mas vai depender de cada área.

Hoje, no Brasil, o Cemaden, que é o centro de controle e monitoramento de desastres naturais, classifica cerca de mil áreas no país, existem mais do que mil áreas, na verdade, mas, pelo menos, mil áreas são monitoradas constantemente. E agora o que a gente precisa é se debruçar sobre essas áreas, verificar qual o grau de risco que cada uma delas têm e o que é possível fazer em cada uma. Quanto custa isso? Quanto tempo leva? Qual o tipo de engenharia? E começar a agir porque o que aconteceu no Rio Grande do Sul, infelizmente, não é e não será um fato isolado. Não só o Brasil, mas o mundo inteiro está sujeito a esse tipo de intercorrência, infelizmente com cada vez mais frequência.

Pegando esse gancho, quando a gente fala de orçamento, principalmente nesses momentos de maior emergência, logo falamos em equipar a Defesa Civil. Quais são os órgãos que precisam ser fortalecidos no quesito planejamento?

Temos muitas universidades no Brasil que já trabalham com isso, muitos cientistas dedicados a essas análises. Acho que o meio acadêmico vai ser fundamental em ter parcerias com o poder público em indicar áreas. Por exemplo, nas zonas litorâneas, a gente tem mais de 20% da população hoje que vive na costa brasileira, então indicar ali quais são os principais riscos, os principais pólos de atenção que nós precisamos ter, porque vai ter uma elevação média do nível do mar, então isso vai impactar em infraestruturas de portos, aeroportos, além de problemas com lençol freático em algumas regiões por conta do avanço do nível do mar, então, principalmente, a contribuição é em gerar o conhecimento. A gente tem essa ciência disponível hoje no meio acadêmico, fazendo análise. E depois a gente precisa olhar atentamente para obras obras de infraestrutura, de habitação, e existe um fator muito importante em tudo isso também que é a área da saúde, né? Porque nós não estamos falando apenas da água que invade e destroi uma ponte, nós estamos falando também de calor excessivo e de chuvas excessivas que podem prolongar, por exemplo, o ciclo de vida de mosquitos transmissores de doenças como a dengue.

Sobre a agricultura, o Brasil produz muita comida e tem uma dependência muito grande de regularidade climática. Voltando ao Rio Grande do Sul, em 2021 e 2022, o período de safra teve uma perda bilionária por seca, e, em 22 e 23, outra perda bilionária também por seca. Então, é um estado que começa 2023 com essa seca e com esse prejuízo e termina o mesmo ano, 2023, embaixo d’água. Então, a gente vai precisar se adaptar e se precaver para todas essas circunstâncias, e é extremamente importante a gente ter uma régua social muito clara de para onde vão os recursos e quem precisa se adaptar ou então daqui a pouco nós estamos pegando todos os recursos e colocando em monocultivo, de grandes empresas e latifundiários, deixando milhares de pequenos agricultores à revelia do processo e da assistência. O Japão tem exemplos de cidades-esponja. Nós temos outros exemplos pelo mundo de construções em cidades que já sofrem muito com tufões, furacões, com cheias intensas. Então, essa arquitetura do clima extremo e esse tipo de medida, a gente já tem alguns exemplos ao redor do mundo. Mas não vamos encontrar todas as respostas, né? Vamos ter que desenvolver as nossas próprias.

E é preciso citar também a interligação dessa pauta com a questão política, né? Porque, enquanto está acontecendo tudo isso lá no Rio Grande do Sul, no Congresso estamos vendo avanços de projetos que visam o desmatamento. Você acha que os governantes enxergam essa pauta como uma questão que não está mais em um futuro distante, mas, sim, no presente?

Eu vou começar citando dois momentos meus com o presidente Lula. No primeiro, antes da eleição e um segundo quando ele já estava eleito, mas ainda não tinha tomado posse. Antes da eleição, em 2022, ele promoveu em São Paulo uma conversa. Eu falava para ele exatamente dessa relação de clima e desigualdades sociais, e o que poderia ser feito se a gente resolvesse todo o problema do clima agora, de hoje para amanhã, e que, se isso ocorresse, ele não tiraria uma única pessoa da fila da fome, nenhum sem teto ganharia casa. Ou seja, resolver o problema do clima não vai resolver os problemas sociais, mas, não resolvê-los pode agravar muito, justamente, esses problemas sociais. Falei para ele ‘o senhor vai dar uma casa pelo Minha Casa, Minha Vida, a chuva vem e tira duas’, então o clima é uma máquina de produzir desigualdades sociais. No segundo momento, logo depois de eleito, na Conferência do Clima, ele faz um discurso e cita um número da Organização Mundial da Saúde em que diz que a previsão é que haja 250 mil mortes por conta de mudanças climáticas ao redor do mundo a partir de 2030, se eu não me engano. E, em uma plenária, tive oportunidade de falar com ele novamente e disse que ele tinha citado esse número, e que, sim, o número é impactante. Mas, a pergunta real é: quem é que vai morrer? Porque as mudanças climáticas não vão ter o mesmo peso para todos, em todos os lugares. São as populações pretas, as mulheres, as populações em situação de vulnerabilidade, populações marginalizadas, são essas as que vão pagar o preço mais caro por uma situação que eles pouco ajudaram a criar, então, se você quer falar de desigualdade, ela tá toda aí nessa agenda do clima. Essa é a relação mais clara que eu posso fazer. Essa agenda agrava as desigualdades sociais, ela impacta as populações que mandatos populares como o do atual governo se debruçam sobre para tentar resolver, né? Ela dificulta, ela neutraliza, às vezes, políticas públicas de diminuição das desigualdades.

E o que o Congresso faz em relação a tudo isso? O Congresso faz tudo o que o Bolsonaro faria. Hoje, na verdade, a política ambiental que a gente tinha no governo Bolsonaro, que saiu do Executivo, atravessou a rua e se instalou dentro do Congresso Nacional. É isso que nós temos dentro do Congresso nessa agenda e em diversas agendas de responsabilidade social. É um conjunto de parlamentares que constituem os piores inimigos do Meio Ambiente no Brasil. Eles trabalham dia e noite para destruir legislação ambiental em benefício próprio, em benefício dos seus próprios interesses, então, nós temos uma máquina de destruição instalada ali dentro e com baixíssima capacidade de sensibilização, né? Porque eles realmente não se sensibilizam, são os mesmos que estavam atacando a vida durante a pandemia. Os mesmos que atacam a vida durante as mudanças ambientais. Catalogamos 25 projetos que estão hoje em nível acelerado de tramitação para serem aprovados, todos eles destruindo a agenda ambiental, isso são só os que estão em nível acelerado de tramitação, né, porque se juntar todos, aí nós vamos para casa de centenas. Esses projetos batem ou influenciam diretamente nessas situações de maior ou menor resiliência dessas localidades que vão receber eventos extremos. Essas legislações autorizam a derrubada das áreas de proteção permanente, de preservação, autorizam a retirada de vegetação que protegem os rios. Eles plantam hoje o desastre de amanhã.

Existe o clichê de que em todo filme de ficção científica tem sempre um cientista que não é ouvido. Recentemente, uma matéria da BBC resgatou o relatório “Brasil 2040”, produzido no período da Dilma Rousseff, que apontou alertas importantes. Quais pontos você considera relevantes de serem destacados?

Olha, nós temos esses relatórios, esse é um, que chama Brasil 2040, esse relatório foi muito importante porque ele mostrou que a maneira de pensar o planejamento energético no Brasil tinha que mudar bastante, as hidrelétricas, principalmente. Elas tiveram o seu tempo, agora investir em hidrelétrica no Brasil é algo que não faz muito sentido. Belo Monte, por exemplo, gastou o dobro do que se imaginava, além dos impactos como uma crise social terrível. Então, o relatório mostra bastante isso, ele foi muito criticado na época, pouco circulado, boicotado mesmo.

Está na hora da gente ler e entender o que está escrito lá. Quem não quiser ler, então abra a janela de casa para poder ver o que está acontecendo. Nós tivemos só aqui no Brasil, nos últimos três, quatro anos, Petrópolis, Recife, sul da Bahia, norte de Minas Gerais, São Sebastião, uma seca severa na Amazônia, Rio Grande do Sul por diversas vezes com eventos extremos, Santa Catarina. Isso tudo em um curto espaço de tempo. Se não quer olhar para o Brasil, olhe para o sul da Europa, Canadá, Estados Unidos, Sudeste Asiático quase que todo, Vietnã, Sul da China, Índia, chifre da África, Japão.

No Vietnã, por exemplo, grande parte da cultura de arroz é feita de madrugada porque não dá mais para trabalhar durante o dia, os agricultores não conseguem mais nem semear e nem fazer a colheita durante o dia. Então, assim, isso se avoluma ao redor do mundo, tá na hora da gente levar a sério isso, né? Levar a sério não é você apenas se adaptar, levar a sério significa que se eu abrir uma termelétrica hoje, eu tô matando gente amanhã. Significa também que os países mais ricos precisam ser violentamente cobrados por cada pessoa que morre de crise climática no planeta porque eles têm uma responsabilidade maior do que qualquer outro, eles enriqueceram, ou poluindo o planeta, quando não escravizando ou cometendo barbaridades ao redor do mundo, esses daí são os que mais têm condição. E o esforço precisa ser feito porque nós aquecemos o planeta em 1,2 grau, e esse 1,2 grau já está nos trazendo o que nós estamos vendo. Se a gente resolver todo o problema, se a gente fechar todas as torneiras da poluição agora, o planeta aquece um grau, 1,5, 1,6 grau, mesmo que a gente faça tudo correto, então, nós já temos um problema e temos um aumento contratado desse problema. Se você pegar todas as promessas de clima que já foram feitas pelos países, que estão hoje em cima da mesa, elas nos levam a mais de 2,5 graus de aumento de temperatura, as promessas não são as ações, são só as promessas, né, então, quer dizer se todas as promessas derem certo, dá tudo errado, então eu não consigo nem prometer direito. Então, nós precisamos melhorar o entendimento, melhorar a promessa, e principalmente com a promessa bem feita, é razoável colocar tudo isso em prática. O caminho é longo, mas a alternativa é pior, que é não fazer nada.

No caso do Brasil, nós temos preocupação de sobra, a começar pelo Semiárido. A gente já tem estudos e previsões que apontam que o Semiárido Nacional corre o risco de passar a ter eventos de seca extrema a cada um ou dois anos, por década, e começar a ter esses eventos numa escala aterrorizadora acontecendo ano sim, ano não, ou em um período de cinco anos consecutivos. Isso significa que você perde a capacidade de produzir alimentos, reter populações, e, assim, são criados novos fluxos migratórios, pressionando serviços públicos, causando um colapso em efeito dominó; hoje chamamos essas populações de refugiados climáticos. Outro ponto de atenção é a Amazônia, que está entrando em ponto de colapso, algumas regiões da floresta perderam boa parte da capacidade de regeneração. Então isso é um início de um colapso da floresta, que é uma reguladora de clima gigantesca para o Brasil e para a América do Sul.

Não será uma surpresa se, quando a água baixar, a urgência do assunto também arrefecer. Durante o primeiro momento, foi criada uma atmosfera de que essa não é a melhor hora para encontrar os culpados. Mas, depois que passa a comoção, o assunto fica bastante diluído. Como você encara isso?

Eu acho que eles precisam ser apontados sim. A gente tem que salvar vidas, mas não se pode esquecer também de quem causou as mortes. O esforço é para salvar vidas, não tenhamos dúvidas. Mas, a gente não pode esquecer de quem foi negligente com a situação, de quem foi conivente, quem alimenta e alimentará, né? O Congresso, quando baixarem as águas do Guaíba, está prontinho para retomar a agenda de votação. Então essas pessoas precisam ser apontadas, eu acho que no caso do Governo do Estado lá tem muita crítica para ser feita com certeza, né? Três, quatro anos atrás, o governo do Rio Grande do Sul estava desmontando toda a legislação ambiental. Então, essa essa tragédia toda ela é irreparável para quem perdeu tudo, para quem perdeu familiares, mas, que isso seja uma possibilidade de um pivô de uma transformação, né, de uma mudança necessária, e que seja exemplo para parlamentares, para outros governos.

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