Há 60 anos, no dia primeiro de abril de 1964, começava no Brasil um dos períodos mais tenebrosos de sua História, a Ditadura Militar impetrada após o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart, Jango, e o exilou. O governo militar teve início com eleições indiretas, colocando o general Humberto Castelo Branco como presidente do Brasil

Com a posse de Castelo Branco no dia 15 de abril daquele ano, a ruptura democrática ganhava vestes de patriotismo, uma luta contra o movimento comunista, com apoio de grande parte do empresariado, da imprensa e até mesmo de igrejas. O país, então, mergulhou em duas décadas de repressão violenta, perseguições, censura, torturas, assassinatos e sucessivas escaladas autoritárias.

Apesar do auge da repressão ser comumente associado ao período posterior ao final de 1968, quando foi implementado o Ato Institucional nº 5, o AI-5, pelo ditador Costa e Silva, a política linha dura começou cedo, era o projeto.  O caráter autoritário se manifestava desde o golpe, e teve início imediato no pós-golpe, especialmente a partir do AI-2. 

Em outubro de 1965, o AI-2 implementou eleições indiretas para a presidência, suprimiu partidos políticos, revogou os direitos políticos de opositores do governo e adotou outras medidas. O ato pegou os desavisados de “surpresa”, apesar da grande resistência alertar, e lutar, desde o início, para avisar do perigo que se avizinhava. O AI-2 foi o primeiro a acabar com a ilusão da classe média brasileira, de parte do empresariado que apoiou o golpe e acreditou que seria um governo de transição. 

Os militares chegaram para ficar – e ficaram. O objetivo era claro: interromper os avanços sociais, nominar o inimigo com o fantasma do comunismo, como se um dia de fato o Brasil tivesse passado perto de uma revolução aos moldes de Cuba, o grande bode expiatório até hoje. A violência começou pela perseguição política, com a perseguição a opositores.

O AI-5 de Costa e Silva coroa e verbaliza, institucionalizando, a violência praticada pelo Estado militar. Editado em dezembro de 1968, o ato deu ao ditador que ocupasse o cargo de presidente da República o poder de cassar mandatos, suspender direitos políticos de qualquer pessoa, intervir em estados e municípios, suspender Habeas Corpus para crimes políticos, decretar recesso do Congresso e assumir suas funções legislativas, censurar jornais, livros, músicas e outras obras artísticas e intelectuais. Foi o auge da repressão e violência do regime militar.

A tortura e o assassinato sistemático de militantes políticos por órgãos de repressão política, como o DOI-Codi (Departamento de Operações Internas do Exército), o Cisa (Aeronáutica) e o Cenimar (Marinha), além dos DEOPS (Departamentos de Ordem Política e Social dos estados), passaram a ser uma política de Estado.  

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, instalada pela então presidenta Dilma Rousseff, entregou ao Planalto o relatório final que apontava e registrava o tamanho dos danos ao país, especialmente aos Direitos Humanos. O relatório confirmou 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país. Entre essas pessoas, 210 são desaparecidas.

No documento, a CNV traz a comprovação da ocorrência de graves violações de direitos humanos. “Essa comprovação decorreu da apuração dos fatos que se encontram detalhadamente descritos no relatório, nos quais está perfeitamente configurada a prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e de tortura, assim como o cometimento de execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres por agentes do Estado brasileiro” diz o texto.

Mais de 300 pessoas, entre militares, agentes do Estado e até mesmo ex-presidentes da República, foram responsabilizadas por essas ações ocorridas no período que compreendeu a investigação. O documento diz ainda que as violações registradas e comprovadas pela CNV foram resultantes “de ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro” e que a repressão ocorrida durante a ditadura foi usada como política de Estado “concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares”.

Outro ponto de destaque das conclusões do relatório é que muitas das violações comprovadas durante o período de investigação ainda ocorrem atualmente, apesar da existência de um contexto político diferente. Segundo o texto, “a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e mesmo de ocultação de cadáveres não é estranha à realidade brasileira contemporânea” e crescem os números de denúncias de casos de tortura.

Seis décadas depois, a memória segue viva, tanto em atos de resistência, quanto na prática política diária. Recentemente, o Brasil viveu mergulhado em um governo militar, advindo de um projeto que derrubou a presidenta Dilma Rousseff em 2013, colocou em seu lugar o então vice, o golpista Michel Temer, e elegeu Bolsonaro, levando os militares novamente ao Planalto. 

Primeiro presidente a perder uma disputa à reeleição, revela-se, agora, que o Brasil esteve perto de, novamente, de um golpe envolvendo militares, empresários e políticos. Depois dos atentados às sedes dos Três Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro, movimento que pedia a deposição do presidente eleito Lula, e os flagrantes episódios de aparelhamento, vigilância clandestina e trama golpistas revelados recentemente pela Polícia Federal nos dão o norte de que o esquecimento e o apagamento só podem condenar o país a repetir a História. 

É preciso estar atento 

Desde o final da ditadura em 1985, não foi realizado um processo definitivo de reconciliação com o passado. Isso implica que não foram adotadas medidas consistentes e eficazes relacionadas à Justiça de Transição para reparar as violações perpetradas pelos militares. Além disso, indica a ausência de uma reflexão ampla sobre o impacto danoso que o regime teve na sociedade.

Na segunda metade dos anos 1970, sob pressão da crise econômica, protestos estudantis em crescimento e greves de trabalhadores na região do ABC paulista, a ditadura revogou o AI-5 e concedeu uma anistia política limitada. Isso resultou na impunidade dos agentes públicos responsáveis por atos de tortura e assassinato. Apesar disso, os membros do “porão” sentiram-se insatisfeitos e passaram a realizar atos terroristas, culminando na frustrada tentativa de explosão do Riocentro em 1981.

Embora a ditadura tenha chegado ao seu fim em 1985, os setores conservadores que a apoiaram, embora enfraquecidos inicialmente, continuaram presentes no cenário político do país. Eles se opuseram aos primeiros governos dos presidentes Lula e Dilma Rousseff, que retomaram a agenda reformista iniciada por Jango. 

Esses setores retornaram ao poder em 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro, que tentou minar a democracia em 8 de janeiro de 2023. Graças à mobilização da sociedade civil e dos movimentos populares, essa tentativa fracassou. No entanto, esse episódio evidenciou que as forças reacionárias mantêm uma postura golpista. 

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