Além de primeiro governo operário do mundo, o movimento teve um cronista célebre: o contemporâneo Karl Marx

Há 153 anos, em 18 de março de 1871, as camadas populares instauravam a Comuna de Paris, emocionante episódio de um movimento revolucionário com ingredientes em número e diversidade suficientes para torná-lo um dos mais espetaculares de todos os tempos.

Por pouco mais de dois meses, a Comuna de Paris representou o primeiro governo proletário do mundo. Os revolucionários tinham contra si, às portas da cidade, o poderoso exército da Prússia, que já havia derrotado e derrubado Napoleão III. Do lado de dentro, um gabinete de burocratas burgueses e de saudosistas do império representava seu inimigo doméstico, tramando contra eles a partir de Versalhes. Mesmo assim, instalaram um regime de autonomia e controle totais pelas mãos da classe trabalhadora.

Heroica como poucas, a fugaz república sob domínio do proletariado realizou-se em quase plena sintonia com os sonhos revolucionários, e com fôlego utópico que apenas a morte seria capaz de sufocar. Não bastasse isso, a revolução ainda teve um contemporâneo e cronista célebre: Karl Marx. 

Comuna de Paris: a utopia em ação

A partir de Londres, onde vivia e militava, Marx saudou a Comuna de Paris como uma proeza quase sobrenatural: “assalto aos céus”, escreveu ele em seu livro “A Guerra Civil em França” (disponível pela Boitempo Editorial). O texto foi produzido originalmente como a Terceira Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores Sobre a Guerra Franco-Prussiana.

O pensador compartilhava o mesmo instante em que seus sonhos, embalados por prognósticos que desenhou, aconteciam no plano do real. Pode-se imaginar sua emoção e também suas angústias posteriores, ao ver aquela experiência interrompida brutalmente.

Em setembro do ano anterior, Napoleão III, sobrinho de Bonaparte, e suas tropas foram derrotados em Sedan pelas forças prussianas. O imperador francês foi exilado. A região da Alsácia-Lorena, que continuaria alvo de disputas entre as duas nações até, pelo menos, a 2ª Grande Guerra Mundial, seria subtraída à França.

Em Paris, preparava-se a resistência. Inicialmente, diversos grupos se uniram para a tarefa. Com a queda do imperador, a França proclamou sua III República. No entanto, a formação da resistência e da nova forma de governo, cujos centros de poder se dividiam entre a capital e Versalhes, embutia algumas lideranças de classe média e aristocráticas que, no fundo, pretendiam apenas usar as camadas populares como linhas de frente contra o fogo inimigo.

Jules Favre, um dos representantes da classe dirigente francesa, revelaria em uma carta que, em sua opinião, os verdadeiros inimigos da França, e os mais perigosos, não eram os prussianos, e sim os proletários que erguiam barricadas em Paris. Marx não precisou conhecer esta carta para alertar os comunais do risco que vinha de Versalhes e criticar o modelo híbrido de comando. “A divisão de trabalho entre os membros desse governo parece desastrosa”, escreveu o alemão.

Disputas internas se seguiam, até que as camadas populares organizadas tomaram para si a Guarda Nacional, ou seja, a força armada à qual caberia a defesa da cidade, propriamente dita. Foi um passo decisivo para a instauração da Comuna de Paris, em 18 de março de 1871. Por 72 dias, até que fosse derrubada em conluio entre a burguesia francesa e as forças estrangeiras, o governo operário instituiu diversas medidas e leis que, a despeito da inspiração em ideais da já antiga Revolução Francesa, foram além.

Com a gestão sob comando de milhares de conselhos locais populares, o governo proletário estabeleceu avanços legais e práticos, alguns até hoje situados no horizonte utópico. Instauração do salário mínimo, criação de uma previdência social pública, igualdade entre homens e mulheres, a expansão do ensino público e gratuito, a revogabilidade dos mandatos públicos, salários de mandatários compatíveis com a média dos trabalhadores, assim como a manutenção de uma força militar popular, estavam entre as regras comunais. A Comuna estabeleceu também a desapropriação de fábricas e propriedades improdutivas e a abolição da pena de morte.

A historiografia tem valorizado a participação das mulheres na Comuna de Paris. Antes de sua instauração, as mulheres protagonizaram os debates e manifestações iniciados em 1870. No ano seguinte, fundaram a União das Mulheres pela Defesa de Paris e pelo Cuidados aos Feridos. 

Naquele março de 1871, as mulheres tiveram ação preponderante ao impedir que os burocratas de Versalhes tomassem o arsenal que estava sob guarda dos comunais, episódio decisivo para a explicitação das divergências e instauração da Comuna. Nos momentos finais do combate com as tropas estrangeiras e legalistas, um batalhão feminino esteve na linha de frente na defesa da cidade.

Os principais desafios que a Comuna precisaria e desejava superar, se vencida a batalha de Paris, eram as profundas desigualdades sociais e a exploração dos trabalhadores e, especialmente, das trabalhadoras, cujos ganhos eram reduzidos em relação aos homens e as jornadas de trabalho, extensas. 

Os comunais acreditaram que a urgência da guerra e o papel patriótico que desempenhavam seria oportunidade de enfrentar, com organização e mobilização, a miséria e injustiças em seu país, que a guerra franco-prussiana só aprofundara.

Embora feita de sangue, a experiência da Comuna não tinha como princípio e motivação a guerra em si. Foi uma resposta a um quadro histórico. Marx, por sinal, condenou em seus escritos o aspecto imperialista do conflito franco-prussiano e a ideia de que as relações internacionais devessem se resolver com balas de canhão.

Em maio, o presidente francês, Adolphe Thiers, voltou as tropas oficiais contra os cidadãos comunais, em conjunto com as forças prussianas. Calcula-se que mais de 20 mil pessoas foram mortas e outras 15 mil presas. A Comuna de Paris, no entanto, acendeu em diversos corações do mundo a crença na possibilidade real de revolução. Anos depois, em outubro de 1917, a bravura popular russa faria o mesmo.