Sob Jair Bolsonaro, o número de registros de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC) disparou. Entre 2019 e 2022, o Exército brasileiro liberou mais de 5 mil licenças a pessoas com problemas na Justiça e até para pessoas mortas conseguiram liberação para o porte de armas. Governo Lula tem trabalhado para reverter quadro com Medidas para tornar mais rigorosa a liberação do porte de armas e frear a farra dos CACs

Henrique Nunes

O Edifício Fênix está em chamas. A fumaça e o fogo saem de um apartamento no primeiro andar e podem ser vistos de longe. Nos arredores da Rua Hércules Florence, no bairro do Botafogo, em Campinas (SP), ninguém ainda sabe o que causou ou quem causou o acidente na noite de 24 de fevereiro. 

Horas depois, entra na história a figura do coronel reformado Virgílio Parra Dias, de 68 anos, dono do apartamento. Ao mesmo tempo em que fala com policiais militares, bombeiros ainda tentam controlar por completo o incêndio após uma série de explosões ocorridas no local. Mais de 40 pessoas receberam atendimento médico e o prédio foi completamente evacuado.

“O que o senhor guardava no imóvel?”, questiona um policial. Nem os membros da corporação conseguem acreditar no que veem e ouvem. Mesmo com um arsenal de guerra dentro de casa, Dias insiste na versão de que era apenas um cidadão de bem aposentado, “mero colecionador de armas, com o registro em dia e tudo”.

A sua versão era parcialmente verdadeira. O coronel tinha, de fato, certificado de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC) – informação confirmada pelo Comando Militar do Sudeste do Exército (CMSE) -, mas o que foi encontrado no imóvel pegou todo mundo de surpresa. Havia muito mais do que as seis armas permitidas por lei: em meio aos escombros, a PM encontrou 111 equipamentos, entre pistolas, fuzis, espingardas, pólvora e até granadas – uma delas teria explodido dentro de um cofre, segundo laudo da perícia, e iniciado o fogo.

Ex-membro dos Agulhas Negras e agora instrutor de tiro, Dias sabia que devia explicações à Justiça e desapareceu sem prestar depoimento nem entregar qualquer documentação que provasse a legalidade daquele armamento todo.  Àquela altura, a notícia já havia se desdobrado para outro tema: como, afinal, funciona a liberação dos registros de CACs? 

Parte da resposta veio por meio de uma nova bomba, lançada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Em relatório divulgado no dia 4 de março, o órgão revelou que, entre 2019 e 2022, o Exército emitiu licenças de caçadores, atiradores e colecionadores para mais de 5 mil pessoas com problemas na Justiça. E mais: deste total, 1,5 mil pessoas conseguiram a licença depois de serem condenadas. 

Se tais dados já serviriam para gerar enorme indignação, imagine só se até mesmo quem está morto conseguisse um CAC para chamar de seu.  Durante o período, não à toa demarcado pelos quatro anos da gestão de Jair Bolsonaro, 94 pessoas com atestado de morte confirmados tiveram aprovação para terem armas.

Àquela altura, o caso do coronel campineiro, apoiador de Jair Bolsonaro e entusiasta da tentativa de golpe em 8 de janeiro, já havia se tornado apenas uma faísca irrelevante diante dos desdobramentos ainda mais nebulosos que se sucederam ao incêndio no Edifício Fênix.

O maior culpado tem nome: Jair Messias Bolsonaro

Para a advogada e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Violência e Direitos Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora (Nevidh-UFJF), Letícia Fonseca Paiva Delgado, hoje também à frente da Secretaria de Segurança Pública da cidade mineira, o relatório do TCU comprova o fato de que a gestão de Bolsonaro levou a cabo a proposta de armar a população. “O que houve na gestão anterior não foi só um descontrole na política de armas no Brasil. Foi uma estruturação de uma política armamentista irresponsável. É importante a gente pensar que dar armas para as pessoas sempre teve impactos avassaladores na segurança pública. É banalizar a vida e fortalecer a possibilidade de crimes violentos na sociedade”, explica. 

Delgado também reitera o fato de que mais de 70% dos crimes violentos ocorridos no Brasil (leia quadro) são cometidos com armas de fogo. “Uma política eficaz de segurança pública passa pelo controle rigoroso de armas nas mãos da sociedade civil”.

Mudança de discurso 

Embora ainda haja muito a ser feito para reduzir a violência no Brasil e a entrada de armas de fogo nas ruas – seja legal ou ilegalmente -, Letícia Delgado está otimista em relação às mudanças iniciadas ou propostas desde que Luiz Inácio Lula da Silva retornou à Presidência da República. 

Uma das mudanças celebradas pela pesquisadora foi o decreto sobre o controle responsável de armas, assinado por Lula em julho passado, e que contempla o Programa de Ação na Segurança (PAS), lançado pelo Governo Federal. 

As principais alterações dizem respeito à redução de armas e munições acessíveis para civis, inclusive os que se declaram caçadores, atiradores e colecionadores. A norma também coloca restrições às entidades de tiro desportivo, redução da validade dos registros de armas de fogo, entre outros. 

“A mudança iniciada pelo presidente Lula começa no discurso em relação à política de armas no Brasil. Eh a gente sabe o quanto é importante o discurso de um agente político para direcionar a intencionalidade do Estado. Então a partir do momento em que você passa a ter um presidente com um discurso responsável, democrático, isso passa a ser um ponto de inflexão para que a gente possa pensar em mudanças reais – como no novo decreto dos CACs”, comemora. 

Letícia, no entanto, reitera que ainda é preciso avançar em muitas frentes para aumentar a Segurança Pública do país, mas é “essa intencionalidade política, no sentido de criar um conjunto de regras, já é um avanço importante”.

Mini box 

Arma não adianta, agrava

Sete a cada dez homicídios ocorridos no Brasil foram causados por arma de fogo. A estatística aparece no Atlas da Violência, divulgado em 2023, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Os números levam em conta os casos ocorridos em 2021, e tiveram como base o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinam) do Ministério da Saúde.

Naquele ano, o país registrou um total de 33.039 homicídios por armas de fogo – taxa de 15,4 mortes por armas de fogo para cada 100 mil habitantes. 69,1% do total de homicídios no país foram praticados com o uso de armas de fogo. É consenso entre os pesquisadores do Ipea que o aumento de armas de fogo em posse da população só agrava a violência. 

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