Entre datas ignoradas pela historiografia conservadora, há algumas ainda mais escondidas, escapando até de setores progressistas. O trabalho de escavação que pretende trazê-las à tona e formar novas perspectivas vai, com o tempo, aproximando-se de episódios tidos como menores, porém de grande importância nos processos de disputa que movem as transformações.

Um desses casos vem do dia 6 de janeiro de 1848, marcado pela Conspiração Mina-Nagô na cidade de Pelotas (RS). Descoberto a tempo pelos escravistas, foi totalmente frustrado o plano de matança de brancos e posterior fuga para o Uruguai, onde a escravidão havia sido legalmente abolida dois anos antes. Em tese, uma derrota.

Mas, “para compreender a história é preciso conhecer os locais onde é vivenciada e as articulações mais amplas tecidas a partir daí”, como nos avisa o Calendário Insurrecional 2024, do grupo História da Disputa: Disputa da História, onde se lê, entre tantas lutas ali destacadas, informações sobre a Conspiração Mina-Nagô.

“Datas que os racistas preferem esquecer”, como destaca a publicação, em formato de calendário de parede. Somadas, e certamente articuladas por fios indocumentados da organização popular, essas supostas derrotas forçaram a queda formal da escravidão, 40 anos depois da Conspiração Mina-Nagô em Pelotas.

Principais personagens desse acontecimento histórico, os homens e mulheres mina-nagô haviam sido trazidos prisioneiros da porção oeste africana conhecida como Costa da Mina, no golfo da Guiné. Hoje, o território compreende da Costa do Marfim à Nigéria.

Parte desses escravizados foram forçados à lida na produção de carne seca, as charqueadas, no Rio Grande. Ali, conflitos na fronteira entre Brasil, Uruguai e Argentina foram moldando um quadro guerreiro. Na Farroupilha (1835-45), por exemplo, foi feita a promessa de liberdade aos negros que se engajassem nos combates, revelada como mentira ao final dos combates – por sinal, conhecidos como Lanceiros Negros, esses traídos foram inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria no último dia 9 de janeiro de 2024.

A Conspiração Mina-Nagô se desenhava entre os escravizados, muito provavelmente na língua iorubá. A ideia central era a fuga de um grande grupo, o que exigiria a morte de senhores brancos e pessoas a serviço deles. Com previsão para ocorrer em 30 de janeiro, a ação foi adiada para a semana seguinte, justamente o tempo em que se deu a descoberta do plano. 

A revolta foi sufocada ali mesmo em Pelotas, sem abertura de inquéritos e julgamentos, algo interpretado como uma tentativa de não deixar sequer rastros da insubordinação. “Os autos [dos inquéritos] costumam ser úteis ao estudo de sublevações, pois, apesar de produzidos pelos opressores, podem dar voz aos oprimidos e delinear melhor a arquitetura da revolta”, comenta o Calendário Insurrecional.

No entanto, dois dias depois, a imprensa de Porto Alegre iria narrar os acontecimentos, com evidente destaque à eficácia das forças de repressão, deixando uma pista para os futuros historiadores.

Fundadora do grupo História da Disputa: Disputa da História, Caróu Oliveira afirma que o projeto multidisciplinar quer levar o debate para um público não-historiador. Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), viu essa vontade surgir durante manifestações de que participou, ainda estudante de graduação, na primeira metade dos anos 2010, por, nas palavras dela, “liberdade e transporte” – este também um episódio cuja interpretação permanece em disputa.

“A partir dessa experiência de ocupar o território que era feito para os carros, de construir política no chão da rua, de discutir horizontalmente rumos e percepções, também nos demos conta que o que estudávamos na faculdade parecia distante do que vivíamos na rua”, diz Caróu.

“Assim, nasceu a vontade de ocupar a rua com o debate historiográfico, tão distante das ‘pessoas comuns’ e, na mesma toada, construir juntos a compreensão de que a História é feita todo dia no cotidiano, que a memória é refém da História monopolizada pelas classes dominantes, mas nem por isso menos instrumento possível de resistência”, completa.

A História segue em disputa.

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