José Dirceu

Versão completa do artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo em 21 de janeiro de 2024

É impossível falar em desafios da esquerda e do Brasil sem levar em consideração que vivemos um momento geopolítico de hegemonia internacional da extrema direita e do pensamento conservador. Temos um mundo onde a perda relativa de poder dos EUA é resultado do esgotamento do neoliberalismo e da globalização, da ascensão da China e da Índia como potências mundiais, e do ressurgimento da Rússia de Vladimir Putin, tendo como potências regionais a Turquia e o Irã. 

As consequências da globalização financeira e da desregulamentação do capitalismo foram o desmonte dos Estados de Bem-Estar Social e o ressurgimento da extrema direita que hoje governa a Itália, a Holanda e a Suécia, é uma alternativa real na França, consolida-se na Polônia e na Hungria, pode retomar o governo dos EUA e, derrotada no Brasil, acaba de vencer as eleições na Argentina. Na própria Alemanha é uma ameaça real a hegemonia alterna do SPD e da direita social cristã.

As crises financeiras de 2008/9 e 2011/12, a pandemia da Covid-19 e a quebra das cadeias produtivas e das redes logísticas abriram uma janela de oportunidades para países como o Brasil, ao mesmo tempo em que a crise climática e ambiental agravou a necessidade de cada nação buscar sua segurança ambiental-energética, alimentar e tecnológica. Políticas industriais e subsídios passaram a fazer parte da política econômica dos EUA e da Europa, ao lado de medidas protecionistas e de uma aberta guerra comercial e tecnológica contra a China, que cada vez mais ameaça a hegemonia militar, econômica e cultural norte-americana.

No Brasil, os anos Temer e Bolsonaro foram de desmonte do Estado nacional e das políticas sociais e de distribuição de renda próprias da Constituição de 1988, dos governos do PT e do ciclo político desenvolvimentista, o que é per si uma contradição com os países desenvolvidos, onde a presença do Estado e de políticas industriais e sociais é cada vez maior – e mais ainda na Europa, que paga um alto preço pelo apoio massivo à Ucrânia por procuração dos EUA.

O PT – que venceu quatro eleições e só perdeu a quinta pela prisão ilegal de Lula – e seus aliados à esquerda voltaram ao governo com a vitória sobre Jair Bolsonaro, mas em condições de minoria na Câmara e no Senado, apesar de apoiados numa ampla frente democrática de partidos, entidades e personalidades. Esse retorno ao poder se dá com um desafio político histórico: como governar e retomar o fio da história do desenvolvimento brasileiro sem unidade nacional ou sem uma aliança entre a esquerda e setores empresariais (para além da aliança democrática que derrotou Bolsonaro)?

Explico. A esquerda, sozinha, não tem maioria para fazer reformas estruturais no país, sejam políticas institucionais ou econômicas, de distribuição de renda, riqueza e patrimônio. Também não consegue, sozinha, construir um projeto nacional de desenvolvimento que resolva os dois pontos de estrangulamento do crescimento do país – os juros e a concentração de renda, realimentados pela estrutura tributária baseada no consumo e na produção.

As principais riquezas brasileiras não pagam impostos ou pagam pouco. O agronegócio, a mineração e mesmo o petróleo e o gás – que poderiam constituir uma fonte para um fundo soberano nacional a fim de financiar o desenvolvimento do país – foram nos últimos anos privatizados e apropriados pelo rentismo via distribuição de dividendos e venda de ativos.

O poder das bancadas conservadoras e de direita, dos bancos e dos rentistas bloqueia os instrumentos que poderiam superar os impasses nacionais: baixa poupança, investimento e produtividade. Revelada na pandemia e agora na guerra da Ucrânia, nossa dependência em chips, fertilizantes, agrotóxicos, fármacos e produtos químicos é quase total. Nossa indústria de fármacos e química depende das importações, assim como nossa agricultura e mesmo nossa indústria moderna. Um país com a dimensão e a riqueza do Brasil – quinto em território, sétimo em população, uma das 10 maiores economias do mundo, berço da Amazonia e com capacidade tecnológica – pode e deve superar essa dependência. Isso é de interesse nacional e não apenas de nossos governos ou da esquerda.

A condição para o Brasil se desenvolver está em nossa capacidade de construir um bloco social e um arco de alianças partidárias capaz de impulsionar um programa de reformas que viabilize um desenvolvimento com distribuição de renda. Nossa capacidade de mobilizar a sociedade para essas reformas estruturais encontra limites nos nossos partidos e na hegemonia da direita conservadora, que alcança inclusive setores populares. Razão pela qual o PT e as esquerdas precisam mudar a correlação de forças no Congresso e nos territórios da disputa eleitoral, política e cultural. Sem isso será impossível uma reforma do Estado e avanços na política institucional.

Nossa época está marcada por profundas mudanças tecnológicas e culturais. A direita e a extrema direita se apropriaram desses avanços tecnológicos e, com base numa agenda cultural conservadora, nos impuseram derrotas políticas e eleitorais ao se aliarem com os interesses econômicos das elites financeiras e agrárias, cuja expressão foi e é o bolsonarismo e sua aliança com os neopentecostais e setores do agronegócio. Ao mesmo tempo, as agendas ambiental, de igualdade de gênero e raça, LGBTAQIAPN+, democrática e mesmo social, foram apropriadas pelas grandes corporações econômicas multinacionais e pelas classes médias das grandes metrópoles do mundo, numa evidente contradição com a agenda econômica privatista, rentista e financeira. Mas o ônus da defesa dessas agendas ficou com as esquerdas no embate com o conservadorismo religioso.

Para enfrentar os desafios da próxima década, o PT e as esquerdas necessitam de renovação a fim de lidarem com essa nova conjuntura política e cultural, condição para serem instrumentos da mobilização popular e eleitoral que garanta, para além das alianças, uma base parlamentar e apoio social para o avanço das reformas necessárias.

O Brasil precisa fazer 100 anos em 10. Começando pela educação e pela inovação, por uma reforma tributária progressiva que inverta nossa concentradora estrutura de impostos, uma redução drástica dos juros, uma reforma político-institucional e uma redefinição do papel do Estado. Precisamos recuperar nossa soberania na política de desenvolvimento e não só econômica ou macroeconômica. É um equívoco histórico o pressuposto de que o Brasil pode resolver seus problemas ou via austeridade ou apoiado na agregação de valor da agricultura e da mineração, associada com a negação do papel do Estado e das políticas industriais. As consequências são conhecidas: crescimento econômico que beneficia as elites e pobreza generalizada com perda da soberania nacional. Os bancos públicos, a Petrobras e as empresas monopolistas devem estar a serviço do desenvolvimento nacional. 

Não há opção para o Brasil a não ser assumir seu papel na América do Sul e no mundo, e criar as condições para uma revolução social que dê unidade nacional para que possamos retomar o caminho do desenvolvimento.

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