“Aleatoriamente” mostra o rap de Ogi com o melhor da música brasileira atual

“Aleatoriamente” mostra o rap de Ogi dialogando com o melhor da música brasileira atual. O terceiro álbum do rapper é um retrato sobre a São Paulo sob o fascismo e a pandemia

Se há um disco que contradiga frontalmente seu título, este é o caso de “Aleatoriamente”, de Rodrigo Ogi. Não há nada aleatório na produção das 12 faixas do álbum, não há uma palavra fora do lugar em suas letras, não há sequer uma nesga de acaso no time de super estrelas que participam do disco. Em seu quarto disco, Ogi experimenta muito, mantendo os pés fincados no rap da Zona Sul de São Paulo, fala com contundência da cidade desigual e violenta e passeia por parcerias com a precisão de um maestro.

Ogi é o nome de rapper de Rodrigo Hayashi, paulistano que, antes de enveredar completamente pela música fez parte do coletivo de grafite e pichação Contrafluxo. Seu primeiro disco solo, “Crônicas da Cidade Cinza”, lançado em 2011, já mostrava a potência das rimas e das letras. Quatro anos depois, a parceria com os artistas que estavam despontando no circuito paulistano como a dupla Kiko Dinucci & Juçara Marçal (então no grupo Meta Metá), já estava firmada e resultou em “RÁ!”, disco que chamou a atenção pelas sonoridades mais angulosas e pelas diversidade de influências do rapper.

Se o primeiro puxava para a crônica, o segundo parecia um conto mais elaborado e complexo, com personagens do caos urbano e narrativas mais detidas, mais poéticas. No EP Pé no Chão (2017), Ogi amadurece seu projeto e sua voz, ao mesmo tempo.

“Aleatoriamente” começou a ser composto em 2019 e só tomou a forma definitiva, agora, quatro anos depois, como já sério candidato a um dos melhores discos de música brasileira do ano. Ainda na metáfora das narrativas literárias, resulta numa espécie de romance sobre o Brasil nesse quadriênio do fascismo e da pandemia. Fragmentado, por certo, mas com uma profundidade emotiva e sensível que reflete esse longo tempo de gestação.

Produzido por Kiko Dinucci, “Aleatoriamente” chegou às plataformas de streaming na semana passada e tem nas colaborações um de seus destaques. Não pela novidade, dado que já estão presentes em “RÁ!”, mas pela ampliação de nomes e estilos. 

Além de Dinucci e Juçara Marçal, Tulipa Ruiz, Siba, Russo Passopusso, DJ Nato PK, Alana Ananias  e Don L aparecem como “feat.” (abreviação para a palavra em inglês “featuring”, sinalizando as faixas com artistas convidados). Além da colaboração artística em si, tais participações sinalizam o espírito coletivo que rege essa geração de artistas independentes dos anos 2010, bem como apontam a convergência de seus caminhos musicais.

Uma dessas jornadas musicais e temáticas é o tom geral de alarme. Do conjunto das 12 faixas, emerge uma paisagem sonora e poética urgente, dura, de cenas agudas de violência real (e simbólica), vista pela pela fragmentação (aí sim) aleatória da multiplicidade das telas e permeada por um senso do absurdo. 

Mais do que o elemento de denúncia, tão associado ao rap, neste disco Ogi traz mais perguntas do que afirmações, mais perplexidade do que certezas. A tática é deixar o texto falar por suas descrições, suas metáforas e seus personagens, inclusive um mesmo que tem nome, sobrenome e filiação ideológica e aparece em duas faixas.

Na jornada de Ogi em “Aleatoriamente”, perpassam os grandes temas universais como a proximidade da morte e os conflitos do amor, bem como as questões mais fincadas no chão como a rotina, o trabalho, o ônibus lotado, a polícia que ronda e ameaça etc. Para além do trabalho extremamente apurado das letras de Ogi, “Aleatoriamente” foi enriquecido com uma coleção de visualizers, os filminhos que acompanham cada uma das canções nas plataformas de streaming, impressionantes pelo cuidado e sintonia com com o clima sombrio e desencantado do disco. 

Por fim, “Aleatoriamente”, ainda que seja um disco de rap brasileiro de ponta a ponta, mostra, com nitidez, a profunda imbricação da música de Ogi com aquilo que de melhor está se fazendo nos outros estilos e vertentes da música brasileira. Obra aberta e de diálogo permanente, é capaz de convencer até mesmo aquele seu/ua amigo/a mais resistente a ouvir rap. Em outras palavras, um discaço. •

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