“Across the universe” foi composta em 1968 pelo beatle em meio à crise, no pior momento da carreira da banda. Mas era a prova da fragilidade do músico, que não se sentia seguro e ficou irritado quando a banda deixou a canção de lado. Lançada em ‘Let it Be’, a obra foi redescoberta por Bowie

Um clássico de Lennon
Reprodução – Figura de John Lennon

Olímpio Cruz Neto

Difícil imaginar que uma das canções mais emocionantes dos Beatles tenha sido tratada com desleixo pelo grupo. “Across the universe” é considerada uma das mais belas canções do genial compositor inglês John Lennon, que a compôs em 1968, assim que a banda começou a viver o inferno por conta da morte do empresário Brian Epstein. Ela passaria três anos relegada a uma das gavetas dos engenheiros da EMI, mofando em Abbey Road, onde foi gravada pela primeira vez ainda em fevereiro de 1968.

Reza a lenda que o engenheiro de som dos Beatles, Geoff Emerick, percebey que John Lennon estava “diferente” quando gravou a canção. O afiado e sarcástico Lennon tinha sumido, dando vazão a um poeta reflexivo que tentava trabalhar com as letras de maneira imagética. 

“Words are flowing out like endless rain into a paper cup/ They slither wildly as they slip away across the universe/ Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my opened mind/ Possessing and caressing me/ Jai Guru Deva, Om/ Nothing’s gonna change my world”. Em tradução livre: “As palavras estão fluindo como uma chuva sem fim num copo de papel/ Elas deslizam enquanto transcorrem através do universo/ Piscinas de mágoas, ondas de alegria estão atravessando pela minha mente aberta/ Me possuindo e me acariciando/  ‘Glória ao nosso Mestre e Senhor, Amém’/ Nada vai mudar meu mundo”.

Este lado doce de Lennon surpreendeu a muitos dos fãs do grupo. Muitos anos depois, Lennon confessaria que quando trouxe a canção para mostrar a Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, no estúdio da EMI, em 4 de fevereiro de 1968, ele estava “psicologicamente destruído”. O martírio começara antes, em agosto de 1967, quando Brian Epstein — tido como o ‘primeiro’ quinto beatle — havia morrido. Sob a direção de Paul, a banda assistira logo depois do verão ao seu primeiro fracasso comercial e artístico, o filme ‘Magical Mystery Tour’, severamente criticado quando foi exibido na BBC depois do feriado de Natal, em 26 de dezembro de 1967. Naquele mesmo período, Lennon tinha assumido o namoro com a artista plástica japonesa Yoko Ono, e Paul acabara a relação com a atriz Jane Asher.

Lennon havia escrito “Across the Universe” em sua mansão no subúrbio de Londres, em Weybridge, no Surrey, em algum momento durante o inverno. Deitado na cama, incapaz de dormir depois de uma discussão com a sua primeira esposa Cynthia, ele se lembrou dela gemendo para ele: “As palavras estão fluindo como chuva sem fim em um copo de papel”. Ele escreveu a letra inteira de uma só vez sentado no chão. Era a rabugice doméstica e transformada em válvula de escape para um portal lisérgico que seria um convite a uma consciência superior.

Lennon estava intrigado com os ensinamentos de um guru indiano. Ele e os Beatles haviam conhecido o Maharishi Mahesh Yogi no verão de 1967 e, em seguida, viajariam para Rishikesh, na Índia, para passar semanas no ashram do místico yogue. Ali, compuseram dezenas de canções que iriam ser incorporadas no ano seguinte ao clássico “The White Album”. “Across the universe” é desta leva. 

Quando entraram no estúdio vindos da ressaca de “Magical Mistery Tour”, tudo parecia uma grande confusão. No início de 1968, tudo parecia incerto e é possível ao ouvinte atento reparar na fragmentação estilística e na carga autoral de cada beatle que deixariam de trabalhar como uma banda para se transformarem em três compositores lapidando as próprias obras com a ajuda — nem sempre discreta ou amistosa — dos velhos parceiros de Liverpool. O próprio Lennon deixa entrever que aquela pequena pérola não parecia acabada. A estranha produção dos primeiros takes mostra uma obra incompleta, que ganharia muitas versões até sagrar-se como lapidar no último disco do quarteto .

Ao comentar a canção, recentemente, a crítico inglesa Kate Mossman, editora de artes da New Stateman, diz que “há uma paz meditativa na monotonia de Lennon” e que “a melodia tem uma simplicidade quase asceta — tente escrevê-la, e desafia o manuscrito, aparecendo como duas notas alternando para frente e para trás na página”. O refrão de mantra — “Jai guru deva, om” — é um tributo sânscrito ao guru pessoal do Maharishi, Guru Dev. De acordo com McCartney, muitos anos depois, o Maharishi não estava nada interessado no refrão da música “nada vai mudar meu mundo” porque em seu mundo, a meditação mudou tudo.

Lennon apresentou a música como um single em potencial, mas “Lady Madonna” de McCartney venceu, com sua parte de piano emprestada de “Bad Penny Blues” de Humphrey Lyttelton. McCartney assumira a liderança dos Beatles, para o desgosto de Lennon, que anos depois o acusaria de ser o verdadeiro responsável pelo fim do grupo. Mas o fato é que John Winston Lennon perdera a confiança na música, andava viciado em heroína e parecia perdido. 

Só isso para explicar que apesar dele mesmo acreditar que aquela pequena pérola era uma de suas melhores letras, ‘Across the universe’ permaneceria engavetada ao longo dos próximos dois anos. A canção não entrou em ‘Abbey Road’ e nem mesmo no ‘Álbum Branco’. Só ganharia espaço em ‘Let It Be’, quando o grupo estava esgotado e vinha pegando sobras de estúdio e velhas canções, como ‘After 909’ para dar fim ao álbum.

Houve muitos takes naquelas sessões de gravação de realizadas em fevereiro, incluindo uma pequena e delicada referência à comunidade de fãs brasileiros. A canção chegou a ser gravada por duas adolescentes, Lizzie Bravo e Gayleen Pease, retiradas da linha de “Apple scruffs” — as fãs obsessivas que realizaram uma vigília permanente do lado de fora dos estúdios da Abbey Road. Outra versão da obra seria doada ao comediante Spike Milligan para o álbum de caridade do World Wildlife Fund de 1969, ‘No One’s Gonna Change Our World’, dublado com canto de pássaros. Esta foi a primeira versão da música a ganhar o público.

A versão que a maioria dos ouvintes em todo o mundo conhece foi finalizada pelo produtor Phil Spector. Para ódio de John Lennon, que acusaria Paul de tê-la deliberadamente arruinado o processo de gravação da música. “Ninguém estava me apoiando ou me ajudando com isso, mas passávamos horas fazendo uma pequena limpeza em detalhes nas canções de Paul. Quando se tratava de uma canção minha, de alguma forma aquela atmosfera de liberdade e casualidade — ‘Vamos tentar alguns experimentos’, repetia Paul — viria. Foi sabotagem subconsciente”. Lennon não estava mentindo. A versão mais bonita da canção só ganharia existência em 2003, quando Paul McCartney supervisionou o lançamento de “Let It Be… Naked”, despojado das acréscimos de Phil Spector. A versão de “Across the universe” surge sem o coro e as cordas do lançamento original, e a voz de Lennon soa melhor, mais clara e envolvente. Pena que ele não estava vivo para ouvir essa melhor versão de sua obra.

Lennon apontava que a melhor versão de sua pequena pérola pop e telúrica nem de longe era a gravada pelos velhos amigos de Liverpool. Ele amava a cover de 1975 lançada por David Bowie, que consta do disco “Young Americans”, na qual o próprio Lennon tocava guitarra rítmica — além desta, ele ainda cantava em outra ao lado de Bowie, “Fame”. 

Curiosa a preferência do beatle, porque o vocal de Bowie é  afetado e histriônico em comparação com a versão original espaçada e anasalada de Lennon, mas o velho gênio disse que preferia esta nova versão. Ele gostava de dizer que, enquanto McCartney não o apoiou em nenhum momento naquele período em que se assistiria à implosão dos Beatles, David Bowie o adorava e o idolatrava. 

Os dois músicos ingleses se conheceram em 1974, numa uma festa organizada por Elizabeth Taylor em Los Angeles, onde começaram a esboçar canções e fragmentos de ideias de músicas pop um ao outro, trincados de tanta cocaína. É curioso imaginar isso, porque Bowie diria anos depois que tinha lampejos do que acontecera em 1974 e 1975, porque estava sempre drogado e em alta. O mesmo com Lennon, que passou o chamado “fim de semana perdido”, depois que se separou de Yoko e passou a viver para cima e para baixo da Costa Leste à Costa Oeste ao lado da secretária May Ping.

Trinta anos após a primeira gravação da clássica lennoniana, a versão de 1998 de Fiona Apple de “Across the Universe” combina uma entrega pesada com produção afiada que dificilmente mexeu com a fórmula. Ela surge no vídeo, usando fones de ouvido e alheia ao que acontece, enquanto uma gangue de bandidos quebra o apartamento com tacos de beisebol sem som. Outra linda versão foi feita por Rufus Wainwright, em versão suave e cujo clipe traz a linda Dakota Fanning, inocente, carregando um balão vermelho em uma das mãos e as pessoas estão flutuando no ar.  Podemos imaginar que as duas versões certamente teriam sido aprovadas por John. A mais comovente, contudo, é a que seria de Kurt Cobain, mas essa faixa que circula na internet não tem a voz do vocalista e sim alguém emulando o líder do Nirvana.  •

Um clássico de Lennon