Reginaldo Lopes: “No Brasil, ninguém sabe quanto paga de imposto. Isso vai mudar”
A maior reforma tributária realizada no período democrático é explicada pelo economista e deputado federal Reginaldo Lopes. Ele fala das principais alterações que serão realizadas com a reforma e quais serão seus impactos
Apontada há décadas como a mais importante reforma na agenda do Congresso Nacional, a mudança na legislação tributária é considerada fundamental para os novos tempos que o país precisa para crescer, distribuir renda e reduzir a perigosa desigualdade social. Para o governo Lula, a reforma tributária pode ser decisiva para o futuro do país e seu desenvolvimento social e econômico.
Nesta entrevista à Focus Brasil, o economista e deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG), esmiuça os principais pontos desta que pretende ser a maior reforma tributária realizada no período democrático. A mudança é considerada passo fundamental em direção à reconstrução econômica do Brasil, incluindo um processo de neoindustrialização que considere aspectos ambientais para desenvolvimento sustentável e verde.
Na esteira de várias medidas importantes na economia tocadas desde o início do governo Lula, o novo marco tributário deve ser aprovado até o final de 2023. Apesar de alguns mecanismos de simplificação na cobrança e pagamentos de impostos estarem previstos desde a Constituição de 1988, o embate em torno de mudanças maiores, mais sintonizadas com as tendências modernas na maneira de garantir contribuições da sociedade para financiar as políticas públicas do Estado, sempre travou devido aos interesses conflitantes dos agentes econômicos.
Agora, a partir de um redesenho do arcabouço tributário, amplamente discutido com os principais setores produtivos e sociais, a reforma, já aprovada pela Câmara, deve seguir para o Senado em outubro. “Essa é uma das mais importantes reformas da redemocratização”, aponta Reginaldo Lopes. “O sistema tributário que teremos daqui para a frente, depois de 2032, é um sistema tributário transparente”.
O deputado acompanhou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em todo o debate em torno da reforma e teve atuação decisiva para sua aprovação. Aqui, ele trata das principais alterações que serão promovidas na legislação brasileira e avalia seus impactos na economia brasileira.
Focus Brasil — Como o senhor está vendo as perspectivas de aprovação da reforma tributária? Está animado?
— Acho que essa é uma das mais importantes reformas desde a redemocratização do Brasil, porque vai dar eficiência à economia brasileira. Isso vai permitir à economia nacional voltar a competir no mercado exterior e disputar, internamente, com os importados. Será também um instrumento fundamental de reindustrialização do Brasil, pois passaremos a ter um sistema tributário conectado com o mundo, com as boas práticas internacionais sobre tributação de consumo e, mais ainda, a gente conseguiu, na reforma, a progressividade da tributação sobre o consumo. Todos os estudos apontam que a reforma tributária sobre consumo no Brasil vai reduzir os impostos para os mais pobres, para as pessoas de menor poder aquisitivo, em 50% e vai aumentar para os mais ricos em 20%. A cesta básica, pela primeira vez, terá o cálculo zerado, teremos uma cesta básica nacional. O cálculo do medicamento também. Alíquota zero também por causa do cashback, que é a devolução de parte dos impostos pago pelos mais pobres, e como instrumento de progressividade. É um pouco a síntese da reforma tributária.
— A imprensa deu bastante destaque à história do cashback. O senhor poderia esmiuçar um pouco como é que isso vai funcionar?
— Na verdade, o Brasil não tem um sistema tributário de regra, tem um sistema tributário de exceções. São milhares de normas. Então você tem imposto o consumo no município, são 5.565 municípios em 27 estados, cheios de regras diferentes. Ou seja, o sistema é muito complexo, burocratizado e, pior, faz esse recurso não chegar aos cofres públicos, pois ele é judicializado. O Brasil tem quase um PIB na Justiça, seja no Conselho Administrativo de Recursos, no CAR, seja no judiciário. Então, por conta dos incentivos fiscais, esse sistema tributário complexo demonstrou ser ineficiente. Nesse caso, existe o benefício de renúncia fiscal, que hoje representa 50% da arrecadação do Estado. O governo não conseguiu resolver os contratos regionais, garantir recursos para fazer investimentos na infraestrutura rodoviária, portuária e ferroviária, telecomunicações. Então, esse é um primeiro prejuízo ao país. O segundo também é que muitas vezes a renúncia fiscal não chega no preço. É incorporada à margem de lucro. Portanto, quando a gente faz a opção de colocar no lugar, claro que os governadores têm um instrumento deles, que é o desenvolvimento regional, porque a gente tira o imposto da origem e passa a cobrar no destino. Então, é impossível um gestor desonerar impostos terceiros. Ele pede esse instrumento e a gente coloca no lugar instrumentos com desenvolvimento regional evidente. Nós vamos fazer o Brasil ser um país muito mais consolidado em um bloco de entes federados, ou seja, com muito mais justiça federativa e tributária. Vamos combater os contrastes regionais, isso do lado do federalismo. E aumentar a renda per capita dos municípios, porque não justifica o cidadão do Piauí pagar imposto para um outro estado, sendo que ele mora ali, vive ali, consome saúde, educação, serviços públicos. E quanto à infraestrutura do lado do cidadão, queremos devolver impostos, que é o chamado cashback, que na verdade é a devolução de parte dos impostos pagos para as pessoas de menor poder econômico.
— Qual o efeito disso para a parcela mais pobre da população brasileira?
— Por meio das leis complementares, vamos regulamentar. Agora estamos analisando o mecanismo da devolução de impostos. Nós acreditamos que o cashback é mais eficiente. Pode ter cashback, por exemplo, para as mulheres, relacionado à raça, ou territorial… Isso tudo vai depender das leis complementares. Mas a saída foi constitucionalizar a devolução, e eu acho um mecanismo extremamente importante pra justiça tributária, para dar progressividade no imposto indireto, que é um imposto de consumo. Eu costumo dizer a quem se arrisca a questionar o cashback. Hoje quem declara imposto de renda, já conta com esse benefício se for de maior renda econômica. O contribuinte recebe de volta o que pagou, por exemplo, na saúde, na educação privada… Então por que não devolver o imposto para os mais pobres, que às vezes gastam 100% dos seus recursos não em serviço, mas em compra de mercadorias? Não é justo uma mãe com três filhos que recebe R$ 1 mil do Bolsa Família, o sistema tributar e tomar parte desse recurso. Eu costumo dizer que tão importante quanto colocar os mais pobres no orçamento, é também retirar os mais pobres do sistema tributário, em especial desse modelo regressivo. É um mecanismo que tem demonstrado em alguns países em que já foi implementado ser muito eficiente e é o que faz economia girar, faz a roda da economia girar e aumenta o poder de compra das famílias, aquecendo o mercado.
— O senhor falou que a reforma tributária simplifica o sistema tributário brasileiro que a maioria dos cidadãos percebe, de fato, como complexo e injusto. E, por enquanto, tem sido tratado por parte da imprensa como até mais complicado do que o anterior. Afinal simplifica ou complica?
— Todo mundo vai entender o sistema quando começar a ser aplicado. Se eu te perguntar, você sabe o quanto pagou de imposto no computador que está usando? Não sabe e ninguém sabe o quanto pagou. Nem o setor produtivo sabe quanto, de fato, é o imposto. Ele é um imposto cumulativo, escondido, embutido… O sistema tributário que teremos daqui para a frente, depois de 2032, é um sistema tributário transparente.
— Qual que é o princípio?
— O imposto será cobrado por fora. Então, quando o cidadão for cobrar ou pagar uma mercadoria ou um serviço, ele vai saber o preço e o valor do imposto. Isso vai dar ao cidadão consciência fiscal e, ao mesmo tempo, fazê-lo perceber que é pagador de imposto, que no Brasil a maior carga tributária vem sobre o consumo. Por isso que a gente fala que o modelo é regressivo, não vem sobre renda e patrimônio. Então, quando o cidadão tiver consciência de que ele é um grande pagador de imposto, duas coisas poderão ocorrer. A primeira é a consciência cidadã plena, que vai exigir políticas públicas mais eficientes, investimentos públicos com melhor qualidade. A segunda é que ele vai ter consciência fiscal. Isso é uma força muito grande para a gente discutir reforma de patrimônio, para tentar reduzir as desigualdades e promover justiça tributária. Ou seja, é possível, quando nós temos um sistema federativo de três instâncias, assumir a responsabilidade com a trajetória das dívidas, promovendo igualdade fiscal e social. Isso permitirá mobilizar a sociedade. É um erro tratar a reforma como uma simplificação. Ela simplifica mais, corrige normas e distorções do nosso sistema tributário. Todo produto de cadeia longa, todo produto ou serviço que tem várias etapas de produção, vai ficando mais caro.
— E quais ainda são os nós da reforma? O que falta para ela estar completamente redonda, ser aprovada e ser abraçada pela sociedade?
— Agora, está lá no Senado. O projeto foi aprovado em julho, em primeiro e segundo turno na Câmara dos Deputados, depois de 40 anos. É a primeira reforma do sistema democrático brasileiro. A última tinha sido em 1965, ainda na ditadura. A proposta atual vai ser votada em 18 de outubro no Senado, na Comissão de Justiça e volta para a Câmara. Espero que até novembro possamos deliberar sobre as mudanças do Senado e promulgar a reforma até dezembro. Mas serão necessárias algumas leis complementares. Temos comando condicional e agora teremos as leis complementares. Acredito que até maio do ano que vem possamos aprovar as leis complementares.
— Uma vez aprovada, como será a aplicação?
— São duas transições. Você tem a primeira transição, que é aquela o do sistema tributário brasileiro. Ela inicia em 2026, termina em 2032. Por que que termina em 32? Porque nós temos o sistema hoje de renúncia a incentivos fiscais. Todos os incentivos fiscais foram convalidados no PL 162/17. Então, para não ter rompimento de contratos e manter a segurança jurídica, todos benefícios com validade até 2032 serão honrados. Por isso nós criamos um Fundo de Convalidação de Benefícios. O Brasil será dual. Haverá um imposto nacional e um imposto subnacional, que, na verdade, os governadores e prefeitos pediram para separar o imposto nacional e o local, apesar da legislação ser única. É única também a agência arrecadadora, que é centralizada. A agência federativa, que é, na verdade, um órgão operacional de cobrança do imposto para fazer o “creditamento”, a distribuição da arrecadação. Nesse modelo, nós vamos começar a reforma em 2026, unificando IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), PIS (Programa de Integração Social), COFINS (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), para criar o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), de âmbito nacional. Em 2026 ou 2027 terminam os casos dos impostos federais. A reforma termina em 2032, aliás começa em 2032 para os entes federados subnacionais. Teremos uma equalização fiscal que vai durar 50 anos. Então vamos equalizar corrigindo esta arrecadação de origem e destino por cinco décadas. Nos primeiros 25 anos, sempre arrecada pelo destino, mas nos reparte pelo IVA, pelo sistema de origem. Hoje, o que sobra de arrecadação já reparte pelo sistema tudo o que é destino e onde o cidadão mora, o consumidor. Os últimos cinco anos a gente já reparte pelo IVA, mas preserva pelo seu destino, pelo cidadão maior, pela população, pelo consumidor. É uma reforma do ganha-ganha que tem transmissão. Quando o prefeito de São Paulo fala ‘eu vou perder 10 milhões’, é mentira, vai ter uma compensação.
— Ficou razoável o modelo, apesar das queixas do governador Tarcísio de Freitas?
— A reforma conseguiu, através de toda essa articulação política, esse alinhamento político, estabelecer condições objetivas para, depois de décadas, levar ao plenário e ser aprovada na Câmara dos Deputados. Não tem como mudar o sistema tributário atual para outro sistema no automático, não tem como desligar um sistema e ligar o outro. Tem que ter a transição federativa, que é essa equalização das receitas. No final, a gente conseguiu unidade. Eu diria que o sucesso da reforma é que alinhamos por dentro do governo, sob a coordenação do presidente Lula, sob o comando do ministro Fernando Haddad, alinhamos os estados e município, pacificamos a questão dos estados produtores com imposto de origem. A guerra fiscal esvaziou e encareceu os produtos e criou um mercado injusto. Uma empresa não pode se alocar pelo benefício fiscal. Tem que se alocar pelo mercado de consumo, pela estrutura, pela matéria prima, pela vocação regional, pela vocação econômica.
— Sobre o empresariado, como está a recepção da reforma?
— As empresas têm hoje 51 obrigações fiscais acessórias. Todas serão eliminadas: livro-caixa, fiscal… Nós conseguimos também o alinhamento com setores produtivos com setor de serviços, como é o agronegócio, a bancada ruralista. Mostramos que, com esse sistema (atual), todo mundo perde. Temos estudos que apontam que o crescimento econômico vai ocorrer de 12% a 20% em razão da reforma tributária, do consumo incentivado pela eficiência. A renda per capita pode aumentar em R$ 6 mil. Imagine o impacto disso na desigualdade federativa. Há muito ganho com a reforma tributária nessa primeira etapa. Temos vantagens comparativas enormes com o mundo, um território enorme, mas ainda estamos aquém da nossa capacidade. É muito nobre exportar alimento, por exemplo. O que não é nobre é deixar um brasileiro passar fome, o que acontece hoje. A gente tem tudo para voar. Temos um exemplo da produção de biocombustível, de pegada de carbono quase zero, de baixo carbono, que é o etanol. Temos a energia solar, eólica, hídrica, ou seja, podemos voar e produzir muita riqueza.
— Como ficarão as políticas de incentivo fiscais a setores que dependem deles, como a cultura e o esporte? São casos diferentes de grandes empresas.
— Todas as políticas públicas criadas estão preservadas. E como que se dará o apoio a essa política de incentivo à cultura estiver atrelado ao ISS (Imposto Sobre Serviço)? Ela continuará o percentual atrelada ao IVA, seja nacional ou subnacional, aos estados ou a União. Tanto que a gente já nem chama mais de imposto. Chamamos de contribuição porque parte da seguridade social estava no Cofins, que a gente unificou no IVA. Então, por isso que a gente colocou CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), justamente para preservar parte desse dinheiro para seguridade social do país. Então permanece como antes.
— Como explicar aos leitores o impacto da reforma a alguém que não tem intimidade com o assunto?
— Há um aspecto importante sobre a reforma, que é exatamente combater a desinformação e as fakes news. Como nosso modelo é tão complexo, tão judicializado, fica dificílimo falar de imposto. Agora ele vai ficar fácil de explicar, mesmo com toda a desinformação. Primeiro, temos que explicar que vamos devolver parte dos impostos que o cidadão nem sabe que paga, principalmente o cidadão mais simples, que é o maior pagador de imposto. Ele acha que pagar imposto é pagar no contracheque ou no imposto de renda, um pedágio. Então ele vai ter clareza e vai saber que é pagador de impostos. Isso muda o patamar de cidadania, porque vai exigir melhores políticas públicas. A segunda questão é que o cidadão paga imposto sobre imposto, apesar de achar que não paga. Agora é um imposto, um único imposto. O mais importante é que a economia vai crescer, vai gerar empregos e um aumento de renda per capita. E vai ter um ganho de simplificação, que vai fazer com que a cidadã e o cidadão tenham uma compreensão maior do seu sistema tributário.
— O senhor prevê que caminharemos para uma neoindustrialização ou uma reindustrialização tecnológica e sustentável?
— Nossa reforma dialogou com a transição ecológica. A partir do momento que criamos tributação progressiva ecologicamente equânime da sustentabilidade em vários momentos da compra de um bem, como um carro, se ele for de combustíveis renováveis, terá menos imposto. Nós reafirmamos a constitucionalização da diferença, o que é maior no setor de combustíveis. Vai ter uma diferenciação do combustível fóssil para o combustível renovável. Todos ganham. Até o setor de serviços. O setor de serviços, o prestador de bens e o maior comprador é o setor das indústrias. O erro é você achar que o país pode viver sem indústria. Não tem nação sem indústria. O Brasil precisa de uma indústria moderna, nova, digital, ecológica, sustentável. O novo sistema tributário vai permitir que isso aconteça, enquanto o atual impede. Mas o setor de serviços também será beneficiado. Turismo, gastronomia, hotelaria… A exportação vai ser fundamental, porque o princípio é o destino puro. Agora, consolida o princípio de não cobrar os investimentos e fortalece, abre novos investimentos, desonera crédito, todos os tributos do investimento e só cobra da produção. Isso, na minha opinião, dá um dinâmica forte a todos os setores econômicos e permite o Brasil deixar de ser um país primário-exportador para ser um país que vai agregar valor.
— Por que a reforma nunca foi aprovada em tanto tempo?
— É difícil sair do sistema de 460 mil normas determinadas em lei, num país que é federativo em três instâncias e tem um modelo atípico do ponto de vista federalista. É complexo conseguir desligar um modelo para ligar o outro e é por isso que a reforma tributária nunca foi aprovada. Ao não tentar fazer transição na marra, não vai. A gente institucionalizou a segunda etapa em 180 dias, mas a reforma de renda e patrimônio, porque no Brasil, ao contrário da Europa, há espaço para fazer uma reforma, um ajuste de patrimônio. Esperamos que a gente faça essa segunda etapa também, porque o Brasil fez uma opção de cobrar pouco de renda e do patrimônio e a consequência disso é cobrar muito de consumo. O caminho tem que ser o inverso. É diminuindo a alíquota do consumo para aumentar a renda. O patrimônio (a reforma) não vai ser um caminho fácil, mas nós vamos ter que fazer.
— Um dos ganhos políticos da reforma de destaque é a elevação da consciência e o exercício pleno da cidadania. Como é que o senhor imagina que isso vá se dar?
— Pela transparência. Eu sempre começo uma palestra perguntando: ‘alguém sabe o valor que foi pago de imposto de consumo no seu celular?’ Ninguém arrisca falar. Essa transparência é fundamental. O cidadão hoje não enxerga o quanto paga de imposto. E quando o cidadão acha que está pagando imposto, ele se sente menor. Do ponto de vista da cidadania, quando tiver a certeza do que está pagando e que vai receber de volta parte desses impostos, ele vai cobrar o poder, vai aumentar a sua cidadania e exigir políticas públicas mais eficientes e dignas. Escolas de tempo integral, proteção à primeira infância, saneamento são exemplos primários. Vai aumentar o grau de participação do cidadão. E teremos a clareza de saber o que que se está pagando. É muito importante para a construção de uma consciência fiscal e para que a gente possa fazer chegar à justiça tributária. •