Saturação midiática, distopia e isolamento social na era da ‘globalização’. No auge da experimentação sonora, o U2 lançou obra divisora de águas há 30 anos. Exploração das contradições entre o avanço tecnológico de países ricos e o aumento da pobreza, entre outros comentários sociais, conferem impressionante vitalidade ao disco

Fernando Brasil

No início dos anos 90, o termo globalização consagrou-se como expressão máxima do aumento da produção de miséria no mundo, alimentando-se de uma falaciosa “integração” econômica e cultural entre países. As contradições de uma sociedade cada vez mais tecnologicamente conectada — e estamos falando ainda de antenas parabólicas, não de internet — e, mais do que nunca, socialmente perversa, vinham sendo exploradas com maestria pela banda irlandesa U2, a partir do divisor de águas “Achtung Baby”, lançado em 1991.

O disco, uma revolução sônica e poética, abriu caminho no ano seguinte para a Zoo TV. A turnê utilizou o que havia de mais inovador em shows na época, conectando, em um espetáculo multimídia, temas como consumismo, superexposição midiática, indústria de armas e política. É nesse ambiente fraturado que nasce “Zooropa”, o álbum de 1993 que refinou as explorações eletrônicas de seu antecessor. Com 30 anos completos em julho, o álbum exala frescor e vitalidade impressionantes.

Pensado inicialmente para ser um EP, o projeto transformou-se em um álbum, cuja gravação surpreendeu pela rapidez com que a banda formada por Bono Vox, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. aprofundou suas experimentações em estúdio. O álbum, produzido por Flood, Brian Eno e The Edge, resultou em uma estranha coleção de 10 canções, que uniram minimalismo eletrônico, dance, baladas intimistas e até a tradição do cancioneiro americano. Para marcar o aniversário destas três décadas da obra, a banda preparou o lançamento de uma edição limitada, em vinil colorido, para outubro.

Para saudosistas e curiosos, a visita ao rico período de produção do U2 não para por aí. No mês passado, os fãs já puderam se deliciar com um esquenta por meio de uma transmissão global da Zoo TV, ao vivo. Além disso, versões remasterizadas do single “Stay (Faraway, So Close!)” e de remixes e lados-B acabaram de chegar às plataformas de streaming. Enquanto isso, o U2 abre em setembro o show U2:UV Achtung Baby Live at The Sphere, em Nevada, nos EUA. A experiência poderá ser celebrada pelos fãs do disco homônimo até dezembro.

Como acontece com toda obra vista em perspectiva histórica, “Achtung Baby” é peça-chave para o mergulho do grupo em Zooropa. Sofrendo de uma espécie de ressaca existencial após o sucesso acachapante do álbum “Joshua Tree”, de 1987, o U2 usou sua crise criativa para se reinventar em “Achtung Baby”. 

O doloroso processo de criação do disco, com intermináveis sessões entre 1990 e 1991, algumas infrutíferas, cheias de dúvidas e até de desentendimentos entre os integrantes, resultou em uma poderosa coleção de canções, construídas em uma colagem sonora contaminada pelo ambiente sócio-cultural da Alemanha pós-queda do Muro de Berlim.

Foi para lá que a banda se mudou para gravar o disco, influenciada pelos heróis atemporais Lou Reed e David Bowie, que também se deixou embriagar pela atmosfera reflexiva e ao mesmo tempo artisticamente vibrante da capital alemã para produzir uma trilogia de discos imbatíveis nos anos 70 — “Low”, “‘Heroes’” e “Lodge”. 

O U2 expandiu o som da guitarra clássica de The Edge, marca do grupo, colando-o a samplers e sintetizadores para moldar canções como as dançantes e climáticas “The Fly”, “Even Better Than The Real Thing”, além da balada “One”. Com isso, o U2 deslocou o eixo de influências americanas e de caráter messiânico — que basearam alguns sucessos do passado — para a vanguarda da música eletrônica europeia. 

As canções, ora esparsas, ora estridentes, agora abriam espaço para comentários sociais sobre o uso da tecnologia pelos países ricos, política externa e isolamento social, impregnados por uma fina e melancólica camada de ironia. Ironia essa que seria amplificada na Zoo TV pelo personagem “The Fly”, uma paródia sobre o absurdo do culto quase religioso à imagem de um rock star.

É daí que a banda parte para criar “Zooropa”, um disco ainda mais esteticamente ousado na desconstrução do formato pop de uma típica canção de três minutos. Navegando em águas opostas às que agitavam os mares das paradas do rock alternativo, já saturado pelo grunge após a explosão do Nirvana e outros grupos de Seattle, o U2 abre o disco com “Zooropa”, uma canção contemplativa de mais de 6 minutos e espécie de irmã de “Zoo Station”, do disco anterior. 

Ao contrário da eletricidade contagiante da abertura de “Achtung Baby”, no entanto, ela aborda de modo quase temeroso o futuro que virá pelas transformações tecnológicas. Assim, Bono sugere um giro apocalíptico pelo mundo mas avisa que não possui bússola, mapa, nem “motivos para voltar”.

A produção de Brian Eno aprofunda o caráter enigmático e pós-moderno das músicas por todo o disco, alternando momentos sombrios e melancólicos com  apatia e estupefação, marcando um contraste definitivo com a ansiedade hiperativa do álbum anterior. 

Mas o tom hipnotizante do baixo de Clayton e o clima de “música ambiente”, imortalizado por Eno, jamais deixam o ouvinte entediado. Seja pelo timbre infantil do piano que parece selar o adeus à inocência de “Babyface”, ou pela repetição robótica do mantra eletrônico “Numb”, single cantado por The Edge, “Zooropa” transborda inspiração e inventividade em sua expedição eletrônica comandada por Bono, The Edge e cia.  

Cada uma a seu modo, “Lemon” e “Stay (Faraway, So Close)”, também lançadas como singles, cativam pela beleza das melodias e pelo ambiente esparso dos arranjos. “Lemon” leva para as pistas de dança uma delicada homenagem de Bono Vox à sua mãe, que morreu quando ele ainda era bem jovem. O lamento em falsete, recurso que o cantor explorou com muita propriedade em “Zooropa”, confere ainda mais calor ao clima saudosista da faixa. 

Já “Faraway, So Close!”, trilha do filme homônimo do cineasta Win Wenders, que também dirigiu “Asas do Desejo”, é a mais tocante balada já composta pelo U2. A faixa aborda, com evocativas imagens e reflexões sobre a condição humana, a dualidade ente o mundano e o divino.

A desoladora constatação de perda da fé em “The First Time” nos apresenta uma das mais duras letras de Bono Vox, relevando o caráter dilacerante que o exercício da fé pode conferir à prática religiosa. Ao revisitar o minimalismo do Velvet Underground com convicção, sem jamais resvalar para a mera cópia, o guitarrista The Edge deve ter deixado o amigo Lou Reed orgulhoso.

Praticamente no meio da carreira naquele longínquo 1993, o U2 encerra sua jornada no tempo e no espaço com a participação monumental de Johnny Cash em “The Wanderer”. A canção, uma ode à redenção e à celebração da simplicidade da vida, havia sido escrita para o lendário cantor do country americano mas terminou sendo gravada pela banda. Quase atemporal, “The Wanderer”  representa uma perfeita união entre as raízes da canção folclórica e os caminhos que ainda seriam trilhados pela banda, nunca mais com o mesmo sopro criativo.

A “Zooropa” de Bono Vox e sua luxuosa Zoo TV, ancorada na saturação de transmissões fragmentadas via cabo, não previu um futuro melhor pelas mãos da revolução tecnológica. De fato, ele não aconteceu. A extrema direita, reduzida a guetos no início dos anos 90, cresceu e utilizou-se das redes sociais para fazer sua própria globalização. No processo, feriu de morte o conceito que norteou a criação da União Europeia, vital para o próprio nascimento de “Achtung Baby” e “Zooropa”. Na forma, o satélite de Bono foi colocado para sempre em órbita após o surgimento das redes sociais. Mas a distopia e o isolamento de “Zooropa” permaneceram intactos em meio à chuva efêmera de bilhões de interações e sinais digitais. •

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