Sobre o encarceramento
No Brasil, faz-se necessária a discussão sobre a prisão, a educação e remição de pena. Precisamos tratar do dispositivo jurídico que reduz a pena do preso pelo estudo e a luta pela garantia de direitos à educação nos presídios
Eli Torres
Quero reabrir um debate sobre as complexidades da execução penal no Brasil. Em 2019, tratei do tema ao publicar o o livro “Prisão, educação e remição de pena no Brasil”, de minha autoria, lançado pela Paco Editorial. A obra debate a respeito da gênese do dispositivo jurídico da remição de pena pelo estudo e a luta pela garantia de direitos à educação nas prisões brasileiras.
O livro demonstra como os conflitos penitenciários, gradualmente, influenciaram para a formação do espaço de militância que se ocupou em combater violações aos direitos civis. E para, inclusive, mobilizar intelectuais e militantes engajados, dispostos em institucionalizar políticas educacionais para pessoas privadas de liberdade no Brasil.
A obra está organizada em duas partes e seis capítulos. A primeira parte é a prisão como recurso de administração social. O primeiro capítulo, intitulado “O dispositivo jurídico da remição de pena e o Estado penal”, propõe-se recuperar a origem do dispositivo jurídico da remição de pena pelo estudo e as previsões legais do instrumento que possibilita a redução parcial do tempo de prisão.
Em seguida, apresento uma breve discussão teórica apoiada nos estudos de Loïc Wacquant de modo a dialogar com o fenômeno da punição a partir da tese central de que o distanciamento do Estado de suas funções de interventor, que promovia o bem-estar social (Welfare State) e a adesão a políticas e iniciativas de um Estado penal, estariam articulados, no caso dos Estados Unidos e Europa, numa artimanha necessária à reorganização de uma nova ordem econômica, que procura segregar a população economicamente pouco produtiva. Isto quer dizer, como colocaram os considerados indesejados em prisões.
A partir daí, observo como a América Latina se adaptou ao ideal de aprisionamento. Porém, neste caso, diferente do que se passa nos Estados Unidos, temos aqui o aumento dos casos de prisões provisórias, medida que alavanca o crescimento do Estado penal substanciada no endurecimento da legislação.
No segundo capítulo, “Remição, educação e o aprisionamento na América Latina”, apresento cronologicamente o processo de institucionalização da remição de pena pelo estudo em países da América Latina e a concomitante elevação nos índices de prisões. As taxas de encarceramentos foram identificadas e relacionadas à grande incidência de prisões preventivas no Brasil, Argentina, Peru, Venezuela, Uruguai, Colômbia e Bolívia. O mesmo fenômeno se observa no México, Guatemala e Panamá.
“Do massacre à organização criminosa: a constituição do espaço de militância por garantias de direitos aos presos comuns” é o título do terceiro capítulo. Aqui, reúno alguns dos elementos que permitem pensar a gênese do “dispositivo remição” nas suas relações com os debates em torno de uma “questão carcerária”, que é construída no espaço público como resultado de desenvolvimentos diversos.
Tais movimentos são externados, num primeiro momento, por meio de conflitos, violações de direitos, a exemplo do massacre do Carandiru e a superpopulação carcerária, segregada em condições inumanas. No segundo, demarcado pelo surgimento e enfrentamentos de facções criminosas e como a junção destes fatores conduziu o sistema penitenciário às rebeliões.
Esses acontecimentos contribuíram para o engajamento e mobilizações de diferentes agentes sociais na luta pela garantia de direitos às pessoas presas. Parte desses indivíduos vai se distinguir do conjunto ao se dedicar à luta para garantir políticas educacionais específicas para custodiados, intervindo também junto ao Congresso Nacional para viabilizar a aprovação da lei de remição.
No quarto capítulo, intitulado “Os experts: intelectuais, políticos, militantes e as redes pela educação em prisões”, parto desta análise, e avanço na identificação dos indivíduos e das instituições envolvidos diretamente na consolidação deste campo de estudos e de militância pela educação em prisões. A partir daí, identifico dois grupos de agentes sociais comprometidos com a pauta. O primeiro grupo, formado por especialistas integrantes do governo federal e com trânsito em organismos internacionais. O outro reúne “experts” em luta por direitos e composto por pessoas e instituições da sociedade civil organizada e ONGs.
Identifico-se, ainda, a atuação particular de um professor universitário cujas posições permitem revelar os dilemas associados ao tipo de política educacional e prisional inaugurado com a lei da remição da pena pelo estudo.
No quinto capítulo, “Mãos à obra: a militância cruzada na institucionalização da política”, reúno os resultados da sistematização das políticas debatidas, implementadas e influenciadas por estes agentes.
Aqui, demonstro, inclusive, o modus operandi dos agentes e instituições no processo de consolidação da política educacional e da remição como dispositivo jurídico-político, por meio da análise dos documentos nacionais e internacionais compreendidos como relevantes para a consolidação da garantia de direitos à educação no Brasil e dos projetos de lei que tramitaram no Congresso Nacional entre 1993 e 2008.
Em “A remição educacional e seus desdobramentos”, permito-me observar a efetividade do dispositivo jurídico-político a partir da consolidação da Lei 12.433 de 2011, que alterou a Lei de Execução Penal e equiparou o pagamento de pena pela frequência escolar à remição pelo trabalho. Apresento simulações e contagem de tempo remido para demonstrar as distinções entre tempo de condenação total imposto pela justiça e tempo de cumprimento de pena, com ou sem remição de pena.
Neste capítulo também ocupo-me em analisar o desdobramento do dispositivo, tanto na perspectiva da dinâmica da política que possibilitou novos entendimentos judiciais da legislação, influenciando a ampliação do dispositivo jurídico-político, quanto para visualizar, no caso concreto, a partir da efetivação da oferta educacional para fins de remição como vem se constituindo a educação e remição nas prisões. •
* Socióloga, é doutora em Educação pela Unicamp e coordenadora-geral de pesquisa da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).