A vida e obra de Nick Cave ganha versão do quadrinista Reinhard Kleist, que reconstitui os anos de formação do cantor e compositor australiano, que viveu em São Paulo na década de 1990

Bia Abramo

O australiano Nick Cave, um dos artistas contemporâneos da música independente mais importantes em atividade, tem uma relação literalmente visceral com o Brasil. Ele morou em São Paulo nos anos 1990, com a produtora Viviane Carneiro e o filho Luke, fez amigos e frequentava bares da Zona Oeste paulistana. Aqui gravou seu sexto álbum “The Good Son”, em um estúdio no Sumaré, disco que tem pelo menos uma letra, “Foi na Cruz”, em que Nick arrisca cantar em português e faz referências à sua vida em São Paulo.

Em “Piedade de Mim”, uma novela gráfica com tintas biográficas do cantor e compositor, a passagem pelo Brasil aparece apenas tangencialmente, mas seu autor, o quadrinista alemão Reinhard Kleist, não deixa de dar a dimensão necessária. Em 1989, quando Nick Cave e os Bad Seeds vieram para uma curtíssima temporada de shows no Rio e São Paulo, ele passava por uma espécie de crise pessoal.

O músico e compositor estava numa encruzilhada amorosa, queria se afastar temporariamente da cena europeia e, sobretudo, precisava dar um tempo nas drogas. O peso também de uma notoriedade que começava a tirá-lo do circuito underground, devido sobretudo à aparição no filme  “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, também contribuiu para a decisão de quase se esconder em São Paulo por três anos.

Depois de deixar Melbourne, onde formou com o guitarrista Mick Harvey uma das bandas seminais dos anos 1980 na Austrália, Nick foi para Londres e Berlim, ainda como mais um dos grupos que, na segunda metade dos anos 1980, procurava uma sonoridade original, autoral dentro do grande guarda-chuva do pós-punk. Profundo conhecedor de blues e folk, Nick encontra na capital da Inglaterra uma cena de vanguarda, orgulhosamente autônoma das grandes gravadoras e sombria na medida para aquela que será sua marca: o som que radicaliza soul, blues e folk, a voz grave, profunda e as letras que tocam na beleza e na miséria humanas.

A banda, no entanto, tomará forma no encontro de Nick com Blixa Bargeld, à época, à frente do grupo de rock industrial Einstuerzende Neubauten. Com os remanescentes do Birthday Party, formam os Bad Seeds, cuja combinação de influências e de projetos, permitiu a Nick Cave, em poucos anos, ocupar uma posição como um crooner que cantava canções de amor & morte, pecado & redenção, êxtase e desespero.

É esse o período que o Kleist registra em “Piedade de Mim”, por meio um fio narrativo que combina algumas das letras de canções originais ou versões desse período, que inclusive dão nomes para os capítulos (“The Hammer Song”, “Where The Wild Roses Grow”, “And The Ass Saw the Angel”, The Mercy Seat” e “Higgs Bosom Blues”), e fragmentos biográficos do Nick criador e performer.  No traço preto e branco expressionista de Kleist, reconhecemos de imediato a figura alta, magra do cantor, sempre de botas e calças pretas, quase como um caubói urbano e deslocado.

O vaivém dos tormentos criativos de Nick e da banda, da frenética atividade de escrita que estão plasmados na obra musical do cantor & compositor nesse anos formativos (e de passagem da juventude para a maturidade) convivem, no roteiro concebido pelo quadrinista alemão, com os personagens tremendos que surgem tanto dos blues que o cantor pesquisa como de sua imaginação tomada por cenas de decadência, morte e crime, mas também de lirismo amoroso e sexual.

O trabalho de reconstituição biográfica bastante realista — e, certamente apoiada em pesquisa — encontra nesta  graphic novel uma possibilidade nova de não apenas contar a história de uma trajetória musical e existencial já bastante registrada. E acrescenta uma fabulação imagética e sensível que interpreta e recontextualiza o longo percurso de Nick, do gótico australiano a um lugar na história da música ao lado de mestres como Leonard Cohen e Johnny Cash. Este último, aliás, é tema de outro trabalho de Kleist, “Johnny Cash – Uma Biografia” (2006), pelo qual foi indicado ao prêmio Eisner, o maior prêmio mundial dos quadrinhos.

A grande sacada do livro é que, com seu cuidado meticuloso na pesquisa, mas também sua evidente paixão pelo biografado, Kleist conseguiu compor um roteiro destinado tanto a um público que conhece e acompanha Nick Cave e os Seeds desde dos anos 1980 como para as novas gerações, que podem passar a conhecer melhor esse artista múltiplo. E, claro, é muito bem-vinda a ótima tradução do volume, uma vez que a base de fãs e admiradores no Brasil é bastante significativa, até mesmo pelas histórias de um Nick que perambulava pelas ruas da Vila Madalena e ficou amigo dos donos dos donos da Mercearia, seu bar de esquina nos anos 1990. •

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