Professora de arte em Goiânia é demitida por usar camiseta com referência à obra do artista plástico Hélio Oiticica, feita em 1968 como forma de protesto. Ela foi denunciada e linchada virtualmente por um deputado bolsonarista

O deputado Gustavo Gayer (PL-GO), representante da extrema-direita bolsonarista, provocou a demissão injusta de uma professora de história da arte em uma escola privada em Goiânia (GO). Gayer usou suas redes sociais para fazer “denúncia” baseada na imagem da camiseta com qual a professora vestiu para dar aula. Na camiseta, estava estampada a imagem de obra do artista plástico Hélio Oiticica que mostra um homem caído no chão e a frase “seja marginal, seja herói”.

“Professora ensinando que ser herói é a mesma coisa que ser marginal. Professora de história com look petista em sala de aula”, acusou o parlamentar, no texto que acompanhava o post. Além de conter erro factual flagrante, pois a obra de Oiticica reproduzida na camiseta é de 1968, portanto não poderia ser “petista”, uma vez que a bandeira-poema do artista foi criada exatos 22 anos antes do nascimento do Partido dos Trabalhadores, a interpretação estreita e descontextualizada dos dizeres revela uma enorme ignorância sobre a cultura brasileira.

Artista plástico que atuou nas décadas de 1960 e 1970, Hélio Oiticica tem lugar garantido na historiografia da arte do Brasil e do mundo. Foi pintor, escultor, mas explorou a performance e outras formas de expressão, dialogando com a arte popular — a partir da relação com a escola de samba Estação Primeira de Mangueira.

Também teve forte vínculos com a música brasileira — era amigo dos tropicalistas, que vestiram seus parangolés em apresentações ao vivo e programas de televisão. E, evidentemente, insurgiu-se contra as restrições da censura imposta pela ditadura militar. A bandeira-poema de 1968 compõe uma série de outras obras à qual ele deu o nome de “Marginália”, refletindo os impasses que a repressão impôs às artes. E refere-se, na verdade, à contracultura e à cultura underground.

Gayer talvez soubesse, talvez não soubesse de nada disso (ainda que basta acionar qualquer mecanismo de pesquisa para descobrir). Bolsonarista daqueles que é chamado de “raiz”, ele se elegeu em 2022 para a Assembleia Legislativa de Goiás batendo na pauta fácil dos costumes.

Muito atuante nas redes sociais desde que era apenas proprietário de uma rede de escolas de inglês em Goiânia, começou a se envolver com política em 2015, aproveitando a brecha que se abriu para a direita antes ainda do Golpe de 2016. Percorreu todo o périplo do político da neodireita: é olavista, conservador, antifeminista, “pró-vida” e apoiador de Jair Bolsonaro.

Na redes, além de vender curso de como virar influencer, Gayer mantém uma plataforma de “denúncias” anônimas (ou não), na qual toda sorte de alarmismo sobre a “doutrinação” de crianças e adolescentes tem guarida. A reportagem de Focus visitou o site na última semana e encontrou depoimentos que desfiam o cardápio completo da paranoia da direita.

São poucos, felizmente, mas bastante ilustrativos: a julgar pelos textos exibidos ali, escolas em Goiânia seriam centros de adoradores de Lúcifer, que treinam alunos do ensino fundamental a serem bons comunistas. Nem o PC da Albânia, antes da queda do Muro de Berlim, seria capaz de professores tão devotados à causa.

Por absurdo que soe aos ouvidos de quem está no campo progressista, o fato de que um deputado se utilize da tribuna do parlamento para incentivar e perseguir professores mostra que essa prática tem eco. Três dias depois que Gayer postou a imagem nas redes, a professora foi demitida. A justificativa da demissão do Colégio Expressão, em Aparecida, seria o fato que “a escola poderia ter prejuízos financeiros caso não a mandasse embora”.

Após a demissão, a pedagoga decidiu mover uma ação por danos morais contra o parlamentar, na qual pede indenização de R$ 30 mil. Em entrevista ao UOL, o advogado da professora, Alexandre Amui, atribui a responsabilidade ao deputado pelos danos que sua cliente e a escola estão sofrendo nas redes. “A professora foi demitida em virtude da perseguição praticada contra ela e contra a escola. Além disso, estamos pedindo que o deputado exclua todos os vídeos e não volte a postar conteúdo que mencione a professora”, disse.

Em entrevista exclusiva para o site Ponte Jornalismo, a docente, que pediu para que seu nome não fosse publicado por conta das ameaças que vem sofrendo, afirmou: “Muitas pessoas estão me acusando de ser uma ‘doutrinadora’, de ‘promover ações a favor da bandidagem’. Eu já li, acho que umas quinze vezes, que meu ‘CPF tem que ser cancelado’ [eufemismo muito usado nas redes que significa que a pessoa deve ser morta]. (…) E então penso: onde está o erro de uma professora de arte ensinar arte?”

Ela prossegue: “Consegui trancar minhas redes sociais a tempo, mas não pararam de mandar as mensagens nas redes sociais da escola. E grande parte das ofensas estão lá. Os apoiadores [do deputado Gayer] pressionam a escola para que tomem uma provisão contra ‘essa professora que está desvirtuando seus estudantes’”.

Por fim, a professora de arte relata sua reação ao fato de a instituição de ensino ter tomado o lado do agressor: “Eu fiquei horrorizada. Vou usar essa palavra. Foi a minha sensação. Eles falaram que estavam me protegendo. Como uma escola diz que me protege, se escolhe o outro lado da história, que é o mentiroso e criminoso? (…) É um sentimento coletivo de todos nós, professores. Há alunos também revoltados. Realmente foi uma atitude completamente irresponsável e criminosa. Eles não poderiam ter assumido o lugar do erro e do desrespeito, que foi o que fizeram”. •

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