No mais surpreendente ataque às instituições do Estado de Direito, o Google atira no projeto de lei que regula as redes sociais e busca combater a desinformação, mas é acusado de intimidar o debate público. Só que a gigante de tecnologia conseguiu o seu principal objetivo: impedir a aprovação da proposta contra as fake news. Quem perde é a sociedade civil. “A internet não é terra sem lei”, diz o ministro Flávio Dino

Num ataque sem precedentes na história da democracia ocidental, o Google lançou-se a atacar, na última semana, a proposta de lei que define as normas para o uso das redes sociais e para combater a desinformação e as campanhas de ódio. O gigante do Vale do Silício, sediada em San Francisco, nos Estados Unidos lançou uma ofensiva contra o Projeto de Lei 2630, o projeto de lei que regula a internet e que seria votado na semana passada. A proposta foi adiada.

Quem usa o Google se deparou no dia 1º de maio com um link abaixo da caixa de busca, com os dizeres: “O PL das fake news pode piorar sua internet”. O link direcionava o navegante para um post do blog do Google com inúmeras críticas ao projeto. Segundo o site de dados Statista, 97% dos brasileiros usam o Google como principal plataforma para pesquisar na internet.

O Google usou de seus algoritmos para colocar na plataforma de busca amostras de textos com um viés crítico para quem procurasse informações sobre projeto. A empresa, que também é proprietária do YouTube, também privilegiou links de conteúdo de oposição ao projeto nos resultados das buscas sobre a norma, além de anúncios do próprio Google criticando a nova legislação.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou o adiamento da votação do projeto, numa tentativa de evitar a derrota da articulação política do governo. O adiamento foi decidido em meio à pressão da oposição e após uma reação do governo e do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), contra a ofensiva feita por big techs para barrar a proposta.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou ainda na segunda que as big techs estavam extrapolando. E afirmou que as plataformas fizeram censura contra o parlamento ao publicar link contrário ao PL das Fake News. Ele não apenas defendeu a aprovação do projeto na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, na terça-feira, como afirmou que as plataformas não podem ser “terra sem lei”, sem qualquer tipo de controle ou responsabilidade. “A lei é uma exigência constitucional. Não podemos ter um faroeste digital no Brasil. Fake News mata”, disse.

Dino afirmou que as plataformas fizeram censura contra o parlamento. E acusou o Google de retirar o link contrário ao projeto por conta própria, apontando que o que havia sido determinado  pelo Ministério da Justiça é que fosse assegurado pela plataforma de busca a publicação do contraditório. Ele explicou que a lei não prevê publicação de editorial por plataformas digitais. “Quem faz editorial é meio de comunicação, plataforma não faz editorial. No caso da plataforma temos a publicidade cifrada”, criticou.

A disseminação de notícias falsas e discursos de ódio, uma prática que surgiu com intensidade na campanha eleitoral de 2018, quando o então candidato Jair Bolsonaro usou máquinas de disparo, está no centro do debate que pode mudar a forma com que empresas de tecnologia lidam com esse problema. O projeto propõe que plataformas e aplicativos sejam responsabilizados pelo compartilhamento das chamadas fake news, discursos de ódio e que estimula o uso da violência .

O projeto estabelece que a lei será pautada pelo princípio da transparência nas regras para veiculação de anúncios e conteúdos pagos. Também aponta o fortalecimento do processo democrático, a defesa da liberdade de expressão e o impedimento da censura no ambiente online, além da busca por maior transparência das práticas de moderação de conteúdos postados em redes sociais e a adoção de mecanismos e ferramentas de informação sobre conteúdos impulsionados e publicitários disponibilizados para o usuário.

Hoje, as empresas lucram mais com o engajamento de notícias falsas, rumores, ataques e discursos de ódio. É isso que está na lógica dos motores de buscas e que levam os internautas a ter uma compulsão pela lógica do clique. O projeto de lei, relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), veda o funcionamento de contas inautênticas e de contas automatizadas não identificadas como tal.

O projeto ainda prevê a possibilidade da exigência de confirmação de identificação de usuários e responsáveis pelas contas. Há, ainda, a previsão de adoção de procedimentos de moderação, assegurando aos usuários da internet o direito de reparação por dano individualizado ou difuso aos direitos fundamentais e o direito de recorrer da indisponibilização de conteúdos e contas.

A proposta prevê ainda a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, que teria como atribuição a realização de estudos, pareceres e recomendações sobre liberdade, responsabilidade e transparência na internet. Caberá ao conselho, dentre outras competências, elaborar código de conduta para redes sociais e serviços de mensagens privadas, a ser avaliado e aprovado pelo Congresso. Também caberia ao órgão avaliar a adequação das políticas de uso adotadas pelos provedores de redes sociais e de plataformas de mensagens e avaliar os procedimentos de moderação adotados pelos provedores de redes sociais, bem como sugerir diretrizes para sua implementação.

Conforme o NetLab da UFRJ, os links do Google contra o PL no início da semana também apareceram na primeira página não como propaganda, mas como resultado da busca orgânica pelo termo “PL 2630”, em consultas realizadas de forma anônima, sugerindo um usuário genérico brasileiro sem histórico, entre os dias 23 e 28 de abril.

Além disso, youtubers vinham recebendo desde sexta-feira, 28, e-mails do YouTube afirmando que eles vão perder dinheiro se o projeto for aprovado. As mensagens afirmam que o PL compromete “nosso modelo de compartilhamento de receita”.

Dizem que, ao ser obrigada a pagar por conteúdo jornalístico, como prevê o artigo 32 do projeto, sobrariam “menos fundos para investir em você, em todos os nossos criadores e nos programas para ajudá-lo a desenvolver seu público”. No final, a gigante de tecnologia coloca pilha nos produtores de conteúdo do YouTube a falar “com seus deputados nas redes sociais ainda hoje”.

A pressão escancarada levou ao adiamento do projeto. E mostrou que as gigantes de tecnologia estão se transformando em uma ameaça à própria democracia. “Nós tivemos, em paralelo, uma ação suja das big techs. Eu nunca vi tanta sujeira numa disputa política. Por que o Google, por exemplo, usa a sua força majoritária no mercado para ampliar o alcance das posições de quem é contra o projeto e diminuir o alcance de quem é favorável”, criticou o relator do projeto, deputado Orlando Silva.

O projeto estabelece multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil em caso de descumprimento da lei. E prevê o pagamento por parte das plataformas pelo conteúdo jornalístico utilizado, sem que esse custo seja repassado ao usuário final. Sobre a forma do pagamento, aponta que a pactuação deve ser feita entre as plataformas e as empresas jornalísticas. As plataformas se opõem à ideia de remuneração, e entre os veículos há dissenso.

Entidades como Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e Associação Nacional de Jornais (ANJ), que reúne os principais veículos de mídia defendem o PL. Veículos de mídia menores, como o site Brasil 247, temem perder financiamento por terem menor poder de barganha.  •

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