Expondo a ferida da violência racial na América
O livro de contos que marcou a estreia de Nana Kwame Adjei-Brenyah na ficção finalmente é lançado no Brasil. O jovem autor parte da situação do absurdo para fazer literatura política contundente
Eu estava na faculdade quando Trayvon Martin foi assassinado. Criei um panfleto anônimo, uma resposta artística à atrocidade. Sua morte mereceu nossa indignação. Tarde da noite, espalhei 500 cópias do panfleto pelo campus. Fui para a cama esperando inquietude, um reavivamento, uma conversa, qualquer coisa. Quando me levantei mais tarde naquele dia, nada aconteceu. (…) Anos depois, escrevendo ‘The Finkelstein 5’, a história que agora abre meu primeiro livro, ‘Friday Black’, tentei traduzir as maneiras pelas quais o sistema de justiça costuma ser uma piada cruel para os negros americanos. Eu queria expressar o sentimento de sempre ser visto como uma ameaça por muitos”.
Em texto publicado pela The Paris Review, o escritor norte-americano Nana Kwame Adjei-Brenyah explicou assim a gênese do conto que inicia “Friday Black”. Travyon Martin é o nome do jovem afro-americano de 17 anos assassinado em 2012 pelo vigilante voluntário George Zimmerman, que fazia uma patrulha no bairro armado. O assassinato de Martin provocou uma onda de protestos em várias cidades que culminou no movimento Black Lives Matter. Mas Zimmerman foi absolvido.
No texto, que responde à pergunta-provocação “Por que você escreve histórias políticas”, Adjei-Brenyah retoma não apenas as motivações mais óbvias de sua obra literária, mas de alguma forma esboça ali a urgência (ainda) da ficção de origem política para falar de raça nos Estados Unidos.
“Eu tento ao máximo seguir os exemplos de escritores como Toni Morrison, Alice Walker e George Saunders, que escrevem com o coração e ainda são capazes de lidar diretamente com os problemas do mundo”, afirma o escritor. “Escrevo histórias políticas porque é isso que sai quando escrevo. Porque para mim escrever é uma mediação, um cultivo de poder. Se devo ter algum poder neste mundo, espero que possa ser usado para ajudar minha irmã ou meu irmão ou a mim mesmo a viver menos sobrecarregado pelo peso esmagador da opressão”.
Se os 12 contos de “Friday Black”, publicados quando seu autor tinha 26 anos foram, portanto, escritos sob esse impacto político evidente, também revelam em Adjei-Brenyah um autor imaginativo, que lida com elementos da ficção científica com mestria e, ao mesmo tempo, rigoroso na amarração narrativa.O livro foi saudado pelo New York Times como “uma estreia inacreditável, que anuncia uma nova e necessária voz americana”.
Nascido em 1991, Adjei-Brenyah cresceu no Queens, um dos bairros de maciça presença negra, berço de astros do hip hop como Run-DMC, A Tribe Called Quest e LL Cool J, da cidade de Nova York. Na Universidade de Syracuse, foi aluno de George Saunders, considerado um mestre do conto.
O recurso da ficção antecipatória, que tem sido usado por diversos autores jovens, pouco ou nada se assemelha aos escritores clássicos do gênero — ou melhor, pelo menos a grande parte dos autores homens como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke ou Frank Herbert, em geral tão fascinados por traquitanas tecnológicas, naves espaciais e inteligência artificial que esqueciam dos homens por trás das máquinas. Os futuros violentos como exacerbação de tendências presentes já ruins de Adjei-Brenyah filiam-se muito mais à tradição das escritoras mulheres, como Ursula Le Guinn e, sobretudo, Octavia Butler.
Quem se aventurar pelos contos de Adjei-Brenyah vai encontrar sociedades segregadas, invisibilidades revoltosas e, sobretudo, alertas sombrios de uma escalada na direção do absurdo. Que a juventude de seu autor também não engane. Sua habilidade ao lidar com elementos controversos como o nonsense e o grotesco demonstra que sua estréia tão festejada — “Friday Black”, além de críticas elogiosas quando de seu lançamento nos EUA, recebeu o prêmio da National Book Foundation para autores abaixo dos 35 anos e o PEN/Jean Stein Book — já mostram um escritor no domínio de suas ferramentas. A tradução de Caetano Galindo merece elogio à parte, dado que a fluência do texto em português não tropeça na prosa intrincada de Adjei-Brenyah, cheia de referências da cultura pop e que navega o terreno do nonsense. É de se esperar que a editora anime a publicar seu segundo livro e primeiro romance “Chain Gang All Stars”.