À frente da Secretaria de Políticas Digitais, órgão da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o cientista político afirma que o debate em torno da conduta das grandes corporações de tecnologia precisa ser enfrentado agora. Essas grandes empresas estão em confronto aberto com governos em todo o mundo para se manterem à margem da lei

As redes sociais se transformaram em um dos negócios mais lucrativos do planeta. Ao mesmo tempo em que oferecem entretenimento audiovisual dos mais variados tipos e assuntos aos usuários, também acumulam milhões de dados sobre o comportamento e o consumo de informação das pessoas que utilizam suas plataformas. Essa captura e retenção de dados pode ocorrer até mesmo quando o indivíduo não está utilizando qualquer uma das redes especificamente.

Nem as sociedades nem os governos e muito menos as legislações dos países estavam preparadas para o surgimento das plataformas de comunicação instantânea. Agora, quando as grandes empresas de comunicação já estão altamente disseminadas pelo mundo e se transformaram em fonte de renda de milhões de pessoas, governos do mundo todo tentam organizar ações e leis para tentar diminuir a potência de propagação de discursos de ódio e desinformação sobre os mais variados temas.

Secretário de Políticas Digitais, João Brant aponta que a segmentação automatizada é tão forte nessas plataformas que existem hoje verdadeiras “realidades paralelas”. À frente do órgão da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2018), diz que as redes sociais estão gerando um isolamento cada vez maior dos internautas.

Nesta entrevista à Focus Brasil, João Brant também fala sobre a importância de o país ter feito uma solicitação diante das Nações Unidas para que a comunidade internacional promova o debate sobre a regulamentação global para a operação das chamadas big techs. Mestre em regulação e políticas de comunicação pela London School of Economics (2006), ele lembra que as corporações grandes como Meta, proprietária do Facebook e Instagram, e o Twitter, têm enfrentado de maneira desabrida governos locais e que a união de esforços pode ajudar no controle. A seguir, leia a íntegra da entrevista:

Focus Brasil — O governo brasileiro pediu na ONU que a comunidade internacional reflita sobre a necessidade de uma regulamentação global das redes sociais. Por que é importante que essa regulação seja global?

João Brant — Acho que tem dois aspectos relevantes aí. O primeiro é entender que as redes são globais e boa parte das suas regras é global. Elas buscam ter regras gerais para aplicação dos seus termos de serviço. Então, isso faz com que o desafio de enfrentar os efeitos negativos que são criados por elas ganhe mais força se for também feito de forma global. A segunda coisa, acho que tem a ver com uma tensão política inevitável pelo tamanho dessas empresas e pela força econômica delas. A gente viu, por exemplo, na Austrália, o Facebook brigar com o governo e com o Rupert Murdoch ao mesmo tempo e trabalhar em formas de chantagem, retirando conteúdo jornalístico da plataforma, inclusive de pequenas cidades, pequenos jornais do interior da Austrália.

A gente já viu em outros países as big techs demonstrando sua força ao tentar suspender determinadas características do serviço por reação a ações de regulação. Então, ao trabalhar num plano internacional, o Brasil ganha mais força política nessa agenda. E o terceiro aspecto que não tem a ver com o fato de necessariamente o esforço regulatório ser global, que é a gente intercambiar experiências com outros países, porque uma parte desse esforço é feita em âmbito doméstico, necessariamente. E aí, nesse sentido, trocar informações sobre o que tem funcionado e o que não tem é um elemento muito relevante. Nós já tivemos oportunidade, nessa viagem à França, de fazer várias reuniões bilaterais com o governo francês, que tem uma leitura muito parecida do problema com a nossa.

— Já existe uma perspectiva de quais são os mecanismos possíveis a serem adotados para tentar regulamentar ou criar regras que façam com que redes sociais não sejam esse palco de absurdos?

— De maneira geral, acho que há pelo menos três grandes linhas de esforços. A primeira é discutir regime de responsabilidade e deveres associados, ou seja, em que medida as plataformas devem ou não ser responsáveis por conteúdos ilegais ou por conteúdos nocivos e quais os deveres, qual papel de cuidado, por exemplo, devem ter na moderação desse conteúdo. Então, se eu viro e falo “você não é responsável por cada conteúdo que tem na sua rede, mas você é responsável por garantir e fazer um esforço ativo antidesinformação”, então, essa ideia de um dever de cuidado vem junto com a discussão do regime de responsabilidade como um dos elementos estruturantes.

Um segundo bloco de questões tem a ver com tentar reverter o que a gente chama de externalidades negativas do modelo atual, que é baseado na busca do engajamento a todo custo. As plataformas têm como principal indicador o engajamento do usuário, ou seja, tempo e nível de interação dele com os conteúdos e postagens.

Precisamos entender que se levar isso a um looping permanente, as regras desse ambiente informacional passam a ser guiadas não pelo interesse público, não por pluralismo, diversidade, confiabilidade da informação, mas pela busca incessante de engajamento. Então, precisamos buscar reverter um pouco esses efeitos. A Europa tem apontado caminhos para isso, por exemplo, em relação ao que a gente chama de avaliação de risco sistêmico e de ações derivadas dessa avaliação de risco. [A empresa] é obrigada a rever anualmente os seus sistemas para ver se continuam entregando conteúdo problemático e tomar ações para reverter esses problemas. Isso, por exemplo, poderia afetar os sistemas de recomendação, algoritmos e fazer com que se revertesse um pouco esses efeitos negativos.

O terceiro ponto são ações efetivas de moderação de conteúdo. Passamos à discussão do que você pode fazer para reverter os efeitos, mas vai ter conteúdo ilegal e vai ter conteúdo desinformativo e precisamos ter ações efetivas de, no caso de conteúdos ilegais ou no caso de conteúdos nocivos, combinar mecanismos de ação da Justiça com mecanismos de corregulação. Ou seja, regras que definam publicamente e imponham normas às plataformas. As empresas têm que seguir e o poder público supervisiona. E fazer com que, então, tenhamos celeridade para lidar com conteúdo ilegal ou nocivo.

Eu faço essa diferenciação porque uma parte, por exemplo, da desinformação, das fake news não é ilegal necessariamente, mas afeta o público, é nociva, é problemática, especialmente em grandes volumes. Então, é preciso ações para reverter isso. Acho que esses são os principais blocos das questões. Uma discussão mais geral de responsabilidade e deveres de cuidado, uma questão sobre como reverter as externalidades negativas do modelo de negócio. E uma terceira relativa à moderação de conteúdo.

— A gente tem estado muito preocupado nos últimos tempos com a monetização dos absurdos, dos discursos de ódio porque esse é um sistema que se retroalimenta. Mas existe outra preocupação evidente que é sobre os dados dos usuários. Grande parte do negócio dessas big techs são os dados que fornecemos gratuitamente. Qual é a preocupação nesse sentido, sobre a privacidade dos usuários das plataformas?

— Sim. Já há a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). É preciso uma fiscalização rigorosa em relação ao tratamento desses dados. Mas, na prática, o que a gente vê é a possibilidade delas [as empresas] irem expandindo o uso desses dados para outros usos diferentes do que o usuário autorizou. Essa discussão sobre o consentimento é muito relevante no âmbito da proteção de dados. E precisa ser observada para que essas plataformas não expandam o uso de tais dados além do que obtiveram no consentimento do usuário. Outro aspecto relevante nisso é sobre o perfilamento. A gente tem que tentar impor limites ao perfilamento porque ele é um dos problemas ou uma das razões do que a gente tem de hipersegmentação do debate público. A hora que você olha para o debate público, hoje hiperfragmentado, em que temos verdadeiras realidades paralelas, isso tem a ver com o fato das big techs quererem entregar conteúdo cada vez mais parecido com o que você já consome. E isso vai gerando um isolamento cada vez maior das pessoas nesses mundos que hoje, de fato, compõem realidades paralelas.

Então, eu diria que a ideia de que você leva à última potência o perfilamento do usuário para fornecer a ele informações mais parecidas com as que ele já consome, é parte do problema. Precisamos olhar para isso com atenção. E, por último, a questão dos dados se torna mais grave quando trata-se, por exemplo, do perfilamento de crianças e adolescentes. A União Europeia proibiu a publicidade direcionada e segmentada a crianças e adolescentes. Acho que a gente deveria trabalhar nessa mesma direção.

— Mudando um pouco de eixo, observamos na transição o desmonte que o Bolsonaro e o bolsonarismo fizeram na estrutura do Estado. Ao assumir a Secom, que é um órgão importante, que inclusive teve suas funções pervertidas pelo “bolso-olavismo” numa atitude completamente iliberal e antirepublicana, encontrou-se uma terra arrasada?

— Encontramos. E acho que por uma combinação de dois motivos. O primeiro é a saída da Secom da Presidência. A ida para o Ministério das Comunicações tinha gerado uma confusão de papéis e de estrutura, de um jeito que, no momento em que se  reverte esse movimento, trazendo de volta a Secom para a Presidência, isso gerou muitas fraturas. Não são só fraturas. Não  se consegue recuperar o que a Secom era no cenário anterior. A segunda coisa é que a Secretaria de Comunicação não tinha contrato para questões básicas. Por exemplo, um contrato da própria Secom para ações digitais, incluindo todas as atividades necessárias para avançar nas ações digitais. Como operavam com estruturas paralelas, o que a gente encontrou ali foi uma estrutura oficial enfraquecida.

O que o ministro [Paulo] Pimenta determinou de início foi justamente trabalhar na estruturação da Secom para que ela tenha condição de responder de forma robusta aos desafios do tempo atual. Não adianta pensarmos na Secom de 2010 e tentarmos reproduzir aquele modelo. A realidade do ambiente informacional é outra. Então, precisamos ter uma Secom moderna e arejada, o que não tem como ser feito de uma hora para a outra no serviço público. É o desafio que o ministro trouxe para o dia a dia e nós estamos buscando implementar.

— A Secretaria de Políticas Digitais não existia. Qual vai ser a função dela, qual vai ser o funcionamento?

— Olha, a Secretaria de Políticas Digitais de fato é uma secretaria nova e foi pensada justamente como ambiente para organizar a ação do Estado brasileiro, do governo brasileiro, nos temas de promoção de políticas públicas e regulação do ambiente digital naquilo que se refere à comunicação. Basicamente, estamos falando o seguinte: temos que buscar definir regramentos e políticas para proteção e promoção da democracia e para a proteção e promoção de direitos na rede, no ambiente digital. Então, a secretaria nasce com essa missão e isso passa pelas diferentes estratégias de fortalecimento de organização dessas políticas digitais na comunicação, por exemplo, fortalecer a sustentabilidade do jornalismo com pluralismo e diversidade, garantir políticas de educação midiática, garantir mecanismos de proteção a direitos individuais e coletivos no ambiente digital. Tudo isso está nas competências da secretaria e é o que a gente vem trabalhando.

— Lula e os governos do PT foram e são muito atacados por fake news na rede, mentiras… O campo progressista fica muito abalado porque acha que demoram a responder. Do ponto de vista institucional, a Secom está se preparando para fazer essa cruzada? Claro que não fará sozinha, existem apoiadores do governo nas redes, mas que precisam ser alimentadas de fatos concretos, de realizações para poder divulgar. A estruturação que estão fazendo visa ampliar essa interlocução?

— Sem dúvida. Essa é uma prioridade do ministro [Paulo] Pimenta. Eu diria que o desafio para isso é grande e a Secom deve fazer isso em diálogo e articulação com outros atores. É preciso ter clareza de qual é o papel do governo na reação à desinformação. Eu acho que o governo tem um papel importante além de promover a comunicação sobre as ações do governo Lula, mas também de responder a desinformação sobre políticas públicas e sobre ações de governo e sobre os atores políticos, presidente, ministros, atores relativos ao governo. Então, temos clareza de que a Secom tem um papel central de fornecer informações corretas de forma célere, rápida e fazendo chegar a todos os atores que têm condição de ajudar a reverberar. Tem uma parte das ações de enfrentamento da desinformação que precisam ser assumidas pelo PT e pelos partidos da base porque não faz sentido que o governo entre numa disputa política naquilo que é próprio dos partidos.

Mas acho que a Secom tem, sim, um papel central. E o grande desafio é como partir de uma Secom desmontada e torná-la apta e forte o suficiente para enfrentar o problema no volume que ele tem. Logo depois do 8 de janeiro, a gente já via cobranças à ação da Secom num momento em que a secretaria sequer tinha uma pessoa nomeada para isso. As nomeações são um processo lento no início de governo. Então, não adianta achar que da noite para o dia a Secom vai ser o centro de inteligência e de estruturação dessa ação. Mas o ministro [Paulo] Pimenta tem priorizado essa dimensão. Isso está no escopo de várias das secretarias. É uma combinação da ação de várias secretarias dentro da Secom e acho que certamente nós, enfim, num prazo razoável, o governo tem toda a condição de assumir esse lugar central que a própria secretaria tem no enfrentamento à desinformação sobre ações de governo e sobre os agentes públicos.

— Existem propostas de políticas públicas de educação midiática. Você pode adiantar um pouco sobre como é que devem ser essas políticas?

— Estamos para fechar o plano inicial sobre educação midiática, mas diria que ele tem quatro grandes frentes. Uma é justamente a parceria com outros ministérios, em especial o MEC. O Ministério da Educação tem capacidade de desenhar e implementar uma política capilar de educação midiática e vamos trabalhar com eles nisso, no desenho, na formulação, na implantação e depois no acompanhamento dessa política. Também vem aí a linha de trabalhar com outros ministérios, especialmente aqueles onde a questão da desinformação ou do discurso de ódio são mais relevantes. Eu destacaria as pastas de Saúde e dos Direitos Humanos como dois parceiros fundamentais porque a desinformação sobre saúde tem sido muito significativa e problemática e o Ministério de Direitos Humanos tem buscado justamente enfrentar o problema do discurso de ódio e do ataque. E acho que vem junto com eles as questões dos ministérios das Mulheres e de Igualdade Racial.

Outra linha de educação midiática é trabalhar em parceria com a sociedade civil para a implementação de programas e projetos com “grupos públicos de interesse”, vamos chamar assim. Vamos pensar em associações nacionais de catadores, nas centrais de trabalhadores, nas grandes associações e federações que reúnam públicos que possam ter interesse em ações de educação midiática, em oficinas, em ação digital. Acho que entra aí uma questão de parceria com a sociedade civil, quem produz conteúdo sobre isso.

O terceiro ponto é uso das redes tanto da Secom quanto da EBC para produzir conteúdo e distribuir conteúdo sobre isso. A gente tem toda a condição de avançar nisso. A EBC tem interesse, a diretora Antônia Pelegrino já anunciou o interesse de avançar nessa agenda. E nós estamos em diálogo com o presidente Hélio Doyle sobre isso. Um quarto ponto é a parceria e a distribuição de conteúdo, enfim, com atores das redes sociais, com influenciadores, tentar trabalhar em diálogo com gente que já tem rede, que tem essa expectativa de trabalhar com educação midiática e que a gente tem condição de produzir, distribuir material juntos, tentar levantar uma lógica meio que de campanhas, criar uma onda de educação midiática pensando na formação de um público que não é o público, digamos assim, em idade escolar, mas que é usuário da internet e que cai em fake news, que no fundo tem interesse e precisa receber conteúdo sobre isso.

— Você acha que a gente pode ter expectativa em melhoria substancial na TV pública?

— Acho que o que o Hélio Doyle, como presidente da EBC, tem anunciado é a ideia de pensar a EBC com a grandeza que ela merece, com a separação adequada entre comunicação pública e governamental, mas priorizando as duas coisas. Quer dizer, a gente não pode ter uma em detrimento de outra. Precisamos fazer com que o governo tenha uma comunicação potente, pujante e que, ao mesmo tempo, haja uma programação mais ampla de interesse público também potente, sendo veiculada. É claro que não nos interessa uma combinação em que a gente passa do programa infantil direto para o ato no Palácio do Planalto, porque isso não faz sentido até do ponto de vista de programação. Mas nos interessa que o público brasileiro esteja bem informado sobre as ações de governo, tenha condição de entender o que o governo está fazendo e a EBC sem dúvida tem um papel relevante nisso. •

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