Depois da pandemia da covid, do reacionarismo dos conservadores patriotas, o Brasil da alegria, da música, da folia e de Lula está de volta às ruas do país. É hora de festejar e brindar à democracia e à cultura popular do país

O Brasil do carnaval, da alegria, de Lula, da música popular e da democracia está de volta. Depois de uma parada que durou quase três anos por conta da pandemia e do desgoverno de Jair Bolsonaro, chegou a hora de retomar a festa do Momo e brindar a volta da democracia e da esperança. Milhões de brasileiros e turistas já caíram na farra na última  semana embalados pela folia que tem tudo para tornar a festa em 2023 festa inesquecível.

Em Recife, ergueu-se, imponente, um Galo da Madrugada enorme e decorado com motivos africanos. Em Salvador, atrás do trio de Ivete Sangalo via-se uma fileira de gente e vips instagramáveis. Blocos de todos os tamanhos tomaram ruas de bairros e do centro do Rio de Janeiro. E, em São Paulo, shows enormes de artistas da MPB deram a senha: começou o Carnaval, o primeiro (quase) sem pandemia e com democracia em estado melhor do que nos últimos quatro anos.

Foram dois anos nos quais as festas, shows, saídas de blocos, cordões, trios elétricos, fanfarras, bandas, afoxés e etc. foram suspensos devido às restrições sanitárias necessárias para conter a pandemia de coronavírus. Antes ainda, a partir de 2019, quando a agenda conservadora dos chamados “costumes” do bolsonarismo imprimiu um certo constrangimento moral, mesmo que apenas de fachada, aos festejos do Carnaval, já havia muito pouco a comemorar, extravasar nas ruas nessa data móvel de verão.

Quem não se lembra dos posts à base de fake news, exagero e horror ao diferente da tropa de choque do bolsonarismo? Preconizando uma festa “sadia” — ou, melhor dizendo, sanitizada de acordo com uma visão muito estreita das sexualidades e da capacidade subversiva do povo brasileiro —, o conservadorismo procurava impor, na marra, suas pautas retrógradas e racistas, homofóbicas, anti-feministas como que para encobrir as fantasias, caricaturas e manifestações de protesto que também compareceram aos Carnavais de 2019 e 2020.

Feito de uma combinação caótica de espetáculo midiático e agremiações espontâneas, a tradição do Carnaval brasileiro como que foi interrompida ou, na melhor das hipóteses, bastante atrapalhada por essa combinação nefasta de situação política desfavorável. E, claro, a doença que deixou o povo brasileiro alarmado, de luto e exausto por tanto tempo. Neste ano, no entanto, com os ventos de ânimo e de esperança que vieram da derrota do fascismo nas urnas, em outubro de 2022, a alegria, mais uma vez, voltou a circular nas ruas.

Para além da importância cultural, os vários carnavais espalhados pelo Brasil também são alavancas para movimentar as economias locais. Estimativas do Ministério do Turismo apontam que o Carnaval de 2023 deve atrair 46 milhões de pessoas e injetar cerca de R$ 8,2 bilhões na economia nacional.

Esse gigantismo econômico da maior festa popular do Brasil se explica pelos seus bastidores: milhares de pessoas estão envolvidas nas atividades relacionadas à produção de shows, confecção de fantasias, adereços e carros alegóricos. E, claro, ao consumo de alimentos e bebidas. 

Muito à brasileira, também criou uma clivagem entre os bailes de carnaval “oficiais”, que têm patrocínio de grandes marcas e os não-oficiais, criados por associações de bairros, de movimentos sociais, de sindicatos, de comunidades de vizinhos e amigos. Não à toa, nos últimos anos o poder público acordou para a necessidade de mediar esses conflitos, sobretudo nas grandes cidades brasileiras, no sentido de garantir a diversidade na ocupação do espaço público. 

Afinal, tudo acaba ou começa no Carnaval?

O dito popular afirma que, no Brasil, nada acontece no país antes da Quarta-Feira de Cinzas, data oficial de encerramento do Carnaval. E, o pior, nunca se sabe quando é isso, uma vez que trata-se de uma data móvel, definida de acordo com o calendário religioso da Igreja Católica. O final do Carnaval inicia um período de 40 dias que antecede Semana Santa. Curiosamente, a festa de origem pagã é também um campo de disputa religiosa.

“O Brasil não inventou o Carnaval, mas o povo do Brasil se aconchegou de tal forma à folia, dando sentidos encruzilhados ao Carnaval, que ocorreu o inverso”, explica o historiador e ensaísta Luiz Antônio Simas. No Twitter, ele lembra que foi o Carnaval que inventou um país possível e original. “Isso às margens e nas frestas do projeto de horror que nos constituiu”, comentou. Ele interpreta a festa do Carnaval brasileiro um tanto à revelia do que os estereótipos costumam fazer, como a invenção brasileira de um espetáculo feito de samba e sensualidade, onde a alegria e a animação, magicamente, zerassem as asperezas do cotidiano, as desigualdades agudas e tudo se resolvesse numa confraternização efêmera, mas intensa.

Festa popular que pára o país por um período que varia dos quatro dias oficiais a duas semanas, espetáculo onde os protagonistas são também o público, o carnaval brasileiro é um fenômeno talvez único no mundo. Desenvolveu gêneros musicais próprios e muito característicos, além de vestuário, coreografias e narrativas.

Em cada uma das regiões do país, faz interfaces com outras formas de folias na rua. É pagã, mas homenageia as religiosidades sincréticas espalhadas pelo país, especialmente aquelas de origem africana e negra. No disfarce do Carnaval, vale tudo, inclusive subverter papéis tradicionais e chacoalhar as caretices.

Em Salvador, de onde vem um Carnaval forte, quase que inescapável, com sua cacofonia musical toda especial onde entra do afoxé cantado em iorubá aos trios elétricos e eletrificados das grandes estrelas do axé, se fala de “brincar o Carnaval”.

Olinda e Recife, cidades irmãs e separadas por poucos quilômetros e pelos rios, pontes de overdrives dos quais falava Chico Science, tem cada uma um Carnaval diferente, que no entanto são semelhantes em sua intensidade.

O Rio de Janeiro, berço de muitas formas específicas de samba para a festa carnavalesca, tem o grande espetáculo do desfile das escolas de samba na “avenida” metafórica do Sambódromo e blocos, cordões e bandas espalhadas pela cidade. Até na insuspeita São Paulo, cidade que se acreditou por muitos anos refratária ao Carnaval, os blocos, shows e festas tomam conta das ruas.

Depois da suspensão dos dois anos sem poder aglomerar pelos cuidados sanitários inspirados pela pandemia e o clima geral de derrota causado pela conjuntura política, o que se pode ver pelas ruas, parques, praças e becos na semana que antecede os dias oficiais do Carnaval (de sábado, 18, a terça, 21 de fevereiro) foi a volta de uma festa popular com a intensidade das alegrias represadas.

Na saída de um dos maiores blocos de São Paulo, o Acadêmicos do Baixo Augusta, ouviu-se muito “sem anistia” (para Bolsonaro e sua trupe golpista) e “Lulalá”, além de fantasias e cartazes que apontavam qual lado do espectro político pertencia a maioria dos foliões. Neste ano, o Baixo Augusta contou com o auxílio luxuoso de um dos grupos mais significativos do Carnaval de Salvador, o Olodum, e celebridades paulistana da área da cultura, como a rainha do bloco desde suas primeiras saídas, a atriz Alessandra Negrini e escritor Marcelo Rubens Paiva.

No mote de Luiz Antôni Simas, autor de livros como o excepcional “A Alma Encantadora das Ruas”, o Carnaval de 2023 representa uma virada de expectativa de morte múltipla que rondou o Brasil nos últimos quatro anos.

Mortes muito concretas pela pandemia do novo coronavírus, mortes lentas pelo abandono e pobreza devido aos desastres da política econômica da dupla Jair e Paulo Guedes, mortes pela violência, pelo feminicídio, pelo genocídio programado e pelo ecocídio. E pelas desgraceiras estruturais que nos constituem, mas que foram amplificadas pelo conservadorismo e pelas agendas regresssivas.

Outras mortes, simbólicas e não menos importantes, como a (quase) morte da democracia da esperança de futuro, que a situação política do desgoverno da extrema-direita que também nos deixaram acabrunhados. 

No entanto, o povo brasileiro resistiu como pôde, deu o troco e, neste primeiro carnaval em que se respira melhor, já voltou a encher cidades do país com o que o compositor Chico César (leia entrevista nesta edição) com suas manifestações de “explosão de alegria”, de turvação dos sentidos e, aí sim, de exercício pleno de liberdade. A julgar pelo pré-Carnaval das grandes, nos próximos dias, os oficiais mesmo do Carnaval, a alegria ancorará definitivamente nas muitas passarelas. Evoé! •

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