As vivandeiras dos quartéis
Enquanto a equipe de transição segue trabalhando, inclusive nos preparativos para a posse de Lula, os golpistas pedem a volta dos militares e pregam violência como arma política. Entre os radicais, artistas como Cássia Kis e Victor Fasano
O ano no era 2011. Na ocasião, a presidenta Dilma Rousseff iniciaria uma série de viagens pelo país. A primeira delas seria até Manaus (AM), uma solenidade para lançar o Programa de Fortalecimento da Rede de Prevenção, Diagnóstico e Tratamento do Câncer de Mama, do governo federal. Enquanto discursava e era a aplaudida pelo público, Dilma dividia o palco com algumas mulheres, entre elas Cássia Kiss e Daniela Mercury, que lá estavam em apoio à iniciativa e em campanha por mais políticas públicas para as mulheres no país.
Por ironia do destino, hoje, uma década depois, as duas artistas estão em posição de destaque de movimentos políticos que se deslocam no país, de maneira antagônica. Enquanto Mercury foi uma das vozes da campanha de Lula e chegou a ter nome ventilado para ocupar o Ministério da Cultura, Cássia Kis mostra a que veio com declarações homofóbicas e golpismo. Quando não está gravando a novela “Travessia”, a atriz se ajoelha em frente ao Quartel do Exército no Rio de Janeiro, debaixo de chuva, para pedir um golpe militar e impedir “a volta do comunismo”.
Encerradas as eleições, um movimento insuflado por radicais, pela família Bolsonaro e alimentado jornalistas da extrema-direita, milhares de pessoas histéricas se prostaram em acampamentos ao redor de bases militares ao redor do país – das mais remotas cidades do interior às maiores cidades do país, incluindo um enorme assentamento em frente ao QG do Exército em Brasília, no Distrito Federal.
Os atos, criminosos e inconstitucionais, incitam clamores antidemocráticos, com desordem e ameaça de golpe, ganhando proporções e adesões preocupantes, pelo alcance que ampliam. Ainda que alguns vejam o movimento humor, até por ter virado piada ao invocar a intervenção de ETs, a situação é grave. Ainda que Bolsonaro tente se afastar dos atos golpistas e não responda ao clamor de seus seguidores, o movimento segue reunindo asseclas radicais e figuras midiáticas do bolsonarismo.
Além de Cássia Kis, que une ao movimento seu radicalismo religioso ligado ao grupo fundamentalista católico Centro Dom Bosco, nomes como Victor Fasano, Mario Gomes e Maurício Mattar se somam às outras vivandeiras de quartel, que incluem em suas reivindicações uma infundada anulação das eleições, a injustificada prisão de Lula e a intervenção das Forças Armadas para tomar o poder em Brasília. Em meias palavras, um Golpe de Estado em nome de Bolsonaro.
Quando se defende uma intervenção e se pede um golpe por não reconhecer o resultado das urnas, é o mesmo que clamar por uma ditadura militar. O último regime de exceção durou 25 anos e deixou um rastro de sangue, com perseguição, censura, tortura e assassinatos de jornalistas, intelectuais, artistas e grupos que o combatiam. É isso o que pedem, a volta de um Estado truculento, que atenda às elites e elimine opositores.
Quando jornalistas, influenciadores digitais e artistas emprestam sua voz e sua imagem a esse movimento, subscrevem à tentativa de Golpe de Estado que bolsonaristas tentam a todo custo, desde o dia 30 de novembro, quando Bolsonaro foi derrotado fragorosamente nas urnas por Lula.
Não é preciso se sujar nos acampamentos golpistas para insuflá-los. Para isso há centenas de personalidades famosas, como Regina Duarte, Luiza Tomé, Nelson Piquet, o ex-jogador Robinho e Antônia Fontenelle. Todos, diariamente, pedem por um golpe no país e anulação das eleições, do conforto de seus lares, a exemplo do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro. O deputado foi para o Catar com a esposa, enquanto os seguidores de sua família enfrentam chuva e dormem na rua na porta de quartéis e em rodovias do país, sempre no aguardo de “72h” até o dia do golpe.
Seja nas ruas, nas rodovias, causando tumulto e prejuízos financeiros, prejudicando a vida de demais cidadãos, ou pelas redes sociais, a violência e o discurso de ódio que se dissemina são assustadores. As manifestações dão ao grupo ares de seita, com mentes sequestradas pelo bolsonarismo. Em grupos do Telegram, usuários pedem a prisão do presidente eleito, alegam fraude nas eleições, repetem o mantra “Lula não sobe a rampa”, com referência a impedimento da posse do presidente eleito com e aguardam, diariamente, um sinal positivo de Jair Bolsonaro, que nunca dá às caras, ou de algum general, de que haverá um Golpe Militar pelo qual tanto clamam.
Todos respondem ao âmago do movimento ao qual pertencem, que atendem ao chamado de Bolsonaro de um Golpe Militar. Em 2018, o então candidato defendeu “fuzilar a petralhada” durante discurso, empunhando um fuzil, do alto de um trio elétrico no Acre, em ato de campanha.
Na sessão que votava o impeachment de Dilma Rousseff, ele dedicou o voto a Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador. Em 1999, já dizia que “o voto não vai mudar nada no Brasil” e que “só uma guerra civil, matando uns 30 mil”, daria jeito no país.
Nos maiores acampamentos, a fartura golpista impressiona. Caminhonetes chegam carregadas de cerveja, alimentos e carne, muita carne para churrascos. Em alguns lugares, como em Brasília, o clima é de festa entre aqueles que não aceitam a derrota e questionam o resultado das urnas.
Relatórios enviados ao Supremo Tribunal Federal (STF) revelaram o perfil dos líderes e financiadores de manifestações e bloqueios antidemocráticos no Acre, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina. Majoritariamente, empresários do agronegócio, controladores de grandes empresas e transportadoras, com milhares de caminhões disponíveis para obstruir vias e dar volume aos atos.
Na última terça-feira, 6, a Polícia Federal prendeu o empresário Milton Baldin, que participava de uma manifestação antidemocrática em frente ao QG do Exército em Brasília. A decisão partiu do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, em razão de vídeos em que o empresário convoca atiradores para participar de uma manifestação contra Lula. Em outro momento, diz: “Essa bandeira (do Brasil) pode até ser vermelha, mas com meu próprio sangue”.
Também por decisão de Moraes, o aplicativo Telegram bloqueou grupos golpistas que organizavam atos antidemocráticos. Apesar de ainda existirem aos montes e de formarem os principais canais entre golpistas, após o silêncio e a reclusão de Bolsonaro, o Tribunal Superior Eleitoral se comprometeu em continuar monitorando as redes de comunicação para evitar que projetos antidemocráticos e golpistas sejam espalhados até a posse de Lula no dia 1º de janeiro de 2023.
Enquanto isso, na vida real, atento à violência golpista, que prega a perseguição de opositores, o governo de Transição atua constitucionalmente, buscando novos caminhos para por em prática o projeto de país eleito. E revela o legado de Bolsonaro: o desmonte do Estado e um rombo em dívidas e cortes no orçamento, com apagão administrativo em diversos setores, como saúde, educação e previdência social.
E a posse organiza diversas atrações artísticas, com a confirmação da vinda de chefes de Estado de todo o mundo. Lula já iniciou conversa e recebeu congratulações de países como China e Estados Unidos, mas os golpistas ainda atendem ao chamado bolsonarista, sempre à espera de um “sinal”, quando o que recebem do Planalto e das Forças Armadas é silêncio e resignação.
Com a aproximação da diplomação de Lula como presidente do Brasil , nesta segunda-feira, 12, às 14h, observam-se os sinais de desânimo na convicção dos manifestantes fieis ao ex-capitão. Lula subirá a rampa em festa no dia 1º de janeiro de 2023. E a ameaça do terrorismo político, que assusta os democratas ainda não se dissipou. •