A sociedade civil reage aos ataques do presidente e organiza manifestos em defesa das eleições e das urnas eletrônicas. Empresários, sindicalistas, advogados, intelectuais e artistas alertam para o respeito à Justiça Eleitoral. Isolado, Bolsonaro se vê largado pelo PIB e pela Faria Lima, mas não se emenda. E ironiza a reação do povo brasileiro: “Tão com medo de quê?”

 

O presidente Jair Bolsonaro vai entrar oficialmente na campanha eleitoral praticamente largado à própria sorte. Ainda que se mantenha com algo em torno de 30% da preferência dos votos, está em situação delicada. É rejeitado pela ampla maioria do povo, jovens, mulheres e negros. Ainda conta com a simpatia de setores da classe média, mas perdeu um apoio importante, entre os mais ricos — o topo da pirâmide social brasileira.

Num movimento inédito, Bolsonaro basicamente se colocou no isolamento político — interno e na comunidade internacional. Sua ofensiva contra as urnas eletrônicas, a cúpula do Judiciário e a Justiça Eleitoral, culminando com a patética reunião no Alvorada há duas semanas, quando chamou diplomatas para assistir seus ataques ao processo eleitoral, se mostrou um grande problema político.

A sociedade civil brasileira se aglutinou em torno da defesa da democracia, num momento poucas vezes na história recente da política nacional. Na terça-feira, 26, uma carta em defesa da democracia lançada por juristas e pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) se transformou numa muralha contra os arreganhos do presidente.

Em menos de três dias, ultrapassou a marca de 500 mil assinaturas. Entre os signatários do texto estão empresários,  artistas, intelectuais, diplomatas, líderes de movimentos sociais, entidades de classe como a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a Federação das Indústria do Estado de São Paulo, além das maiores organizações sindicais de trabalhadores do país, como a Central Única de Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical.

As 100 mil primeiras assinaturas foram atingidas em menos de 24 horas após a publicação do manifesto, inspirado em uma Carta pela Democracia de 1977, um texto de repúdio ao regime militar redigido pelo jurista Goffredo Silva Telles, e lido em  de agosto daquele ano diante de uma plateia de estudantes apinhados nas escadarias do Largo do São Francisco.

O texto atual é subscrito inclusive por alguns dos signatários daquele importante documento que funcionou como um tapa na cara da ditadura, sob o comando de Ernesto Geisel. Entre aqueles que firmaram a nova carta, estão os advogados Celso Mori, Fábio Konder Comparato, Flavio Bierrenbach, Jayme Cueva, José Afonso da Silva, José Carlos Arouca, José Carlos Dias e José Gregori, além de Luiz Eduardo Greenhalgh.

O novo manifesto tem o mesmo tom de repúdio da carta aos brasileiros escrita há 45 anos: “A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição: ‘Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição’”, diz um trecho da carta aos brasileiros, aludindo diretamente à confiabilidade no sistema de urnas eletrônicas.

Nada menos que 12 ex-ministros do Supremo Tribunal Federal também assinam o documento, incluindo Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim e Celso de Mello. O coletivo 342 Artes, encabeçado pela produtora Paula Lavigne, planeja a gravação de um vídeo com a leitura da carta gestada pela Faculdade de Direito da USP. Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Gal Costa aderiram ao movimento e assinaram o documento.

A repercussão foi imediata. E global. Na Inglaterra, o diário financeiro Financial Times, que é a mais importante publicação para investidores estrangeiros e o mercado financeiro internacional, estampou em manchete: Sociedade civil brasileira defende democracia contra ataques de Jair Bolsonaro. A agência Reuters também alardeou o outro manifesto, encabeçado pelo setor privado: Banqueiros e empresários dizem que democracia brasileira está em ‘grave perigo’.

Bolsonaro sentiu o impacto do movimento organizado da sociedade. No cercadinho do Palácio do Alvorada, tentou desdenhar: “Você pode ver esse negócio de carta aos brasileiros, democracia… Os banqueiros estão patrocinando. É o Pix, que eu dei na… Uma paulada neles… Os bancos digitais também, que nós facilitamos. Estamos acabando com o monopólio dos bancos. Eles estão perdendo poder. Carta pela democracia? Qual é a ameaça que eu estou oferecendo para a democracia?”

Apesar da blague, no comitê de campanha da reeleição, o movimento organizado de empresários, sindicalistas e juristas pegou a todos de surpresa. Ninguém imaginava uma reação tão ampla e, pior, com a adesão de importantes segmentos do meio empresarial. Praticamente, todo o PIB nacional deixou o ex-capitão do Exército isolado e sem pontes com a Faria Lima.

Bem-informado sobre os movimentos do centrão, o veterano jornalista Tales Faria anunciou no UOL: “A campanha do Bolsonaro está alarmadíssima com essa Carta aos Brasileiros”, disse. “Ela é um ponto de inflexão na campanha, pois mostrou que, se em 2018 a elite chegou a apoiar Bolsonaro, dessa vez não tem conversa. Ele agrediu a democracia e a elite brasileira largou o Bolsonaro”.

Na sexta-feira, Bolsonaro voltou ao tema, ao escrever um tuíte em que ironiza: “Por meio desta, manifesto que sou a favor da democracia”. Assinado: Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Federativa do Brasil. A graça não apagou a marca da impaciência da Casa Branca, agora sob domínio dos democratas.

Três dias antes, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, esteve na conferência de ministros da defesa dos países das Américas, realizada no Brasil. Além de louvar as instituições democráticas, foi claro no recado: “Tive a oportunidade de reafirmar o papel adequado da função do Exército na sociedade democrática. E isso significa controle civil firme sobre os militares”, explicou.

General aposentado escolhido pessoalmente por Joe Biden, Lloyd cobrou responsabilidade dos militares brasileiros, em declaração dada a jornalistas norte-americanos que acompanharam sua comitiva. “Gostaria apenas de ressaltar que é especialmente vital que os militares desempenhem seus papéis com responsabilidade durante as eleições”, disse, em declaração captada pela Reuters.

Os ministros da Defesa dos países da América assinam declaração pró-democracia, reafirmando compromisso ainda com a soberania nacional. Na mesma conferência, o ministro brasileiro jurou que as Forças Armadas estão enfileiradas na trincheira da legalidade. Era o que tinha a dizer.

“Da parte do Brasil, manifesto respeito à carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), e a Carta Democrática Americana, e seus valores, princípios e mecanismos”, disse o general Paulo Sérgio  Nogueira. E ainda reiterou outras declarações mansas. Um contraste com a ofensiva que lançou contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) há poucos meses.

O nível de desmoralização de Bolsonaro no exterior é gigante. Na quarta-feira, o Washington Post distribuiu um texto para seus assinantes chamando o presidente brasileiro de demagogo e traçando um paralelo entre ele e Donald Trump.

O artigo, assinado por Ishaan Tharoor, alerta: “O presidente já está convocando os apoiadores a saírem às ruas no dia 7 de setembro, dia nacional do Brasil. Nesse mesmo dia, no ano passado, houve cenas acaloradas quando multidões pró-Bolsonaro em Brasília tentaram passar pelas barreiras policiais e marchar em direção ao Supremo Tribunal, mas foram frustradas e dispersadas”.

“Parece que Bolsonaro pode terminar seu mandato de maneira semelhante a Trump”, aponta. “Por meses, ele mergulhou essencialmente na cartilha de Trump, colocando em dúvida a legitimidade do processo eleitoral do Brasil e, por extensão, sua democracia”. •

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