Durante 10 dias, o mundo se perguntou onde estavam o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira. A tragédia se confirma: os dois foram assassinados por estarem protegendo terras indígenas diante de um governo omisso e cúmplice do crime

 

Um crime horrendo, com requintes de crueldade. Depois de dez dias de idas e vindas, buscas incessantes e de autoridades brasileiras fazerem jogo de empurra para realizar a operação de resgate, a tragédia se confirmou. O indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados na beira de um rio, no coração do Vale do Javari, região na fronteira entre o Brasil e o Peru.

Um pescador confessou ter matado o repórter britânico e ex-funcionário da Funai. Na quarta-feira, 15, Amarildo Costa de Oliveira mostrou às autoridades onde havia escondido os corpos. A polícia encontrou os restos humanos enterrados a cerca de três quilômetros na floresta tropical e já identificou Phillips. Ambos foram mortos por denunciarem atividades ilegais em terras indígenas.

Amarildo, o Pelado, e o irmão, Oseney da Costa de Oliveira estão envolvidos diretamente no crime. A Polícia Federal continua a apurar o caso e o envolvimento de outras pessoas. Na sexta-feira, 17, a Polícia Federal afirmou em nota que as investigações indicam que não existem mandantes nem facções envolvidas e que os executores agiram sozinhos. 

O crime chocou o mundo e envergonha o Brasil. Dom e Bruno morreram por arma de fogo, foram queimados e depois esquartejados. Os requintes de tortura ainda estão para ser detalhados pelos investigadores que acompanham o caso.

A morte do repórter, que atuou como correspondente durante 15 anos de veículos como Washington Post, New York Times e The Guardian, e do indigenista, que vinha se dedicando à defesa dos índios há 12 anos, são mais um capítulo sombrio na história de violência contra  ativistas ambientais e aqueles que trabalham em defesa dos direitos dos povos indígenas.

“Esse desfecho trágico põe fim à angústia de não saber o paradeiro de Dom e Bruno”, disse Alessandra Sampaio, esposa de Dom Phillips, em comunicado distribuído à imprensa ainda na quarta-feira. “Hoje, também começamos nossa busca por Justiça.”

Dom Phillips dedicou grande parte de sua carreira a contar as histórias do conflito que vem devastando a floresta tropical, enquanto o Bruno Pereira passou os últimos anos tentando proteger as tribos e o meio ambiente. O repórter inglês, que tinha 57 anos, foi à reserva indígena do Vale do Javari para entrevistar equipes de patrulha que reprimiram a pesca e a caça ilegal. 

Bruno Pereira ajudou a criar as patrulhas em resposta à crescente ausência de presença do governo federal na área sob a gestão desastrosa do presidente Jair Bolsonaro. Dom Phillips estava trabalhando na elaboração de um livro durante a viagem para denunciar os crimes ambientais no Brasil. Os dois homens estavam indo para casa quando desapareceram.

Segundo a PF, testemunhas viram os irmãos Oliveira em um barco atrás de Dom e Bruno pouco antes de serem vistos pela última vez. O trabalho do indigenista com as patrulhas rendeu ameaças de pescadores e caçadores ilegais, inclusive de Amarildo da Costa de Oliveira, segundo a PF. A Univaja, uma associação de grupos indígenas que ajudou a organizar as patrulhas, disse que Amarildo também mostrou uma arma para um grupo que incluía Pereira e Phillips no dia anterior ao desaparecimento.

O caso ganhou grande repercussão internacional a ponto de, na quarta-feira, a ex-primeira Theresa May cobrar de Boris Johnson no parlamento inglês para que o governo britânico não medisse esforços e fizesse do caso do desaparecimento de Dom e Bruno “uma prioridade diplomática”. Os apelos não sensibilizaram o governo Bolsonaro.

Em nota divulgada à imprensa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que conhecia Dom Phillips, e o ex-governador Geraldo Alckmin lamentaram a morte trágica do jornalista e do indigenista brasileiro. “O mundo sabe que este crime está diretamente relacionado ao desmonte das políticas públicas de proteção aos povos indígenas. Está diretamente relacionado também ao incentivo à violência por parte do atual governo do país”, denunciam.

“O que se exige agora é uma rigorosa investigação do crime; que seus autores e mandantes sejam julgados. A democracia e o Brasil não toleram nem podem mais conviver com a violência, o ódio e o desprezo pelos valores da civilização”, continua o texto. “Bruno e Dom viverão em nossa memória e na esperança de um mundo melhor”.

Toda a mídia europeia e estadunidense tem destacado que a morte dos dois novos mártires do ambientalismo ocorreram porque o governo brasileiro tem feito vista grossa para atividades ilegais na Amazônia, como a pesca, a caça e a mineração, que aumentaram sob Bolsonaro. Seu governo tem “incentivado o desenvolvimento sem planejamento da Amazônia e cortou os orçamentos das agências encarregadas de protegê-la e fiscalizá-la, como a própria Funai, o Ibama e o ICMBio.

Na terça-feira, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)  apresentou denúncia no Tribunal Penal Internacional de Haia contra o governo brasileiro. A entidade faz novas denúncias  contra Bolsonaro, acusando-o de crime de genocídio, contra a humanidade por extermínio, perseguição e outros atos desunamos. O documento atualiza a denúncia feita em 2021, com fatos do período de janeiro a maio de 2022, incluindo a negligência nas buscas pelo indigenista Bruno Pereira e Dom Phillips, desaparecidos na Terra Indígena do Vale do Javari desde 5 de junho, e a barbárie no território Yanomami.

A APIB denunciou que a Funai, passou a implentar sob Bolsonaro uma política anti-indígena e criou medidas administrativas com o objetivo de desproteger os povos indígenas localizados em terras não homologadas, além de atos infra legais que facilitam o acesso de terceiros às terras, bem como a completa paralisação dos processos demarcatórios. Desde 2019, sob Bolsonaro, não houve nenhuma demarcação de terra indígena no país.

“O presidente ataca sistematicamente os povos indígenas brasileiros por meio da destruição intencional das instituições de proteção dos direitos indígenas e socioambientais, além de atacá-los por meio de discursos que têm feito segmentos da sociedade brasileira perceberem os povos indígenas como obstáculo à sua prosperidade”, afirma a APIB.

A entidade cita ainda as consequências do desmonte institucional como o recente desaparecimento do jornalista e do indigenista, o aumento da invasão e apropriação de terras indígenas por não indígenas, o desmatamento, o garimpo e a mineração, além do impacto desproporcional da pandemia de Covid-19 entre os povos originários.

A coordenadora do Setorial Nacional de Assuntos Indígenas do Partido dos Trabalhadores (PT), Tani Rose, ressalta a importância da manifestação da APIB e lamenta o descaso e omissão das instituições brasileiras como consequência da má gestão de Bolsonaro.

“Recorrer ao tribunal internacional tem sido a saída das organizações ao tratar do direito dos povos indígenas, dos ativistas, do direito da Amazônia, da terra e de todo o meio ambiente. Fica evidente que recorrer a órgãos internacionais quando o presidente da República e o presidente da Funai tentam em declarações transferir as próprias vítimas (Bruno e Dom Phillips) a responsabilidade pelos crimes hediondos que sofreram”. •

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