A crise sanitária não acabou, dizem especialistas. O fim do estado de emergência, decretado pelo Ministério da Saúde, expõe povo ao risco de novas variantes e pode criar “doença negligenciada” entre sequelados, especialmente os mais pobres

 

 

O governo Bolsonaro quer encerrar a pandemia de covid-19 da mesma maneira como fez desde o início: fingindo que não existe. Ou, na melhor das hipóteses, tratando a questão como se não fosse problema do governo. Por decreto, o Ministério da Saúde decidiu extinguir o Estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, que havia sido instalado há dois anos para enfrentar a doença.

Na prática, o decreto invalida centenas de normas que facilitam ações de governos estaduais e municipais. Agora, por exemplo, não há permissão para contratar pessoal e adquirir equipamentos e medicamentos sem as amarras burocráticas. As medidas podem atrasar em semanas ou meses decisões que deveriam ser tomadas de imediato.

Outro efeito do decreto é que a ideia de que a pandemia acabou. Ou que está sob controle definitivo. Isso vai aumentar a negligência das pessoas em relação a medidas de proteção e controle, como uso de máscaras em ambientes fechados ou evitar aglomerações. Enquanto isso, a cobertura vacinal de reforço continua baixa, atingindo apenas 39% da população.

Especialistas e pesquisadores da área de saúde condenam a decisão do governo Bolsonaro. A avaliação de todos – exceção a negacionistas em geral – é de que a pandemia não acabou e que a decisão do Palácio do Planalto coloca pelo menos dois perigos a rondar a população. Um deles, imprevisível, é de que novas variantes possam vir a trazer novos picos de infecção e o sistema de saúde não tenha rapidez e eficácia para responder.

O outro risco, perfeitamente previsível diante de experiências anteriores, é de que as sequelas da covid deixem de ser atendidas adequadamente pelo SUS, dando origem a uma geração que as carregará para sempre. É o que os especialistas chamam de “doença negligenciada”.

Pesquisador da Fiocruz, Daniel Villela alerta: “Temos que evitar que a covid tenha o status de doença negligenciada. Síndromes pós-covid e a chamada covid longa vão ficar invisíveis em populações mais vulneráveis”. Coordenador do programa de computação científica da Fiocruz, ele diz que, desmobilizado o sistema público de saúde após o fim do estado de emergência, populações mais pobres e moradoras de periferias deixarão de ser prioridade no tratamento das sequelas.

Villela cita o exemplo do zika vírus, que em 2016 atingiu diversos países. No Brasil, lembra, após o estado de emergência ter sido revogado naquele período, não foram criados serviços de atendimento a sequelas, e pessoas infectadas foram esquecidas. “Muitas famílias sofrem efeitos até hoje, especialmente crianças”, adverte.

Para o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, a decisão do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, é irresponsável por ignorar um perigo que já provou ser real, embora imprevisível. “Imaginem se o fim do estado de emergência tivesse sido decretado no final de 2021, quando tudo parecia estar voltando à normalidade”, aponta. “O que teria acontecido no começo deste ano, quando uma nova onda aumentou muito o número de infecções e mortes? Teria sido uma tragédia ainda maior”.

Para Pigatto, não há como ter certeza de que novas variantes avassaladoras não possam surgir. Aliás, nem para a Organização Mundial da Saúde (OMS), que decidiu manter o estado de emergência pandêmico.

“Não há parâmetros anteriores sobre a doença. Estamos descobrindo seus efeitos e comportamento agora. Por isso, nós temos que tomar decisões em consonância com os órgãos multilaterais”, reforça a professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Ethel Maciel. Ela diz que o Brasil deve avaliar de forma permanente a evolução da doença, o que implica investir em diagnóstico. Isso inclui vigilância genômica, feita em laboratórios para identificar mutações no vírus, testagem e rastreamento. “Estamos em uma fase interpandêmica, podem surgir novas variantes”, ressalta.

O fim do estado de emergência pode acabar por completo com o preparo das unidades de saúde para atender infectados ou sequelados. “É uma vergonha, o Brasil ainda não tem protocolos de atendimento sobre como reportar os casos, quais os medicamentos indicados, quais cuidados os trabalhadores da saúde devem ter”, acrescenta a professora. Ethel lembra que, se houve adoção de protocolos, foi apesar do governo federal. “Erramos muito por não termos coordenação nacional”.

Neste ponto, o fim do estado de emergência pode comprometer instrumentos que fizeram de alguns estados e municípios peças de resistência. Muitas decisões foram tomadas em oposição a Bolsonaro, que chegou a recorrer à Justiça para retirar poder de governadores e prefeitos no combate à pandemia.

Essa é a principal razão de os conselhos nacionais de secretários estaduais e municipais terem requerido 90 dias de adaptação ao fim do estado de emergência, avalia Fernando Pigatto. “Podem até recair em ilegalidade ao adotar procedimentos emergenciais”, explica o presidente do CNS.

Outra frente de resistência, como universidades e laboratórios públicos, corre risco de ficar ainda mais desassistida com o fim do estado de emergência. Investimentos em pesquisa e contratação de pessoal, assim como a autonomia frente aos governos, ficam mais distantes.

Na área de pesquisa, um dos desafios mais urgentes é desenvolver uma vacina que se antecipe a novas mutações do vírus. É o que o pesquisador Eduardo Hage Carmo, da Fiocruz Brasília, chama de vacina multivariante, ou pansarbecovírus. “Precisamos construir respostas preventivas, e não apenas reativas”, explica. Hage toma como exemplo as vacinas contra influenza desenvolvidas no país, que protegem a população antes mesmo do surgimento de surtos ou epidemias.

Só que as vacinas de influenza são fruto de outros tempos, em que existia investimento em pesquisas. Quando o governo do Brasil não se isolava da comunidade científica internacional. No caso da influenza, destaca o pesquisador, o país faz parte da rede de monitoramento internacional e compartilha conhecimento. A Fiocruz e o Butantan, diz Hage, conseguiram desenvolver produção local de vacinas de covid com boas doses de rebeldia frente ao governo, por fazerem parte dessa rede.

O fim do estado de emergência e a consequente desmobilização de recursos e pessoal trarão outro problema. Os procedimentos represados durante a pandemia — cirurgias eletivas e exames, por exemplo — vão desembarcar no SUS e ampliar a demanda. Por isso, a necessidade de retomar uma política de financiamento à altura dos desafios. “Que os recursos extraordinários criados na pandemia se tornem ordinários”, propõe o coordenador do Observatório da Covid-19 da Fiocruz, Carlos Machado. “Na minha vida profissional, aprendi que após uma grande tragédia, é preciso reconstruir o terreno em bases melhores do que as que existiam antes”. •

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