Série exibida pela Globoplay dá a versão definitiva para a morte do ex-prefeito Celso Daniel. Ele foi vítima de crime comum, como apontou a Polícia Civil. Adversários não vão conseguir extrair do documentário denúncias contra petistas para as eleições de 2022

 

 

Pá de cal é a expressão popular que quer dizer encerrado, acabado. Refere-se ao costume de, ao fim de um sepultamento, despejar cal dentro da cova para maximizar a decomposição e combater a contaminação do solo pelo líquido cadavérico. Dito isso, o maior mérito da série Caso Celso Daniel, exibida pela Globoplay, em parceria com o Estúdio Escarlate, é pôr uma pá de cal na versão de crime de mando no escândalo político-midiático que se tornou a morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel, ocorrida em 18 de janeiro de 2022.

Ao longo dos oito episódios da série documental, com dezenas de depoimentos, animações e uma ordem cronológica adequada dos acontecimentos, a série recompõe o enredo que, a menos que vistos com os olhos pré-dispostos, permite uma compreensão mais próxima daquilo que podemos chamar de realidade. Não é exagero considerar que ao longo dos capítulos o espectador saia convencido de que Sérgio Gomes não mandou matar o amigo. Muito pelo contrário, sabe-se agora que, de fato, Celso e Sérgio nutriam uma amizade sincera e que o caso ganhou a dimensão por questões laterais — políticas ou empresariais.

Foram necessários 20 anos da irreparável perda de Celso Daniel, e da morte em vida de Sérgio Gomes, o “Sombra”, para que justamente de onde menos se poderia esperar — a Rede Globo —  as coisas estariam no lugar. As primeiras investidas na imprensa davam conta que a produção seria um instrumento contra o PT na luta política em mais um ano eleitoral.

Mas o documentário surpreende ao contextualizar no roteiro os principais aspectos do acontecimento — o que não impede de, cortado cirurgicamente, tornar-se munição para o paiol das milícias digitais. Ao colocar os fragmentos de notícias num todo cronológico e numa montagem coerente, fica flagrante a fragilidade da versão do Ministério Público, encampada pela grande mídia, mas fundada em indícios, muito deles, frouxos.

A notícia é que a produção da Globoplay custou R$ 5 milhões. É provável. Desde a pesquisa de arquivo, passando pelas entrevistas e os recursos das dramatização e animação para reproduzir as dinâmicas dos acontecimentos — algo que poderia ser questionável — acabam por cumprir adequadamente seu papel na construção e reprodução dos acontecimentos.

Um dos pontos positivos está na construção e montagem das sequências. Por toda a série, são colocados os aspectos controversos, com as devidas posições de cada personagem ou fato. Aliás, a potência do documentário está nos depoimentos. A cada rodada de explicações, confissões ou revelações, fica patente identificar a consistência dos relatos entre aqueles que defendem a versão do crime comum, diante da corrente que apregoa o assassinato com mandante.

Em 2012, concluí minha tese de doutoramento — História e ficção na narrativa de um escândalo midiático — pela Universidade de Brasília (UnB), que virou livro em 2017: “Caso Celso Daniel, o jornalismo investigativo em crise”, lançado pela editora Insular. No meu trabalho, procuro desvelar a construção do imaginário popular a partir do noticiário da imprensa, tendo por objeto de investigação a cobertura do caso e o noticiário da imprensa, principalmente da Folha de S.Paulo.

Na pesquisa, procuro demonstrar como a linha de investigação do MP, com sua versão de crime de mando, é narrativamente homóloga em sua estrutura aos romances policiais de enigma, como de Edgar Allan Poe, Agatha Christie e Arthur Conan Doyle. Na mesma investigação, aponto como as investigações da Polícia Civil, com a versão de crime urbano, fruto de um cotidiano violento numa grande metrópole, são estruturalmente semelhantes àquelas do chamado romance policial de suspense — ou noir.

Qual a diferença entre os dois gêneros? Os livros policiais de enigma são narrativas cerebrais, nas quais os detetives desvendam o crime a partir de um mosaico de indícios correlatos, mas que são montados para se “encaixar” na estória pelo autor.  As obras de suspense, por sua vez, narram casos de crime do dia a dia, praticados por bandidos comuns, como nas obras de Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou Rubem Fonseca.

O documentário permite tal interpretação, pela qual a narrativa do MP seria homóloga estruturalmente à do romance de enigma enquanto a dos delegados, a de um romance noir. A diferença, no entanto, é que o caso Celso Daniel não foi tratado pelo documentário como um romance de enigma, mas de suspense. Aliás, a própria linguagem do documentário lembra os filmes noir, com seus jogos de luz e sombra, claro e escuro.

Por que a versão de crime de mando perdeu o fôlego? Talvez porque a morte de Celso Daniel não foi ficção, mas realidade. E, diante de tantas evidências e não indícios, não há mais um Arthur Conan Doyle para juntar indícios desconexos e dar a Sherlock a explicação do mistério.

De certa forma, o Ministério Público apresentava sua narrativa à imprensa e, de um modo ou outro, tornava-se verossímil. Mas a realidade se impôs. O resultado parece ter saído daqueles livros que mais se parecem com os “tiras” de Chandler, Hammett e Fonseca. E, por fim, a série escreve uma página importante, senão fundamental, para a construção da memória de Celso Daniel e Sérgio Gomes na história do presente do país e do PT. •

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