Um dos mais experientes economistas do país, o professor aponta que a crise no leste europeu vai mudar o mundo e o Brasil não está atento ao jogo. Crítico dos economistas de mercado, ele também alerta que os desafios para o próximo governo são enormes. “Estamos andando para trás. Aqui o Banco Central derruba a economia para derrubar a inflação”, lamenta

 

 

O triste conflito entre Rússia e Ucrânia é apenas uma parte de um jogo de xadrez global para o qual o Brasil não está dando atenção. Essa é a opinião do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que não consegue identificar qualquer movimentação do governo brasileiro para evitar que a inflação atinja todos os setores da economia. Enquanto o mundo passa por um dos momentos mais importantes da história recente, o Brasil segue patinando como já vem ocorrendo desde o Golpe de 2016.

O problema na visão de Belluzzo é que os economistas ligados ao mercado financeiro têm uma visão muito simplista sobre a economia e a sociedade. No entanto, não apenas estão ocupando o governo federal no momento como também são os únicos que têm espaço nos grandes meios de comunicação brasileiros, o que prejudica demais o debate público sobre a situação econômica do país.

Beluzzo avalia que, para mudar o país, a proposta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva Lula é a correta: colocar os ricos no imposto de renda e os pobres no orçamento.  Mas os desafios que se apresentam são grandes e o debate público sobre economia está perdido em meio ao vício da velha mídia, que se tornou porta-voz dos interesses do mercado financeiro. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Focus Brasil:

 

Focus Brasil — Gostaria de pedir que o senhor começasse falando sobre a importância do momento que o mundo está vivendo com esse confronto entre Rússia e o Ocidente. Uma série de sanções foram adotadas contra os russos e as consequências são imprevisíveis.

Luiz Gonzaga Belluzzo — Se nós olharmos na perspectiva de uma trajetória mais longa da economia capitalista e da geopolítica, podemos dizer que esse episódio – de uma certa forma – reflete as mudanças, hostilidades e disputas que vêm surgindo desde o fim da Guerra Fria. E há um personagem protagonista que não está sendo olhado diretamente na sua importância para o confronto, que é a China. Se nós formos observar a sucessão de episódios que ocorreram desde os anos 80 em que os EUA, ao desdobrar a sua economia com a liberalização financeira e do movimento de capitais, sobretudo para abordar a China, que por sua vez abriu a sua economia para o investimento direto estrangeiro. São essas ironias da história. Da mesma forma como a Inglaterra mobilizou os EUA e a Alemanha no século 19 até eclodir a 1ª Guerra Mundial, também  agora os EUA sofrem o impacto da sua própria dinâmica que fez a China surgir. Estamos observando essa tentativa da OTAN de se aproximar cada vez mais da fronteira russa com sugestões de ameaças e que encontrou a resposta de um chefe de Estado que não pode ser considerada uma pessoa inclinada à negociação, a despeito de ter estabelecido um “joint statement” com a China uma relação muito clara.

 

— O jogo mudou.

— Com relação ao que vai acontecer daqui para frente é que dada a dependência europeia do abastecimento de petróleo e gás e, em boa medida, também de grãos da Rússia, o desfecho para a Europa e para os EUA, o FOMC [Comitê Federal de Mercado Aberto] decidiu subir a taxa de juros. Eles estão balançando um pouco pelo temor de desacelerar a economia americana. O Brasil já entrou nessa “dança” de uma maneira perversa, eu diria. O Brasil não consegue entender que um choque de… fazer uma parênteses que commodities você não pode combater comendo a taxa de juros, é preciso usar outros instrumentos. Acontece que nessa caminhada que mencionei, circunscrevendo os instrumentos de política econômica à política monetária e ao equilíbrio fiscal, isso já causou danos na Itália, na própria Europa mais periférica, que é o caso de Portugal e da Espanha, que levou uma chacoalhada. Então, temos que entender a eclosão dessa guerra como um produto desses movimentos. Vejo muitas vezes que as análises ficam restritas ou se circunscrevem a dizer que o Putin é um autocrata, que ele é tal coisa… isso aí não explica nada.

Estava relendo meus próprios artigos sobre a Guerra do Iraque e aquilo foi uma vergonha em matéria de intervenção. A mentira de dizer que o Iraque tinha armas de destruição em massa. Eu me lembro que o Saddam Hussein fez uma manifestação às Nações Unidas através do seu ministro de Relações Exteriores dizendo que a ONU poderia verificar todo o arsenal iraquiano. Depois, o secretário de Defesa dos EUA foi obrigado a reconhecer que não tinha nada. Isso depois de terem matado mais de 6 milhões de pessoas. Fico muito confrangido com os danos humanos que esses confrontos geram, mas é preciso analisar isso do ponto de vista sistêmico. Estamos diante de um jogo de xadrez, não adianta você dizer que a rainha é boazinha e que o cavalo é ruim ou que o bispo é malvado. Tem que jogar de modo a eliminar as outras peças. Essa analogia me parece mais adequada ao momento. Então, teremos efeitos sobre a Rússia, outros muito graves sobre a Europa, porque não dá para substituir os oleodutos e gasodutos russos que abastecem a Europa, rapidamente. Ainda que os EUA fiquem fazendo essas manobras de procurar Venezuela, Irã, isso não será algo fácil. Aliás, Boris Johnson foi à Arábia Saudita com a sua total falta de noção…

A Rússia vai sofrer, é claro, mas ao se aproximar mais da China, vai encontrar meios para resolver, por exemplo, a saída de empresas europeias e americanas. Eles vão abrir espaço para os chineses entrarem. Eles estão, na verdade, falando o seguinte: “chineses venham para a Rússia”. A China tem uma diversidade de empresas, de lojas comerciais, etc… O pessoal não entende direito a economia da China. Ela é muito vigorosa. Agora, estão fazendo um novo lockdown, mas estavam se recuperando rapidamente porque construíram um formato, um ecossistema entre Estado e o setor privado muito difícil de ser batido. No fundo, a Rússia está servindo, desculpe a expressão, mais como um boneco do Ocidente e dos americanos por conta da rivalidade com a China. Se você olhar nas profundezas, vai observar que a questão é o avanço vertiginoso da China em todas as áreas e, sobretudo, no setor de inovações tecnológicas e ciência e tecnologia. Então, para entender essa crise a gente tem que ir mais fundo. Como dizia o filósofo Heráclito, na Grécia: “o movimento oculto é mais importante que o movimento aparente”.  

 

— As consequências para o Ocidente como um todo devem ser pesadas e o Brasil não está em busca de soluções.

— Sim. É o que eu estou dizendo. Veja a combinação, você tem um choque inflacionário que está atingindo todos os países, a União Europeia até acabou de decidir por um subsídio aos derivados de petróleo e aqui no Brasil acham feia a palavra subsídios. Não se trata de fazer subsídio. Trata-se de fazer um imposto sobre exportação de óleo cru e impedir que a subida desvairada de preços atinja toda a economia. Ainda, apesar de toda a crítica que é justa aos efeitos danosos dos combustíveis fósseis, não dá para se desvencilhar inteiramente deles. Então, o que se vai fazer é pegar um insumo universal, deixar disseminar o choque do preço por toda a economia, porque afeta indústria, transporte, transporte ferroviário. E aí vem o Banco Central com a sua unilateralidade e restrições e sobe a taxa de juros. Você derruba a economia para derrubar a inflação quando na verdade você podia usar outros instrumentos.  Aliás, esses instrumentos desapareceram. Eram muito usados no pós-guerra para se estabilizar preços. Foi feito na Europa, e nos próprios EUA, na saída da guerra. John Kenneth Galbraith ajudou a montar o sistema de coordenação, não era tabelamento, era coordenação de preços. Mas não adianta você falar isso aqui porque também o nível cultural baixou muito no Brasil mais do que no mundo. Então as pessoas não sabem História, não refletem sobre as experiências anteriores. Em compensação, a União Europeia vai manejar outros instrumentos para evitar dar um choque de juros muito forte e derrubar a economia. Pelo menos é o que estou observando… Mas também nos EUA, Jeremy Powell está hesitante assim como a presidenta do Banco Central Europeu, a Christine Lagarde.

 

— O resultado desse processo todo é uma nova ordem mundial, os EUA não vão mais ser hegemônicos, a gente deve passar a viver num mundo multipolar?

— Sim, mas isso vem ocorrendo já há algum tempo. Como disse, com a emergência da China a partir do próprio exercício da hegemonia americana através da sua moeda… Não podemos esquecer que esse é um elemento importante da hegemonia americana e que está sendo contestado não explicitamente, mas implicitamente. A Arábia Saudita está concordando em vender petróleo para a China em yuan. Aliás, o que a China está fazendo é disseminar o yuan através de relações comerciais e de financiamento para outros países. Ao mesmo tempo, à maneira deles, estão flexibilizando o seu mercado de capitais para poder absorver participação de outros países, investimentos de outros países no seu mercado, na sua bolsa de valores. Isso já vêm fazendo há algum tempo. É que o pessoal fica dizendo que a China é comunista e não percebe que eles são especialmente pragmáticos. E dizer que o Ocidente vai poder prescindir das exportações chinesas é uma certa pretensão.

Hoje, estava lendo um artigo do IEDI [Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial] sobre a desindustrialização brasileira. O texto é muito bom, mas a desindustrialização brasileira não pode ser compreendida sem o avanço da China. No momento em que o Brasil sofreu o choque da dívida externa e ficou prostrado, eu estive no governo em 1986 e sei qual era a dificuldade, aí nós encontramos uma saída para a inflação: o Plano Real. Mas ele teve suas consequências negativas como, por exemplo, a aceleração do processo de desindustrialização por causa do câmbio valorizado e da taxa de juros alta. Isso foi no mesmo momento em que a China estava fazendo a sua escalada. Aí o investimento estrangeiro direto não vinha para o Brasil, ía para a China. Se você olhar a participação do investimento estrangeiro direto, falando de projetos novos, de fábricas novas, o Brasil, que foi protagonista nos anos 1950, perdeu completamente a participação. E leio um artigo de um tal de Hélio Beltrão celebrando a valorização do Real e dizendo [criticando] que os [economistas] desenvolvimentistas dizem que só entra capital de curto prazo. Ele alega que “capital é capital”, mas é claro. Uma laranja é uma laranja também [ironizando]! Então, ele está dizendo essa banalidade sem explicar que os capitais de curto prazo, da mesma maneira que estão entrando hoje, vão sair amanhã. É a chamada “saída rápida” ou “suddenstops”. É o que acontece quando mudam as perspectivas. Aí a visão das relações capitalistas através da predominância financeira é completamente diferente.

Não é por acaso que durante o século 20 todo houve um debate sobre a utilidade ou os perigos do movimento de capitais. O [John] Keynes propôs em Bretton Woods a proibição do movimento de capitais pelo Fundo Monetário Internacional. Não venceu, mas havia no artigo 4º uma permissão do FMI para que os países que tivessem problemas de balanços e pagamentos fizessem controle de capitais. Isso durou até os anos 1980. E, depois, virou essa farra aí que estamos observando.

— Na economia brasileira, o agronegócio representa 5% do PIB. A indústria, 11%, e a maior parte está no setor de serviços. Por que o agronegócio, o setor politicamente mais atrasado, reacionário e conservador, tem um peso tão grande no Brasil?

— Essa é uma boa pergunta. Na verdade, houve uma transformação muito grande no agronegócio. Hoje, já não é a agricultura tradicional. É muito tecnificado, muito sofisticado. E representa 5% do PIB e sua participação no emprego é muito pior. O setor gera poucos empregos. E ademais, com a desindustrialização, isso significa que o agronegócio se abastece dos produtos industriais que necessita fora do Brasil. Veja o caso dos fertilizantes em função da crise da Rússia. Já fizemos várias tentativas de ter uma indústria de fertilizantes porque temos aqui boa parte da matéria-prima e etc. Mas não conseguimos avançar. É uma coisa que debilita muito o agronegócio. O ponto positivo é o fato de ser um grande abastecedor de alimentos, não por acaso a nossa balança comercial com a China é superavitária. É pela exportação de commodities. Agora, o caráter conservador e reacionário dessa gente é atávico, digamos. É algo que vem de muitos anos. Eu me lembro que o Severo Gomes [ex-senador da República e ex-ministro da Agricultura, morto em 1992] dizia que os senhores da terra brasileiros, sobretudo paulistas, na época do café, liam Stuart Mill, à noite, com o escravo segurando a vela. Isso passou para o espírito desse pessoal que é muito conservador e reacionário.

Mas o que aconteceu na transformação também, e que não mencionei, é que o agronegócio se financeirizou. E isso tem um significado muito importante. As commodities são um ativo negociado nas bolsas de valores. Isso significa que você faz posições no mercado futuro que frequentemente exacerbam um choque de preços. Então, não há mais mecanismos reguladores do Estado, que eram os estoques reguladores. Durante muito tempo foram usados para impedir a flutuação excessiva, que é negativa tanto para os produtores quanto para os consumidores.

Foi o que o Keynes recomendou em Bretton Woods. Ele recomentou ao mundo inteiro o commodycontrol. Ele era um sujeito que gostava de utopias. Outro dia chamei Bretton Woods de utopia monetária. E um cara achou ruim e me questionou. Respondi que é utopia porque trata-se de um desejo recente de melhorar a vida das pessoas. Então, o agronegócio ganhou um peso político tão grande quanto a financeirização em que vive. E os mercados financeiros têm um peso político ainda maior. Tudo passa por eles. Por exemplo, se você liga a televisão – e eu recomendo que você tenha cuidado ao fazê-lo, mas se ligar e colocar na Globonews – ouvirá as opiniões econômicas em que os caras só falam “porque o mercado”, “porque o mercado”… Isso é um sinal da prevalência dos mercados financeiros. E posso garantir que os economistas do mercado, além dos interesses, não têm noção nenhuma de como, do ponto de vista do conjunto, a economia funciona. Eles sabem operar e discutir as questões microeconômicas, microfinanceiras, mas a ideia sobre o conjunto da obra não têm. Até porque não leram quem estudou isso direito.

Sempre brinco, e as pessoas ficam assustadas: você tem três economistas além dos seus descendentes que cuidaram disso de uma maneira sistemática: Karl Marx, John Keynes e Joseph Schumpeter. Todos sabiam como funcionava no conjunto o mercado financeiro do capitalismo. Outro dia, vi até um ex-aluno meu dizendo que a financeirização é uma invenção. Ora, a financeirização está posta no caráter monetário da economia capitalista. O pessoal de esquerda fica muito preocupado em fazer o cálculo da mais-valia só que a mais-valia é um conceito mais complexo. Marx fala em mais-valor que é você acrescentar renda monetária a partir do uso da força de trabalho, sem dúvida, mas o capitalismo é meio sacana porque ele começa a gerar lucro e renda em outra esfera do funcionamento. Aliás, não pode deixar de ser. É uma tremenda avalanche de artigos e estudos sobre esse fenômeno da financeirização.

É que o capitalismo foi solto. Lá no século 19 deu a 1ª Guerra por causa disso, os anos 1920 foram um desastre… Aí veio o pós-guerra e o pessoal resolveu “pegar o bicho” e jogar na jaula: “Agora, você vai se comportar direitinho, gerar renda e emprego, criar oportunidade para todos e o Estado fica tomando conta de você”. Só que nos anos 1980, soltaram o bicho de novo e ele começou a fazer essas trapalhadas de hoje.

 

— E o debate público da economia junto à sociedade. Isso vem sendo prejudicado pela forma como os veículos apresentam a cobertura, porque só abrem espaço a economistas ligados ao mercado.

— Isso se agravou nos últimos anos. Depois dos governos do PT, começaram a bloquear o debate e a escolher, simplesmente, os economistas conservadores. Eu me lembro da Juliana Rosa, que não está mais na Globonews, e ela falava assim: “Vou consultar os economistas de mercado”. E aí eles falam aquelas chorumelas, não têm noção de como ocorrem esses processos mais globais. O que acontece é que se restringe muito o debate e não esclarece a população. Isso não é corrigido pelas redes sociais.

Como diz o filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, caímos numa armadilha com as redes sociais, é o imediatismo. Só existem manifestações contundentes e imediatas. E ele diz corretamente que para se estudar um autor ou um problema, é preciso ler e estudar várias vezes. Não é uma coisa corrida. É uma dimensão semiótica e psíquica que está ocorrendo na sociedade. As pessoas têm opiniões instantâneas e indiscutíveis. Isso está formando um tipo de comportamento, de formação intelectual. A própria grande imprensa está sendo conduzida pelas redes sociais. Isso vai encolhendo o espaço de compreensão.

Estava lendo um artigo no Valor, de um rapaz que conheço, Winston Fritsch, que foi secretário de Política Econômica no governo FHC. É uma coisa horrível. Ele faz uma análise da desindustrialização brasileira, ridícula. Diz que é falta de competitividade, que na verdade não tem concorrência aqui. Do que ele está falando? Não existe concorrência perfeita como os economistas querem, como uma forma de você produzir de maneira eficiente, alocar os recursos de maneira justa e correta. Isso não existe em nenhum lugar do mundo pela tremenda concentração do capital. São grandes blocos de capital que dominam… Do que ele está falando? Quer dizer, nem um economista conservador americano teria a falta de vergonha que ele teve ao dizer essas coisas. O cara fica envergonhado porque vai levar “cacete”. Então, esse aspecto que você está mencionando é muito importante e, na verdade, eu diria que é decisivo para o que vai acontecer aqui na frente.

 

— Por conta das eleições?

— Veja, todos esperamos que o Lula vença essas eleições, mas vai ter que vencer essa barreira do bloqueio de concepções, do bloqueio conceitual, do debate mais aprofundado. Ele vai ter que lutar porque, veja o que está acontecendo com os preços dos combustíveis. Eu li o editorial da Folha e eles dizem banalidades do tipo “você não pode afetar o sistema de preços”. Será que não sabem que o sistema de preço do petróleo é governado por um cartel, pela OPEP? E no caso desses insumos há choques de oferta que precisamos contrabalançar com ação do governo? Eles ficam só falando mal dos subsídios. Até o Vinícius Torres Freire escreveu um artigo dizendo que qualquer ação para estabilizar o preço do petróleo é para favorecer os ricos. Imagina? Quando você olha a cidade de São Paulo cheia de meninos com suas motocicletas transportando comida, quer dizer que eles são ricos também?

 

— Se Lula ganhar as eleições, vai pegar um legado de 20 milhões de pessoas passando fome, algo que já tínhamos acabado. Lula diz que o povo tem que ser prioridade, que tem que colocar o rico no Imposto de Renda e o pobre no Orçamento. Como ele vai se virar para fazer isso?

— Ele está corretíssimo nas prioridades. A primeira coisa que tem que fazer é socorrer aqueles que estão sofrendo os efeitos da escassez e da fome. Isso é algo que ele dizia já lá na sua primeira eleição. E é essencial. Imagino que o Lula vai ter que lutar muito para montar uma base parlamentar sólida e está certo nessa busca do candidato a vice mais, digamos, centrista. Isso tem a ver com a composição da base parlamentar. Sem essa base, fica muito difícil. Ele sempre lidou muito bem com o Congresso, mas é preciso ter articulações para levar a cabo os programas. Vejo nesse momento que há um desconforto no Congresso com a forma como o governo está tratando a questão dos combustíveis. O pessoal está muito inclinado a fazer um fundo de estabilização, que é uma coisa que a Noruega, exportadora de petróleo, tem. Mas não adianta aqui porque é uma coisa complicada. Mas, enfim, ele tem que ter esse alvo mesmo porque é o principal. Tem que colocar as pessoas no território da economia.

Hoje, estão fora porque os modelinhos desses economistas de mercado não os incluem. Esses modelos são completamente equivocados. Não servem para nada. Basta dizer que, em geral, têm como fundamento o homem econômico racional. E eles circunscrevem esse homem em um indivíduo só. É a Teoria das Expectativas Racionais. Você não precisa lidar com uma pluralidade de situações sociais: um é rico e outro é pobre; um é empresário e outro, trabalhador. Existe só o homem racional, o detentor das expectativas racionais que sabe qual é a estrutura da economia e sua evolução provável. Você acredita que esses economistas trabalham em cima de uma hipótese dessa? Se você contasse isso para o Einstein, ele morreria de rir. Isso não é uma forma de conhecimento, é uma estupidez. Eles tratam das cifras e as pessoas não interessam. As pessoas são vistas como custos.

Você falou sobre 2016. Outro dia, numa reunião com os economistas ligados ao PT, eu levei uma consideração e estava até conversando com o Guido [Mantega] depois. Com a derrota do Aécio [Neves] em 2014, a pressão do mercado, dos economistas de mercado sobre a política econômica foi desvairada. Então, eles começaram a dizer que estava tudo errado, mas era tudo mentira. Inventavam números, trapaceavam com os números. Por exemplo, diziam que o gasto público cresceu o tempo inteiro mais do que o PIB. E isso é mentira. Há estudos que negam isso. E tanto é mentira que havia um superávit primário alto em geral. Veio aquela onda de pressão, inclusive com os editoriais da Folha, Estadão e O Globo falando barbaridades e aí resolveram fazer o ajuste. O déficit primário em 2014 foi 0,5% e a economia cresceu 0,6%. Em função do choque, em 2015, o déficit primário foi para 2,6%. E a economia ficou patinando. Em 2016, ela caiu 3,3% e depois começou a crescer 1%, 1,5%, até a ocorrência da Covid. Agora, o Paulo Guedes está dizendo que a economia vai crescer 4,5%. Sim, mas é porque ela caiu 4,5%. Na minha opinião, caiu até um pouco mais. Nós não voltamos ao nível de 2013. O desempenho da indústria foi péssimo. •