Entrevista Arthur Chioro – “O Brasil não está preparado para a nova variante”
Ex-ministro da Saúde alerta que Bolsonaro falhou ao não se preparar para a quarta onda da pandemia. Dessa vez, o risco não está na superlotação das UTIs, mas das unidades básicas. Faltou planejamento ao governo, que não tem credibilidade. Ele não acredita nem no ataque ao banco de dados do ministério
A variante ômicron, que já é dominante no Brasil, responsável por mais de 90% dos casos em todo o território nacional, é também o motivo pelo qual a média de novos casos no país vem subindo vertiginosamente. Ex-ministro da Saúde, o médico Arthur Chioro afirma que a variante está provocando um colapso diferente no sistema de saúde. Não são os leitos de UTI que estão lotados, mas os pronto-socorros.
A vacinação faz com que os sintomas sejam mais leves, mas a falta de planejamento e de políticas de preventivas por parte do governo federal deixam o país à mercê do caos, novamente. Nesta quarta onda da pandemia, o risco aumenta para crianças e adolescentes. É o que mostram os dados dos países que já enfrentaram a ômicron.
Ele é um crítico duro do governo Bolsonaro. A onda de casos de coronavírus que atinge o Brasil já foi registrada na Europa, o governo brasileiro nada fez para se preparar e não só, mais uma vez, colocou em dúvida o combate à Covid fazendo uso do “apagão” das estatísticas do Ministério da Saúde após um suposto ataque hacker. Chioro lembra que todos os dados da pasta têm dois backups, um no Rio de Janeiro e outro em Brasília.
Ele está preocupado com a sobrecarga do sistema. No estado de São Paulo já há um aumento de 61% nas internações de crianças em UTIs nos últimos dois meses. Em busca de sobreviver, o vírus se transforma para avançar sobre quem ainda não está vacinado.
Para essa nova fase da pandemia, o Brasil precisa se preocupar com as 61 milhões de pessoas que não foram vacinadas ou que não completaram o esquema vacinal. A tendência, é que o número de novos casos suba fortemente até o final de fevereiro e só depois volte a cair. A seguir, trechos da entrevista à Focus Brasil.
Focus Brasil — Há risco de novo colapso do sistema de saúde?
Arthur Chioro — Todos nós, exceto os negacionistas, reconhecemos a tendência a um certo caos social. Basicamente, por dois motivos. Primeiro, porque a ômicron é muito explosiva. Como ela tem alta infectividade, isso gera num curto espaço de tempo uma grande quantidade de novos casos e acaba criando duas situações preocupantes: o fato de que ainda que os vacinados não tenham casos graves, não sejam internados, mas vão precisar ficar afastados de sete a dez dias. Portanto, serviços estratégicos são afetados. Todas as atividades econômicas, no mundo inteiro, foram fortemente afetadas pela ômicron, justamente porque ela provoca um alto número de casos simultaneamente. A outra coisa é que diferente das demais variantes que causavam um forte impacto sobre o sistema hospitalar, e em particular sobre as UTIs, leitos de suporte ventilatório, a ômicron, por ter uma sintomatologia diferente, por produzir casos mais leves até em função da proteção que a vacina deu aos vacinados, sobrecarrega fundamentalmente as Unidades Básicas de Saúde, as UPAs e os pronto-atendimentos. Isso, no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Então, as clínicas, UBSs e prontos-socorros estão explodindo de demanda num momento em que os próprios trabalhadores da saúde também estão sendo infectados e obrigados a ficarem afastados, o que sobrecarrega mais ainda o sistema.
— Daí a importância da vacinação massiva…
— Isso. A importância de vacinar no sentido de proteger as pessoas contra as manifestações graves da doença fica evidente. Mais de 90% dos casos graves de internação e de óbitos pela ômicron são em não vacinados. Não é por menos que ela atinge fortemente as crianças. Afinal, é o segmento menos vacinado em todo o mundo.
— A ômicron representaria o início do fim da pandemia?
— Existe discordância. Gente como Pedro Hallal, Margareth Dalcomo, Gonzalo Vecina, pessoas que respeito muito, sérias, chegaram a dizer que com a ômicron viria o fim da pandemia. Temos uma avaliação diferente. No encontro com o presidente Lula, os ex-ministros da Saúde, ex-dirigentes da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar], fomos unânimes — e é a posição manifestada hoje pelo diretor da OMS [Organização Mundial da Saúde] — não há perspectiva de fim da pandemia ainda. Há uma quantidade enorme da população mundial ainda desprotegida. Isso abre margem para variabilidade. Como o coronavírus, o SARS-coV-2 tem um potencial de mutação muito grande. Enquanto a gente não incidir sobre a vacinação e jogar lá embaixo a taxa de transmissão, não podemos dizer que estamos no fim da Covid.
— Quanto o apagão de dados do Ministério da Saúde. Isso prejudicou o combate à ômicron?
— Totalmente. Como monitorar? A gente já fazia pouco. Mas quando começa a ter essa dificuldade. a ter problemas com prefeituras e governos estaduais, divulgando números diferentes, que não batem com os dados do Ministério da Saúde, perdemos capacidade de planejamento e de análise. Isso, apesar do esforço do consórcio de imprensa, de outros órgãos, da Fiocruz, de conseguirem analisar a partir da base de dados primária o que está acontecendo. Mas é estratégico [o apagão]. Faz o jogo dos negacionistas porque ajuda a criar confusão, a criar um sentimento de insegurança com relação aos rumos do que está acontecendo. É inadmissível. A gente conhece muito bem. O sistema do ministério tinha backup, trabalha com cópia dos dados no Rio e Brasília. É tão inadmissível quanto, por exemplo, distribuir vacina em caixa de papelão cheia de gelo. Só um governo bandido, criminoso, é capaz de fazer isso. O ministro da Saúde é um bandido de jaleco, não tem outra expressão. O que ele fez em relação à vacina das crianças, àquela consulta pública “fake”… Quer dizer, depois de o nosso órgão sanitário fazer a aprovação da vacina, ele submeter a uma consulta popular? Isso é muito mais do que demagogia. É a expressão do negacionismo. O que está acontecendo é um crime. Eu e outros ex-presidentes do Conselho de Secretários Estaduais de Saúde do Estado de São Paulo fizemos uma denúncia há duas semanas para o Conselho Federal de Medicina contra o ministro. Vamos ver se a corporação vai engavetar.
— De acordo com dados do governo do Estado de São Paulo, o número de crianças internadas em UTIs com coronavírus aumentou 61% nos últimos dois meses. Esse dado pode ser um indicativo de que a variante ômicron seja mais forte em crianças?
— Hoje, conseguimos explicar muito mais pelas análises feitas no Reino Unido, nos EUA, na Espanha, em países que estão vivendo o fenômeno da ômicron. Novamente, o Brasil tem a janela de oportunidade para se preparar. Na reunião com o presidente Lula, mostrei dois gráficos do Reino Unido que apontam exatamente isso: a explosão das internações, da média móvel semanal. Houve uma explosão nas internações das crianças de zero a 5 anos de idade, depois de 5 a 12 anos e, por fim, entre 12 e 18 anos. Essa é uma característica. Tem a ver com dois fenômenos: uma predileção pelas crianças e o fato de que aí se encontra um universo de pessoas não vacinadas. O que reforça a tese da necessidade de vacinar com doses completas, o mais rápido possível, inclusive para baixo de 5 anos.
— E com relação a volta às aulas? É necessário atenção maior?
— É fundamental vacinar as crianças, ainda que com uma dose. Vai precisar voltar com mais segurança com relação ao uso de máscaras, às medidas sanitárias. Ao mesmo tempo, também é inaceitável que a gente não encare de frente o impacto sobre a educação das crianças em todo o mundo, não só no Brasil. Portanto, parece-me que é alguma coisa que a gente precisa avaliar com muita segurança. Há expectativas, olhando novamente para o que aconteceu no Reino Unido e na Espanha — países que analisei os dados —, com dois meses e meio foi tão explosivo que a onda cresceu muito rápido. Mas já começa a decair. Se isso acontecer aqui, estamos falando do final de fevereiro, começo de março. Então, analisar se vale a pena retardar em um mês o início das atividades escolares é uma coisa que ao longo da próxima semana, teremos mais segurança. Com uma curva explosiva e ascendente, parece-me que seria muito prudente retardar em pelo menos 30 dias o retorno das atividades escolares.
— Existem pessoas que mesmo com o ciclo vacinal completo, tomando as três doses, tiveram sintomas leves. Ao se curar do coronavírus, essa pessoa ganha alguma imunidade ou não existe conclusão sobre isso?
— Em tese, ela adquire alguma imunidade durante alguns meses contra essa variante. O organismo produz resposta imunológica. Tanto as imunoglobulinas como as células de memória que são as chamadas Células T. Quanto tempo dura, nós não sabemos. A gente sabe que as imunoglobulinas ficam por quatro, cinco meses. Depois, a resposta tende a ser celular. O que a gente sabe hoje, com base em estudos realizados nos EUA, é que entre os não vacinados existe uma infectividade cinco vezes maior e 13 vezes mais óbitos. No Brasil, os primeiros estudos vão sair agora.
— Reportagens apontam que, no Rio de Janeiro, a maior parte das pessoas internadas com coronavírus e em estado grave estão nos hospitais particulares. Na rede pública, a quantidade de internados é menor. Isso permite pensar que as classes populares estão buscando se vacinar.
— Tenho dúvidas. Existem algumas pesquisas que mostram que há um impacto importante da campanha antivacina em pessoas mais vulneráveis, com menos acesso à informação. Havia uma pesquisa da OPAS, do início de 2020, de que, nas Américas, a população brasileira era a que mais aderia. Era próximo de 90% da população e caiu para algo entre 70% e 80%. Ou seja, há um estrago. E isso afetou a vacinação contra influenza, tuberculose, poliomielite… O estrago que o bolsonarismo, esse fascismo negacionista, está fazendo é muito grande.
Se a gente tivesse um governo decente, um presidente que fosse para frente das câmeras e se mostrasse sendo vacinado, uma primeira-dama que levasse sua filha para vacinar no primeiro dia, junto com criança indígena, negra, quilombola, com síndrome de down, para mostrar o exemplo… Mas aqui é o contrário. O cara vai e diz que não vacinar a filha.
— O SUS foi enaltecido durante o período da pandemia, mas existe em curso uma ação que tenta fragilizar e desmontar o sistema público de saúde. O governo Bolsonaro causa destruição no Estado. O senhor enxerga esse mesmo processo no sistema público de saúde?
— O SUS vem sendo destruído desde o Golpe de 2016. E os ministros do Bolsonaro foram um pior do que o outro. [Luiz Henrique] Mandetta era um cara anti-SUS e só aderiu [à defesa do SUS] quando decidiu ser candidato. Depois, Bolsonaro trocou por alguém que vinha do mercado e não entendia nada do SUS. Depois, trocou por um general fanfarrão… Não preciso nem falar do Pazuello. E termina com esse criminoso de jaleco. Eles foram desmontando, insidiosamente, o SUS. Desmontaram a política de atenção básica, o Mais Médicos, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família, a Farmácia Popular, a política de saúde mental… É coisa de rato. É o negacionismo a serviço do negócio. Eu brinco dizendo que é o negacionismo a serviço do “negocionismo”. É deliberado. Só que no caso do SUS existe uma diferença substantiva. Esses caras destruíram a estrutura do ministério mandando embora os profissionais que estavam lá desde a época do [Adib] Jatene [ministro da Saúde em 1990], desqualificando as agências… Só que no caso do SUS, destruir o ministério e destruir o pacto interfederativo gera problema demais. Essas 621 mil mortes têm no atestado de óbito de cada uma que a causa é o Bolsonaro. Eu afirmo, a assinatura do presidente da República está nos atestados de óbitos de cada um desses brasileiros e brasileiras que morreram de Covid e de outras doenças negligenciadas.
— Mas ainda há resistência.
— Sim. O SUS tem uma resiliência que provém do pacto interfederativo. É o fato de que ele não é uma responsabilidade só da União. O SUS também é de responsabilidade de estados e municípios. Vamos pegar o exemplo das vacinas. Só quem compra vacina, quem incorpora no Programa Nacional de Imunização é o Ministério da Saúde. Os estados e os municípios não podem. O [João] Dória queria porque queria sair vendendo coronavac para todo mundo e não pôde. O Instituto Butantan recebe recursos públicos – aliás, ele é o que é em função do investimento público – e todas as vacinas precisam ir para o Programa Nacional de Imunização e é o ministério que distribui aos estados que, por sua vez, fazem a distribuição para os municípios. E, a partir daí, toda a aplicação é feita pelas prefeituras. Portanto, na medida em que a vacina chega, não adianta o bolsonarismo dizer “eu não vou fazer”, pois os municípios fazem. Quando o governo federal começou a dizer que não iria abrir leito de UTI, as prefeituras e os estados saíram abrindo. Então, houve uma resistência de baixo para cima. Um exemplo símbolo é a prefeitura de Araraquara, o trabalho que o Edinho Silva (PT-SP) vem conduzindo. Por mais que o bolsonarismo negue a defesa da vida, veja o trabalho dos governadores através do Consórcio do Nordeste, de prefeitos que operam em um vetor oposto.
— O que o SUS precisa alcançar em termos de serviço para a população para que tenhamos um sistema público de saúde mais próximo do que é a proposta inicial?
— Precisa combinar as condições necessárias para se estruturar… financiamento, organização, retomada do pacto interfederativo, um conjunto de medidas no campo da gestão que faça sentido, que resolva os problemas da população brasileira. A população já vivia numa situação dramática e os dois anos de pandemia em que se acumulou gente com sequelas da Covid, em que diagnósticos de câncer e de outras doenças foram retardados, em que cirurgias eletivas foram adiadas, faz com que as pessoas clamem por ter os seus problemas resolvidos, mas numa perspectiva humanizada. A população não quer só acesso a remédio, médico e procedimento. Ela quer ser cuidada com dignidade e isso o mercado não é capaz de entregar. O SUS pode produzir. Um sistema nacional de saúde pautado pela defesa da vida, com dignidade, com respeito, que compreenda este papel decisivo no próprio desenvolvimento econômico e social do país, mas acima de tudo na produção de qualidade de vida, pode ter sucesso. O SUS vai ter que enfrentar uma situação que é muito desafiadora. É uma população que está envelhecendo e isso faz com que essas pessoas passem a ter problemas de saúde que exigem cuidados continuados. Isso requer uma equipe multiprofissional e não mais um serviço só centrado no médico. São necessários enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, gente com capacidade de cuidar. As pessoas precisam ser mais bem cuidadas. Esse é o grande desafio do SUS. •