João Cândido, o Almirante Negro, foi o grande líder que mostrou à Marinha que os direitos humanos são maiores que a hierarquia e a disciplina militares. Eis a saga dos marinheiros negros que mostraram com a Revolta da Chibata que a história se faz com resistência e bravura

 

Glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história, não esquecemos jamais!” Essa estrofe de Aldir Blanc e João Bosco é um ato de resistência e uma vibrante homenagem à saga dos marinheiros negros na Revolta da Chibata.

Foi um protesto em meio à ditadura civil-militar, na qual censores obrigaram os compositores a quebrarem a cabeça em “busca da inspiração”. Burlar censores e censoras moralistas não era matéria para qualquer um naqueles tempos. Enfim, haja inspiração.

Aprovada pela censura após muita criatividade dos seus compositores, “O Mestre Sala dos Mares” tornou-se sucesso na voz de Elis Regina, e a dupla Blanc-Bosco finalmente conseguiu exaltar a figura do “bravo feiticeiro” João Cândido Felisberto, sem poder citar seu nome. Ele é o maior líder de uma revolta pela justiça e por direitos humanos no Brasil dos séculos 20 e 21.

Nesse longo tempo, poderosas figuras públicas de cor branca, civis e militares, fizeram de tudo para silenciar a saga dos marinheiros. Até um sequestro. Quando Blanc e Bosco versaram que “a História não esqueceu” a revolta também estavam homenageando as vozes potentes, que não deixaram apagar os passos de João Cândido e seus camaradas.

Edmar Morel era um deles. Incomodava-o saber que João Cândido havia sido perseguido por oficiais da Marinha logo após ser desligado daquela força armada. Por ser um grande timoneiro, não lhe faltava emprego em navios civis. E chegou a conseguir embarcar em alguns. Mas logo oficiais pressionavam o contratante a demiti-lo. Aquietaram-se quando João Cândido avistava o mar sem singrá-lo: descarregava e comerciava peixes na Praça 15, no Rio. Uma tortura para quem dizia: “o mar é meu amigo”.

Apparício Torelly, o Barão de Itararé, era famosíssimo por seu tirocínio e respostas rápidas e criativas. Mas em 1934 mexeu com quem não devia. Pelas páginas do “Jornal do Povo” decidiu publicar matérias sobre a história da revolta, já que o movimento completaria 25 anos, em 1935.

Em 19 de outubro de 1934, Torelly foi sequestrado por oficiais da Marinha encapuzados e sem fardas. Ordenaram-lhe que assumisse o “compromisso de retirar o ‘Jornal do Povo’ e o folhetim sobre a revolta dos marinheiros de 1910” de circulação. Negando-se veementemente a ceder, seus sequestradores passaram a ameaçá-lo de morte, espancaram-no, cortaram seus cabelos e deixaram-no “despojado de tudo que possuía, num local deserto para os lados de Jacarepaguá”.

Foi um escândalo. Mas os sequestradores nunca foram encontrados. O jornalista se sentiu desprotegido para prosseguir com a série de matérias no jornal e, com seu jeito sarcástico, pendurou em sua porta a placa “Entre sem bater”.

Pulando para o Golpe de 1964, a democracia foi ofendida por um grupo de oficiais-militares, unidos a civis conservadores e a capitalistas estrangeiros e nacionais. Foi neste momento que perseguiram o jornalista Edmar Morel, cassando seus direitos democráticos e o emprego. Ele havia escrito a biografia mais famosa e poderosa sobre João Cândido Felisberto.

O livro tornou-se fonte de inspiração para diferentes segmentos sociais logo após ser lançado, em 1958. João Cândido foi aplaudido, homenageado em diferentes locais: reportagens, matérias, propostas de filmes, enredo de escolas de samba, letra de música, peças de teatro…. Não à toa, Morel comeu o pão que o diabo amassou.

O mais recente posicionamento da Marinha foi junto à Comissão de Educação do Senado. O líder da Revolta da Chibata, João Cândido Felisberto, foi indicado para o Livro de Heróis da Pátria. A Marinha enviou uma nota aos senadores reprovando o projeto. Argumentou que os marinheiros não haviam esgotado “outras formas de persuasão e convencimento”, além de quebrarem a hierarquia e a disciplina militares. Daí, a Marinha não reconhecer “o heroísmo das ações daquele movimento e o considera uma rebelião”.

Tais argumentos são frágeis e revelam o quanto estes signatários “de cima” desconhecem ou não querem conhecer as realidades e as demandas dos “de baixo”. O fato é que detestam o marinheiro negro, ventre livre, de formação rudimentar, que por seu tirocínio comandou centenas de colegas das maiores embarcações da Marinha de Guerra por quatro dias, ameaçando a capital de bombardeio caso as reivindicações não fossem atendidas. Reivindicações que dialogam com as bases dos direitos humanos e sociais. Eram homens negros castigados fisicamente com chibata, semelhante aos sofridos por escravos, mesmo passados 22 anos do 13 de Maio de 1888.

João Cândido foi o grande líder que mostrou aos oficiais da Marinha o bê-á-bá da coisa. Direitos humanos são maiores que a hierarquia e a disciplina militares, ainda mais quando acobertam injustiças. Por isso. Ele é e será o Almirante Negro. Os incomodados que abram em breve o Livro dos Heróis Nacionais da Pátria e vejam a marinha contemplada naquelas páginas por mais um homem, o marinheiro negro João Cândido Felisberto.