ENTREVISTA | NELSON BARBOSA – “A POLÍTICA ECONÔMICA DO GOVERNO BOLSONARO É NÃO TER POLÍTICA”
O ex-ministro diz governo Bolsonaro vem promovendo um “show de improvisos” desde o início da pandemia. Além disso, afirma que desde o golpe de 2016, os governos vêm prometendo resolver o problema do país com ajustes fiscais rápidos, mas têm falhado em todas as tentativas. Para ele, O resultado é que o país cresce muito lentamente e as camadas mais pobres da sociedade são as mais penalizadas.
Nesta entrevista à Focus Brasil, o economista e ex-ministro do Planejamento e da Fazenda, Nelson Barbosa, faz uma análise da conjuntura econômica brasileira. Segundo ele, a criação do Auxílio Brasil não vai representar solução para a miséria que assola o país. A política de corte de gastos implementada pelo governo Temer e na qual o governo Bolsonaro insiste já se mostrou ineficiente. “O Brasil está há cinco, seis anos patinando. Não sai do lugar”, critica Barbosa. O pior é a bomba-relógio que o atual governo está querendo deixar para 2023, o calote nos precatórios. Para chegar a uma solução para o Brasil, ele afirma ser necessário socorrer a população, investir para criar empregos e fazer a economia voltar a girar.
– O Brasil vai terminar o ano de 2021 numa situação muito pior do que indicavam as previsões. O governo Bolsonaro buscou beneficiar algum setor específico da economia ou não passa de uma lambança completa?
– Ele buscou claramente beneficiar o mercado financeiro com venda de participação do BNDES em várias empresas, tentativas de privatização, e tem o setor militar-policial que teve ajuste salarial, aumento de gratificação. Basta ver as ações do governo, eles se beneficiaram mais. O mercado financeiro agora está sendo prejudicado, então ficou insatisfeito com Bolsonaro. O setor militar continua sendo bem atendido pelo governo Bolsonaro.
– Apesar de o desemprego continuar alto e das previsões de crescimento serem revisadas para baixo, o governo continua falando em “recuperação econômica”. Qual é a realidade econômica do país?
– A realidade econômica é que nós tivemos uma parada súbita por conta da pandemia do coronavírus. A economia caiu 4% e este ano deve subir em torno de 4,8%, voltando ao ritmo em que ela estava no pré-crise. Em 2019, a economia já estava crescendo lentamente, cerca de 1,5%, e a expectativa inicial é que voltaria a esse ritmo ano que vem, mas agora há risco de uma desaceleração ainda maior. É uma economia que anda de lado. O país até que se recuperou rapidamente, mas não engrenou um crescimento acelerado pós-recuperação cíclica. Algumas consultorias estão dizendo que vai voltar àquele crescimento em torno de 1% em 2022, com risco de recessão. Eu acho que o risco de recessão ainda é pequeno, mas é possível. O fato é que é muito difícil a economia brasileira crescer mais do que 1% no ano que vem. Tem aumento de juros, para controlar a inflação. A política fiscal, mesmo com o gasto extra já autorizado, é uma contração com relação a 2021. Vão prorrogar o auxílio emergencial com o nome de Auxílio Brasil com valor menor, é como se estivesse desacelerando.
No mundo, a China desacelerou e o EUA está acelerando. Para nós, este é um cenário inicialmente neutro e tudo indica que é uma estagnação. O governo está apostando em crescimento de mais de 2% para o ano que vem, mas acho que só o governo tem esse número. Antes, eles até usavam uma expectativa próxima da do mercado, agora descolou completamente. Como já houve outro anúncio da mesma forma: “vou arrecadar R$ 1 trilhão” ou “vou cortar R$ 1 trilhão de gastos” ou ainda “vou vender patrimônio e gerar R$ 1 trilhão”… Esses anúncios muito ambiciosos têm sido uma constante desse governo e a questão do crescimento é só mais uma.
– Você acha que os desacertos da política de Paulo Guedes, que vem já da época do desmonte do governo Michel Temer, são o corolário do movimento que começou com a derrubada da Dilma em 2016?
– Com certeza. Em 2016, teve ali uma aposta que consistia em tirar um governo de centro-esquerda, como o da Dilma, e colocar um governo mais de centro-direita, sem nenhuma política mais ativa ou estímulo mais forte para o crescimento. Bastaria fazer reformas, reduzir a inflação, baixar os juros e a economia se recuperaria por si mesma, o que a equipe econômica atual chamou de o “PIB privado”. O governo não precisaria fazer nada. A inflação caiu – na verdade, já tinha começado a cair no governo Dilma-, o juro caiu… Tudo isso é bom, mas não o suficiente para recuperar a economia já antes da Covid. O crescimento médio de 2017 a 2019 foi de 1,5%, com os juros caindo, mas o juro baixo sozinho não é promove uma recuperação sustentável. Precisa ter política de investimento, de transferência de renda, de emprego. Quando veio a Covid, a gente entrou no show do improviso. O governo, primeiro, disse que com R$ 5 bilhões resolvia, não precisava fazer muita coisa… Foi forçado a fazer o Auxílio Emergencial. Depois, disse que iria acabar com o Auxílio Emergencial em janeiro. Ficamos dois meses sem o auxílio e o governo viu a besteira que foi, voltou com o auxílio emergencial, mas disse que ele só iria até outubro. Agora, viu que é risco mesmo e de novo está voltando com o auxílio…
Esse negócio de para e volta, a tentativa de dizer que os estímulos que foram feitos são temporários, só criaram incerteza, o que gera uma depreciação adicional do real. O dólar sobe e puxa os preços de alimentos que são commodities: trigo, carne, soja, o milho que aumenta o preço do frango, o açúcar que incide no etanol. Aí aumenta o preço da gasolina, da energia e isso acaba em inflação, o que afeta todo mundo. Foi um planejamento malfeito de como enfrentar a recessão lá de 2014-15, seguido de um planejamento inadequado de achar que a Covid seria uma crise que acabaria rápido e o Brasil voltaria à situação pré-crise. Não voltou e não vai voltar rápido, nem aqui, nem em lugar nenhum do mundo. A saída dessa crise exige política de reconstrução. É o que está sendo feito na China, na Europa e no EUA, cada um do seu jeito, com intensidades e focos diferentes, mas todos eles apresentaram plano de reconstrução e recuperação pós-crise. O Brasil é o único país que fica dizendo que a crise é passageira e marca data para a crise acabar. Primeiro, foi marcada uma data para acabar no final de outubro. Viram que a crise insistiu em continuar e agora ele marcou que a crise acaba em dezembro do ano que vem. Não tem nada programado para 2023 [fala ironicamente].
– A pandemia criou um desarranjo global na cadeia de suprimentos. A situação é pior no Brasil? O Banco Central vem tentando controlar a inflação, mas o governo federal não se mexe em nada, é isso?
– O Banco Central está usando a taxa de juros, que é o que ele tem, e faz alguns swaps cambiais. Com a inflação no nível em que está, realmente, é necessário subir juros. A questão é até onde… Tem gente dizendo que os juros têm que subir para 14%, 15%, o que eu acho exagero, e outras pessoas dizendo que algo em torno de 11% seria o suficiente. Agora que o processo inflacionário já acelerou, não tem nenhuma arma mágica para o governo baixar essa inflação rápido. No caso dos alimentos, teria de ter política de abastecimento mais segura porque alguns segmentos tem uma volatilidade muito grande. Todos os países do mundo têm política de preços agrícolas, de estoques reguladores… Ou, quando o preço da energia varia muito, o governo adota medidas pontuais para tentar amortecer esse impacto. O Biden acabou de fazer uma iniciativa coordenada com governos de outros países para usar os estoques reguladores de petróleo dos EUA na tentativa de combater a alta mundial do petróleo, ao mesmo tempo procurando incentivar o aumento da produção no seu país e de alguns outros produtores. Aqui, a gente não tem isso. Nada.
O que teve agora foi uma iniciativa, que do ponto de vista econômico não é a melhor, que é o vale-gás. E é uma iniciativa do PT, que já poderia ter sido aprovada lá atrás, no início do ano. Não resolve o problema, mas ele dá auxílio a quem mais precisa no curto prazo enquanto o governo pensa em políticas estruturais. Todos os países fazem isso e não é controle de preços, são políticas que existem para administrar a volatilidade de mercado. Aqui, a nossa política é não ter política.
– Tanto Temer como Bolsonaro não economizaram para aumentar as reservas cambiais, mas o aumento do dólar fez com que a reserva aumentasse. Você poderia cravar que essa política, desenvolvida nos governos Lula e Dilma, salvou a economia nacional da debâcle?
– Eu acho que sim. Mesmo os mais críticos ao PT reconhecem que o acúmulo de reservas internacionais é uma grande conquista, uma herança bendita que os governos do PT deixaram. Tanto que o Temer manteve e o Bolsonaro também. Se a gente não tivesse um estoque de reservas tão elevado aconteceria o que está acontecendo na Argentina e na Turquia, que têm problemas em moeda externa e aí tem que recorrer ao financiamento. No Brasil, hoje, o que temos é o problema da volatilidade do dólar. Se o câmbio sobe, pressiona a inflação interna. Como o Brasil não está quebrado em moeda estrangeira, somos credores em moeda estrangeira. Isso nos deu mais grau de liberdade, o Brasil tem mais espaço para fazer política econômica, tanto que nós fizemos o Auxílio Emergencial, auxílio para estados e municípios… Agora, só ter espaço não significa que você vá fazer a política econômica correta. Está aí o Bolsonaro que tem desperdiçado todas as oportunidades que tem. O ganho, no entanto, veio para ficar. Sempre digo que é importante ter reserva porque aí a gente discute o orçamento fiscal no Congresso brasileiro e não no FMI. É melhor fazer isso aqui do que por imposição externa.
– Num retorno do Lula à Presidência, se houver a decisão de introduzir dinheiro no país para a economia voltar a andar, algo semelhante ao que o Joe Biden está fazendo, o dinheiro poderia vir dessas reservas internacionais ou teria que sair de outro lugar?
– Teoricamente, pode, mas não sou favorável a isso. Reserva internacional é um seguro contra o choque externo, é importante ter ela alta. A China tem mais de US$ 1 trilhão, nós temos US$ 350 e pouco [bilhões]. O FMI diz que o Brasil tem um “excesso” de reservas de US$ 100 bilhões, que a gente poderia operar com US$ 250 bi. Eu, como sou conservador, acho que se o FMI diz que podia ter menos 100, então eu vou manter esses 100 de excesso só para ter segurança. E ela [a reserva] já é utilizada, pois por ter reservas internacionais elevadas, o Banco Central pode entrar no mercado e fazer swap cambial. Agora, reserva é para administrar um risco de solvência. Para financiar um investimento, aí você tem que ter uma receita permanente para financiar um gasto permanente ou reduzir outro gasto.
No caso do Brasil, já teve muita redução de gasto essencial, então não tem muito espaço para cortar. A gente tem o desafio de recuperar receita que é, em certa medida, o que os americanos acabaram de anunciar. Eles falam assim, “eu vou aumentar o investimento e isso não vai aumentar a dívida por que eu também vou aumentar a receita”. Uma coisa paga a outra de modo que daqui a dez anos a dívida está no mesmo lugar, é uma fonte permanente. É o melhor. No curto prazo, você pode até financiar uma expansão com dívida. Se a economia está fraca, você não vai aumentar imposto. Primeiro você auxilia a economia e o governo absorve isso como aumento de dívida, mas ele já programa na saída da crise um aumento gradual de receita, de modo a pagar o endividamento feito para lutar contra a crise. Isso aí não é nada novo. São coisas são feitas há mais de 50 anos, mas representam grande desafio político, tem de convencer a sociedade disso. É um desafio político de toda democracia, aqui, na Europa e nos EUA.
– Qual é o caminho que você vislumbra para aumentar receitas?
– Eu acho que você tem que fazer a reforma da tributação direta, aquela que substitui o PIS/COFINS pelo CBS. Essa reforma está mais ou menos delineada desde 2012, mas depende de um quadro político favorável. Tem também a outra reforma da tributação direta, que o governo até começou na direção correta, de aumentar a tributação sobre os mais ricos, sobre as grandes corporações, mas depois o projeto virou um “Frankenstein” no Congresso. Do jeito que está é melhor nem aprovar. Mas essa também é uma direção também que a gente está vendo no resto do mundo. Teve um acordo recente entre vários países, inclusive o Brasil, de criar um imposto de renda mínimo global, que diz que ninguém no mundo vai pagar menos do que 15%. Vários países sofrem com evasão fiscal, essa coisa de grandes empresas, pessoas de alta renda colocarem os seus recursos em paraísos fiscais para não pagar imposto sobre herança, como fez o Paulo Guedes. A evasão fiscal generalizada pelos mais ricos do planeta corrói a capacidade de arrecadação de todos os governos e assim a capacidade de gasto e de investimento. Os governos do mundo assinaram um acordo para combater paraíso fiscal. Guedes foi lá e assinou, o Brasil faz parte do acordo. Nas decisões privadas, o Guedes privado ainda não conversou com o Guedes público. Um dia eles vão se conhecer.
– Entre as economias mais importantes do mundo, a economia brasileira é uma das mais subsidiadas: são R$ 380 bilhões/ano de subsídio para a economia com o Simples, agronegócio, indústria. O dilema do país é ou cortar subsídio ou aumentar a arrecadação com tributos novos?
– Na prática, acaba sendo uma combinação das duas coisas e tem uma terceira. Nós temos um problema fiscal. Nossa dívida cresceu e, para que ela não continue crescendo, o governo tem que ter um excesso de superávit primário mínimo, que a gente calcula que é na casa de 1% do PIB. Sendo conservador, se o mínimo é 1%, o melhor é operar acima disso. Nós temos um déficit de cerca de -1%. Então, temos de sair de -1% para 1,5%, 2%. Para isso, tem que fazer um ajuste de 3 pontos percentuais no PIB, o que, no Brasil, hoje, é algo que está próximo de R$ 300 bilhões por ano, ou seja, o governo tem que obter um excesso de caixa de R$ 300 bilhões por ano. “Ah, vou vender a Eletrobrás”. Pode vender a Eletrobrás esse ano, mas no ano que vem você vai vender o quê? Isso gera receita por um ano só. Você pode resolver o problema da sua família vendendo sua casa, mas no ano que vem você vai ter outra casa para vender?
Para recuperar receita, pode-se rever desoneração, acho que ninguém é contra isso. A lei já diz que você tem que ficar avaliando as desonerações para ver se elas fazem sentido. Eu acho que o Super Simples tem que ter, agora se discute muito porque talvez tenha se excedido [a concessão desse tipo de imposto]. Existem desonerações para algumas cadeias industriais que precisam ser revistas, como para as indústrias de bebida, que é algo que não faz sentido. Não dá para colocar tudo no mesmo saco. Já as desonerações da folha de pagamento… Tá aí, todo mundo critica a desoneração que a Dilma fez, “tem que acabar”, mas vai ser prorrogada por mais dois anos. A economia brasileira está mostrando que precisa da desoneração da folha. O formato atual não é o ideal, precisa ser revisto e aí, provavelmente, o custo vai ser menor. Para que alguns gastos subam, você vai ter que segurar outros.
Quando você vê os países que conseguiram fazer o reequilibro orçamentário de um jeito progressista, com crescimento, redução do desemprego, eles fizeram uma combinação de coisas. Teve aumento de receita, teve revisão de desoneração e teve controle de gastos. Não dá para apostar só numa coisa. Estão tentando cortar gastos há 5, 6 anos e estão patinando no mesmo lugar. Tem que combinar as duas coisas e aí você precisa de um grande acordo político e isso não é economista que faz. Minha planilha aqui aceita quase tudo, mas depois precisa passar pelo Congresso e aí precisa de liderança política. E também não precisa reinventar. A história diz que as pessoas aceitam participar de um esforço de ajuste se elas perceberem que aquilo é justo, que todo mundo está fazendo a sua parte e o ajuste não está caindo somente em uma parte da população. O problema da situação de hoje no Brasil é que a estratégia de ajuste recai sobre a população mais fragilizada, justamente quem não tem capacidade de suportar o seu custo.
– Há quem diga que o dinheiro que será injetado com o Auxílio Brasil nem ajude muito diante do tamanho da inflação e por causa do número de famílias fora do benefício. Qual é a sua perspectiva sobre isso?
– Essa questão é difícil porque esse governo atual é tão esquizofrênico… Depende com o que você compara. A gente tinha um auxílio emergencial que eles cortaram, mas tiveram que voltar com ele rápido. Em outubro, eram 39 milhões de benefícios. Agora, estão prevendo que o Auxílio Brasil vá chegar para 15 milhões e eles tem ainda 2 milhões na fila. De cara, já tem uma redução de 39 para 17 milhões. “Ah, mas aumentou o valor”: sim, era R$ 300 para 39 milhões, agora vai ser nesse valor médio de R$ 400 para 17 milhões. Só fazendo uma multiplicação simples percebe-se uma contração. O que houve do ponto de vista da economia como um todo é menos auxílio e menos gente: 22 milhões vão perder o auxílio. Isso é melhor ou pior? É melhor ter um auxílio para 17 milhões do que não ter para ninguém, mas também não era bom sair de 39 milhões para 17 tão rápido. O melhor era fazer isso mais gradualmente. Europa, EUA e China estão fazendo isso. É bom que tenha esse auxílio, mas dado que a inflação subiu, ele está apenas amenizando. No ano que vem, as pessoas que recebem o auxílio vão receber em termos reais menos do que elas receberam esse ano. Por isso que instituições estão prevendo uma desaceleração do crescimento também.
– Para que o Auxílio Brasil possa existir, estão colocando em jogo essa PEC dos precatórios ou “do calote” como tem sido chamada, que pode acabar prejudicando demais as contas do governo a partir de 2023. Qual é a sua opinião sobre essa questão?
– Temos um problema de precatórios que precisa ser enfrentado. A maneira de enfrentá-lo depende de fazer a pergunta certa: “Por que os precatórios cresceram?” O governo está focando em não pagar a conta, em empurrar para 2023. No passado, operações como essa de adiar despesa foram motivos para derrubar uma presidente. Agora, são aplaudidas. São dois pesos e duas medidas. Quando o governo é de esquerda, a interpretação é uma, quando o governo é de direita, a interpretação é outra. Os precatórios subiram muito por que, em parte, tem um problema lá entre a União e os estados, de verbas de educação, que vem desde o governo FHC, passou pelo governo Lula… Isso você resolve num acordo de contas entre estados e União. Tem aumentos de precatórios que vem da Previdência, da folha de pagamento, da fila de alguns programas etc. Aí tem que ver se isso é uma coisa pontual, que foi a pandemia que prejudicou o atendimento ou se é uma coisa de o governo não estar pagando o que ele deve para tentar produzir resultado parcial no curto prazo. Por isso que eu já tinha defendido e acho que agora o Senado está falando: “Olha, independentemente de qual seja a solução do precatório, se quem vai pagar é o Bolsonaro ou o presidente que vai governar o Brasil a partir de 2023, a gente tem que abrir a caixa-preta. Por que o precatório saiu de R$ 30 bilhões, R$ 40 bilhões para R$ 90 bilhões? O que está gerando isso? O governo não está pagando a Previdência? O governo não está pagando seus funcionários? Como resolve?”. O problema é que a gente inverteu a pergunta. O que o governo Bolsonaro está propondo é o seguinte: “Eu não quero pagar. Está previsto R$ 90 bilhões para o ano que vem, eu só vou pagar R$ 40 bi” e os outros R$ 50 bi Jesus cuida, o Congresso que se vire a partir de 2023. Isso causa incerteza, aumenta o dólar, reflete na gasolina, na alimentação, nos juros, o que piora a situação futura do governo. A gente tem que chamar as coisas pelo nome: por que o precatório subiu? O que você pode fazer para que ele pare de subir? E aí você paga em estoque. O governo brasileiro pode pagar esse estoque. Aí é uma negociação com Congresso, o Judiciário, os devedores, os precatórios de baixa renda. A discussão nesse momento está focada na ótica do caixa para 2022, sem pensar o que acontece a partir de 1º de janeiro de 2023. Está se criando uma bomba fiscal para quem vier em 2023. A gente não sabe quem é, espera que seja o Lula. Seria bom que o Congresso resolvesse isso para 2023 e para frente também, por que quem for eleito pegaria uma situação mais previsível. Infelizmente, não é isso o que vai acontecer. No final do ano que vem, quem for eleito vai ter que ir ao Supremo, ao Congresso para tentar desarmar essa bomba-relógio para o próximo governo, seja ele qual for, inclusive se for o Bolsonaro.
– Na sua perspectiva, se as forças democráticas ganharem as eleições, o cenário em 2023 será um cenário pior do que o Lula herdou em 2003 ou igual?
– Tem muita gente fazendo essa pergunta e eu não tenho uma resposta formada. Vou te dar a minha percepção de hoje que pode mudar em duas semanas, dependendo do que o Congresso aprovar. Do ponto de vista de um economista, a situação não é tão ruim quanto a de 2002 porque o Brasil não está quebrado em dólar. A inflação está alta, mas está em 10%. O Fernando Henrique deixou uma inflação de 12,5%, chegou até 17% no início do governo Lula, ou seja, ele deixou uma inflação de mais de 20%. Agora, se espera que ela vá até 10%, 11% e depois comece a cair. A taxa de juros hoje é mais baixa do que era no passado. Está subindo, mas no início do governo Lula o juro real, que o FHC deixou, era de 16% ao ano. As previsões mais pessimistas indicam que o juro real vai subir para 4% ao ano. Nesses dois aspectos, é melhor. Tem muita coisa travada no Brasil, que o governo brasileiro tem capacidade de intervir se tiver planejamento, investimento e transferência de renda, tem mais acúmulo de conhecimento sobre programas. Também nisso é melhor. O que está pior é governança. Para tirar um governo de esquerda se tacou fogo no país, tornou o país ingovernável. Quem quer que seja eleito terá muita dificuldade de governar porque existem essas interposições. O Ministério Público extrapolou as suas funções, o TCU também, o Judiciário entra no Legislativo, o Legislativo tenta entrar no Judiciário. Você tem uma incerteza jurídica muito grande, o que faz com que funcionário público hoje, com razão, dificilmente assine alguma coisa porque, depois do que fizeram com a Dilma, o que hoje é válido, amanhã pode ser considerado inválido e com efeito retroativo. O grande desafio para o próximo presidente é promover uma recuperação da governança. Tem que chamar os poderes para conversar, os governadores, e estabelecer um mínimo de procedimentos comuns, de coordenação e aí dá para resolver. E tem que parar é o discurso de que “esse ano tem que ser déficit, mas ano que vem volta tudo ao normal”. O governo vem decretando desde 2017 que tudo ficará bem no ano que vem, tentando ajustes rápidos, falhando em todas as tentativas e prorrogando a crise. É melhor reconhecer o problema, programar o ajuste, que vai ter de ser ao longo de 4 a 8 anos, como está sendo feito na China, nos EUA e na Europa, por que aí você consegue distribuir esse custo e ter, espero eu, algum consenso político que viabilize essa solução.