A questão democrática
Como uma orquestra bem ensaiada, jornais e emissoras de TV começam a divulgar a fake news de que Lula apoia “ditaduras”, como a da Nicarágua. E, claro, não tem compromisso com a democracia. Uma fake news requentada, que se repete sempre na mídia oligárquica em terras tupiniquins. Mas quem tem compromisso com a democracia, forjado na luta contra a ditadura, é Lula e o PT
O bolsonarismo arrependido, mais conhecido como a turma da “terceira via”, que não é terceira, nem via para coisa nenhuma, acusou o golpe. A viagem de Lula a Europa, um êxito político estrondoso, acendeu uma gigantesca luz vermelha nas hostes dos golpistas de 2016. Lula mostrou que é o único líder político brasileiro que tem o respeito e a admiração das forças progressistas e democráticas do mundo.
A nossa velha mídia tentou, inicialmente, ignorar o périplo. Mas, ante a repercussão internacional, acabou tendo que noticiar alguma coisa. Bem menos que as confusões das primárias do PSDB, que mereceram longas horas de exposição na mídia, mas, ainda assim, alguma coisa.
Agora, contudo, vem a resposta desesperada daqueles que querem manter vivo o autoritário e reacionário programa econômico e social do Golpe de 2016. É necessário, de novo, atacar Lula e começar a fazer o trabalho sujo de impedir a sua eleição.
Assim como em 2018, valerá tudo para se conseguir esse objetivo antidemocrático. Seguindo os ensinamentos e as práticas de Bannon et caterva, os defensores do programa antidemocrático apelarão para fake news, mentiras e distorções para atacar Lula. É o que acontece agora.
Como uma orquestra bem ensaiada, os jornalões e as televisões começaram a divulgar a fake news de que Lula apoia “ditaduras”, como a da Nicarágua, e, consequentemente, não tem compromisso com a democracia.
Na realidade, uma fake news requentada, que se repete sempre na mídia oligárquica e reacionária. Tentam, como de hábito, equiparar Lula a Bolsonaro, supostos “males idênticos de signos opostos”. Uma piada intelectual e política, fruto de falta de conhecimento real da obra de Hannah Arendt, combinada com interpretação deficiente de textos e má-fé.
A nova fake news baseou-se numa entrevista que Lula concedeu ao jornal espanhol El País. Diga-se de passagem, o entrevistado foi muito elogiado, em editorial, por esse jornal conservador da Espanha, que reconheceu Lula como um líder social-democrata, autenticamente comprometido com o progresso social e a democracia.
Porém, a nossa impoluta imprensa, ao contrário da mídia europeia, pinçou frases fora de contexto na entrevista para transmitir uma mensagem inversa à do editorial do El País. Mediante acrobacias semióticas despudoradas, parte da imprensa nacional apresentou sua convicção de que Lula, por não ter criticado abertamente o regime nicaraguense, manifestou traços autoritários, quiçá stalinistas. Só faltou o proverbial Power Point.
Na realidade, Lula não criticou o regime de Ortega, mas também não o defendeu, pois afirmou não ter amplo conhecimento da política recente da Nicarágua. Apenas disse, com amplo conhecimento de causa, que ele fora preso para não participar nas eleições de 2018, o que é mais pura verdade.
Em primeiro lugar, é irônico ver gente que apoiou o Golpe de 2016, a Lava Jato, a prisão ilegal e política de Lula e a eleição de Bolsonaro falar em democracia. Praticamente destruíram a democracia do Brasil e, agora, se preocupam com a oposição da Nicarágua? Só rindo. Onde está a autocrítica dessa gente? Em Miami? Foi depositada em alguma offshore?
Em segundo, se tem alguém com autoridade moral para falar de democracia no Brasil são Lula e o PT. O PT e Lula nasceram da luta democrática. De fato, a principal característica do PT diz respeito ao compromisso com a democracia e seu aprofundamento.
O amálgama que uniu e estruturou o PT foi justamente a luta contra a ditadura e pela democratização do país. Por isso, o PT definiu-se, desde o início, como um partido socialista e democrático, que buscava não apenas uma democracia formal e institucional, mas uma democracia substantiva que assegurasse, a todos os cidadãos, o pleno usufruto dos direitos políticos, sociais e econômicos.
A centralidade da democracia nos princípios e no programa do PT o distinguiu de alguns outros partidos de esquerda brasileiros, que tinham, na época, uma visão instrumentalizada das instituições democráticas e das entidades sindicais. Assim, o Partido dos Trabalhadores do Brasil tem a democracia em seu DNA político. Isso se refletiu amplamente nos governos do PT, tanto nos federais quanto nos estaduais e municipais.
Com efeito, os governos do PT, em oposição às tradições políticas brasileiras, empenharam-se fortemente no fortalecimento das instituições democráticas, na abertura de canais de participação direta da população nas instâncias decisórias do Estado, na separação entre os poderes e na condução da coisa pública de forma inteiramente republicana. Alguns até hoje criticam essa “inocência” democrática do PT.
Mas a contribuição principal do PT à democracia brasileira se deu pela via da criação de condições econômicas e sociais que sustentam as grandes democracias. De fato, embora os direitos civis e políticos sejam os direitos fundantes das democracias, são os direitos sociais e econômicos que lhe dão sustentação concreta.
Não há democracia real e substantiva sem uma classe média robusta, sem mecanismos de distribuição de renda, sem um Estado de bem-estar sólido, sem acesso amplo e gratuito à educação de qualidade e à saúde, sem acesso à informação plural, sem uma economia que assegure a geração de empregos decentes etc.
Pois bem, ao eliminar a pobreza extrema e a fome, ao elevar dezenas de milhões de excluídos à classe média, ao gerar milhões de empregos decentes e aumentar o salário-mínimo, ao abrir as portas das universidades para negros e pobres, ao multiplicar as vagas do ensino técnico e superior, entre muitas outras realizações, os governos do PT deram contribuição histórica à democracia brasileira.
Na realidade, Lula e o PT fizeram mais pela democracia brasileira que todos os outros governos somados. Fato. O resto é Power Point. Os governos que sucederam os do PT, graças a um golpe feito com o apoio dos que hoje se preocupam com a democracia da Nicarágua, implantaram, porém, um programa econômico e social, a “Pinguela para o Passado”, que enfraquece estruturalmente a democracia brasileira.
A atual crise mundial das democracias, da política e dos sistemas de representação se origina no fracasso monumental do modelo neoliberal, que gera desigualdade, desemprego e precariedade laboral, pobreza, destruição de direitos, anomia social, desencanto, desesperança e ódio. Isso cria o caldo de cultura no qual nadam os neofascistas, como Trump, Bolsonaro, Orbán e tantos outros.
Preocupado com essa tendência destrutiva, o PT apresentou o “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil”, em setembro do ano passado. Amplamente ignorado por nossos “democratas”, tal plano propõe medidas e políticas concretas e exequíveis para tirar o Brasil da presente crise e reconstruir as bases econômicas e sociais do aprofundamento da democracia brasileira. Além disso, o plano propõe medidas específicas para tal aprofundamento, como a implantação de mecanismos de democracia direta no país.
Em contraste, a “terceira via”, preocupada com a democracia nicaraguense, mas insensível à democracia do Brasil, insiste no modelo da “Pinguela para o Passado”, o qual inexoravelmente enfraquecerá ainda mais a democracia brasileira.
A bem da verdade, nossas oligarquias nunca tiveram compromisso firme com a democracia. Sempre foi muito mais com as aparências — às vezes, nem isso —, não com uma democracia real e substantiva. Com uma democracia para todos.
Nossas oligarquias, assim como o Departamento de Estado dos EUA, têm um comportamento hipócrita e cínico, em relação à democracia, aos direitos humanos e à corrupção. Esses temas são frequentemente instrumentalizados para perseguir adversários políticos. No caso das nossas oligarquias, adversários internos. No caso dos EUA, adversários externos.
Com efeito, o Departamento de Estado critica e persegue países com regimes que lhe são hostis ou não cooperativos — Cuba, China Nicarágua Irã, Coreia do Norte etc. —, mas, ao mesmo tempo, protege e incentiva regimes francamente ditatoriais considerados “amigáveis”, como o da Arábia Saudita, Emirados Árabes, Qatar, Kuwait, Bahrein, por exemplo. Lembre-se que os EUA perseguiram e perseguem também regimes democráticos considerados perigosos aos seus interesses e os substituíram e os substituem por dóceis ditaduras. Os latino-americanos que o digam. Os brasileiros o sabem.
Em contraste, a diplomacia brasileira, antes do Golpe de 2016, tinha uma sólida e sensata posição de não cair nessas hipócritas armadilhas geopolíticas. O Brasil evitava condenações formais a países específicos, que normalmente servem apenas para a promoção de interesses políticos, que nada têm a ver com a promoção efetiva da democracia e com a proteção aos direitos humanos fundamentais.
O Brasil entendia, corretamente, que tal “singularização” não contribuía para resolver as questões relativas aos direitos humanos, até mesmo porque todos os países têm, em graus variados, problemas relativos à promoção de tais direitos e insuficiências democráticas. Ademais, essas intervenções econômicas, políticas e militares tendem a provocar grandes tragédias humanitárias, como as ocorridas na Líbia, no Iraque, na Síria, com custo de centenas de milhares de vidas perdidas. Mesmo bloqueios econômicos e comerciais, que se assemelham aos cercos medievais aos burgos, ocasionam também sofrimentos generalizados em populações inocentes.
A posição histórica da diplomacia brasileira vinha sendo a de evitar as condenações oportunistas, hipócritas e inúteis a certos países que não são do agrado dos EUA e aliados. Assim, o Brasil normalmente se abstinha ou apresentava posição contrária nas votações que visavam condenar e isolar nações como Cuba, por exemplo.
Tal posição não fora inventada ou introduzida pelos governos Lula e Dilma, como parecem crer alguns. Era uma posição já tradicional do Estado brasileiro, assentada nos princípios constitucionais que regem nossa política externa, como o da não-intervenção e o da autodeterminação dos povos. Para o nosso país, o tema dos direitos humanos e da democracia era demasiadamente importante para ser usado oportunisticamente por interesses políticos específicos.
Por isso, o Brasil, até o Golpe de 2016, preferia apostar na cooperação, na integração e no estrito respeito à soberania de todos os países, como forma de promover, progressivamente, o aperfeiçoamento das democracias e o reforço contínuo dos direitos humanos em todo o mundo.
Isso não significava omissão. Na última sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU feita ainda nos governos do PT, a 28ª, em 2015, o Brasil votou favoravelmente a 12 das 14 resoluções que foram a voto. Os EUA, em contraste, votaram favoravelmente a apenas quatro, tendo votado contra as outras dez.
Agora, contudo, grandes democratas e luminares da geopolítica, como Jair Bolsonaro e o General Augusto Heleno, exigem condenações severas e ações violentas contra Cuba, Nicarágua e Venezuela, contrariando as posições históricas do Brasil. Ressalta-se que tais exigências podem atender aos interesses da Doutrina Monroe, mas são incompatíveis com os interesses nacionais, que seriam muito melhor atendidos com negociações pacíficas, de modo a manter nossa região livre de conflitos açulados por grandes potências.
Da mesma forma, a mídia conservadora exige que Lula condene Ortega, mas transmitirá de bom grado, com os salamaleques de hábito, a Copa do Qatar, ditadura medieval, que, de acordo com o Democracy Index 2020, da sisuda e conservadora The Economist, tem nota inferior à da Nicarágua, no que tange à democracia.
Aliás, essa mesma imprensa não fez nenhuma crítica a Bolsonaro por ter ido visitar recentemente as ditaduras medievais do Golfo Pérsico, esbanjando cinismo e dinheiro público. Afinal, há muitos negócios envolvidos. Negócios que interessam também à grande mídia e aos arautos da terceira via. Nicarágua e Cuba são pobres.
Assim sendo, a única grande questão democrática que realmente interessa aos brasileiros em 2022, não é condenar ou não Daniel Ortega. É a seguinte: quais candidatos têm um programa crível que permita reconstruir e aprofundar a fragilizada democracia brasileira? Até agora, só tem um grande candidato que tem programa, compromisso histórico e prestígio internacional para cumprir tal missão vital: Lula. O resto é cinismo e Power Point.